Assistir hoje ao excepcional documentário Amy me moveu a tecer algumas observações. Começando pela mais pragmática delas: já no começo do filme Amy lamenta a falta de controle sobre ela por parte de seus pais; expressa a falta que lhe fez o fato de seus pais nunca terem-lhe dito não. Essa afirmação, em um filme que trata de um ícone da juventude, morta prematuramente na classe emblemática dos 27 anos, já é uma desvirtuação ao gênero midiático de culto à efemeridade da tríade drogas, sexo e rock`n roll. O filme é belíssimo e exuma uma honestidade ímpar a começar por não apelar em nada para o caráter iconoclástico da figura da cantora; pelo contrário, desde a primeira cena Amy é mostrada em toda sua ternura infantil, que vai crescendo ao longo da narrativa até se transformar rapidamente em um desalento, desproteção e fragilidade comovedora. O diretor do filme é movido por uma sensibilidade tão precisa que é impossível que o espectador não se sinta em suspenso e tocado profundamente pela solidão ali representada. E aqui a primeira observação_ da permissividade dos pais_ se transforma em algo mais nefasto, que a narrativa costura com a mesma maestria no quadro da apropriação cruel que todos que cercaram Amy fez de seu corpo e seu espírito, até que deles não sobrasse nada. Há inúmeras cenas tão tocantes que eu me via constantemente me perguntando como era possível, como a vida dessa garota foi filmada do início ao fim de forma tão explícita e quase brutal. E tudo foi um choque para mim, pois eu via Amy Winehouse com desprezo, nunca gostei dela, sentia uma repulsa por tudo que se relacionava com ela; ela me cansava, quando viva, da velha repetição de degradação e suicídio progressivo, o que me fazia maldizer a falta de lucidez das novas gerações que cometem holocausto midiático de si mesmas para preencher o vazio de significado através da repetição dos passos mortais de uma insípida tradição. Eu gostei muito mais da Adele, gorda, radiante de saúde, a voz potente e a genialidade de compositora que só será reconhecida depois que os esnobes pararem de a desmerecerem por birra (o que prova, espontaneamente, a genialidade dela por outros caminhos, já que também o Led Zeppelin e os Beatles foram profundamente desprezados na época deles). Mas esse documentário, essa obra prima, mostra, para meus olhos assombrados, o que a Amy era: uma ativista desencantada e espiritualmente superiora de todos esses esquemas patrocinados, alguém que teve a consciência do enorme engodo em que estava caindo desde o início, mas que era fisicamente quebradiça demais para se defender; defender-se do pai extorsivo, do marido que lhe vampirizava, dos "amigos" da classe artística que lhe louvavam por beber e fumar da maneira certa. O filme começa com a linda Amy garota, em um filme caseiro, se destacando da turma por sua proeza em cantar Parabéns pra você, e termina com o relato de uma Amy esquelética, de rosto encovado consumido pelas drogas, poucos dias antes de morrer, dizendo que daria tudo para poder andar pelas ruas solta e leve e feliz como era quando inocente. Como todo filme sobre roqueiros mortos, o tema é a ode à inocência perdida. É moda no Facebook propagandearem um post que diz que beber álcool indica genialidade, e Amy mostra as últimas instâncias catastróficas desse descerebralismo construído para ser um clichê consumista a ser seguido pelos estúpidos.
A segunda observação é que Amy Winehouse não foi uma grande artista. Não teve tempo para isso. Ela não foi uma Janis Joplin. Seu gosto refinado por jazz e sua alta inteligência auto-avaliativa a impossibilitou de se entregar às pequenas prostituições necessárias para que pudesse se transformar em uma imortal em seu meio. E ela era individualista demais, sua dor era recolhida em excesso, para que pudesse se exorcizar diante o microfone como fez a Janis. Ao longo do filme me vi pensando que ela era o êmulo dos escritores que se negavam a escrever que fez o tema de Vila-Matas: a cantora que se negava a cantar, como na maravilhosa cena de sua recusa em cantar no show em Belgrado. Daqui a alguns anos ela será esquecida, o que esse documentário só fez estancar um pouco o processo por umas boas pitadas de sublimidade. E essa é a perspicácia que faz desse filme sublime, e o constante close no rosto de Amy se perguntando "o que eu estou fazendo aqui": mostrar um ser humano sensível e inteligente, nunca adaptável, sendo engolido paulatinamente pelo mundo vazio e ganancioso que ela, Amy, como ninguém em seu redor desde o princípio soube enxergar além do eufemismo e da ilusão. E como seu fim foi uma realidade incontornável, que os cruéis e facínoras aproveitaram até o limite com zombarias e chacotas, com insensibilidade maníaca e total leviandade assassina, com pouco caso e especulando pelo tempo de vida que lhe restava no interior das casas de bolsas de apostas. Assim como a nostalgia da inocência do início_ da bela primeira cena despreocupada, exultante de vida_, retorna com um toque de pesar no final, também o espectador inteligente se vê doutrinado contra a impostura criminosa dos jogos de aceitação irrestrita da mídia com o ensinamento de que nessa nossa zona de existência, o grande lance de esperteza é sempre dizer NÃO.
Caro Charlles,
ResponderExcluirAssisti ao documentário recentemente. Fixei-me nas imagens (Ainda que calculadamente selecionadas). Os relatos que es acompanham, penso, são mais suspeitos. É bastante triste relembrar a exposição e degradação a que foi exposta, especialmente pelos mais "próximos". Num mundo povoado por imagens a que fica é de uma voz bonita de uma moça talentosa silenciada por elas. É melancólico imaginar que talvez a lembrança de suas canções fiquem atreladas a sua degradação. Ficando imaginando também o quanto as reputações de tantos cantores não devem as "suas" imagens e "atitudes"...
Marcos
É um filme muito comovente.
ResponderExcluirComentei no twitter q achei bem bom o doc. O Marcos Nunes replicou com um ponto interessante. Sendo um pouco injusto com ele (avisarei-O), pois são poucos caracteres possíveis por lá, reproduzo aqui o q ele disse:
ResponderExcluir"Vi esse documentário, mas achei fraco; mais uma vez coloca a mulher como "objeto" de maquinações masculinas (pai e namorado)."
"A responsabilidade dela mesma em suas decisões se comprime à medida de seu físico esfacelado,de sua fragilidade feminina,entende?"
"A presença masculina, quando se coloca, é flagrantemente dominante. O exemplo dado é que as músicas sempre se referem ao Frank."
"Como disse, vi o doc. mas acho a Amy meio enjoada."
Eu adoro jazz, mas não sou nada ligado ao jazz vocal. Não ouço as divas. (Exceção: Dusty Springfield.) Sou fã desde criança da Janis, e ela é bem mais rock e psicodelia do que jazz. Nunca ouvi a Amy; não tenho nada dela em meu computador; só conheço "Rehab". Acho as músicas dela isentas de capacidade de se tornarem memoráveis, e a seriedade de suas composições tornou impossível que algo bem humorado, como "Mercedes-Benz", o que lhe daria relevância por outros caminhos.
ExcluirMas a figura humana da Amy me impressionou muito. Não entendi a crítica sobre ela ser mostrada como "objeto"_ ela foi mostrada como objeto. As cenas são incontestáveis, desde o pai lhe obrigando a posar para uma fotografia junto a fãz na praia, quanto a cara de enfado do marido quando ela o beija no banco de trás do carro. Ela pede socorro várias vezes à família, de forma sutil_ a mãe e o pai, por exemplo, desconsiderarem a importância de seu quadro de bulimia é de uma negligência assustadora.
Não é preciso gostar da música da Amy para gostar do documentário.
Quando ela canta Back to black sinto algo superior ali, um talento e um espírito.
ExcluirNão sou fã de carteirinha, não compro discos nem baixo música hj em dia, mas qdo a escuto gosto do q escuto.
E eu não vi a Amy colocada no doc só como vítima. Ela fez suas escolhas.
Não acho que ela fez escolhas significativas. Seus primeiros depoimentos é que ficava no apartamento com uma amiga, "fumando maconha todo dia". Ela demonstrava traumas profundos_ ela respondendo ao namorado que não, não havia sido abusada sexualmente na infância_, e, apesar de uma alma antiga, como alguém disse por lá, sua imaturidade e insegurança era a um nível patológico. Claro que há manipulação de sentido em toda obra, e o documentário não se exclui disso, mas a inércia da Amy em sentido à destruição se assemelha muito com o de gente como Syd Vicius, e não à tríade Janis-Hendrix-Morrison, esses fizeram a festa e se suicidaram progressivamente com exultação.
ExcluirUma tristeza equivalente da Amy, também, é com o Ian Curtis.
Veja Meet the Patels no Netflix. Documentário também, faz rir bastante.
ResponderExcluirSempre me impressionou a delicadeza e vulnerabilidade da sua figura. Uma voz magnífica, a interpretação de Body and Soul com Tony Bennet é uma das mais belas gravações da sua carreira. Gosto de tudo dela. E gostei muito também do que li.
ResponderExcluir