
Noel Gallagher foi fotografado no metrô, em Londres, nessa semana, indo para uma participação no show do U2. Para nós brasileiros isso sempre vai soar como se em vez de um simples ser humano usando da eficiente infra-estrutura de seu país, houvessem fotografado um unicórnio no centro da cidade. Para os brasileiros que vivem nas metrópoles desse país, é inconcebível que alguém com sã consciência e liberdade de escolha desloque pela cidade em outra coisa que não seja seu carro, de preferência fabricado no máximo nos últimos dois anos, com seguro em dias e com todos os opcionais de conforto. O brasileiro morre por seu carro, isso é fato (basta usar um pouco da memória televisiva, dos tantos programas policiais que mostram o morto no banco do motorista no registro de resistência ao assalto). O brasileiro correlaciona diretamente o uso do transporte público nacional com a sina de um fracasso vergonhoso e inexorável. Em nossa mente, por mais que tenhamos que eufemizar, quem usa o ônibus e o metrô por aqui é um derrotado. Pensei em intitular esse post com "Complexo Vira-lata", assim mesmo sem a preposição "de". Penso que não é à toa que reclamamos tanto do Brasil; não é um chiste involuntário, um TOC auto-tourette; estão errados os que tentam cunhar o clichê de inadmissibilidade que dizem não suportar quem fala mal do país, dos que usam frases como "se fosse no Brasil...". O brasileiro fala mal do Brasil porque o conhece profundamente, conhece da maneira mais ineludível, através da prática diuturna inescapável. Engana-se quem julga o brasileiro um alienado apolítico. Meu sonho de toda a vida era ser alienado apolítico. Lembro perfeitamente de, aos 13 anos, ler Stephen King, e ser admoestado por um amigo de colégio que lia Dias na Birmânia a ler coisas importantes. Por aqui, o sujeito é obrigado a saber a taxa do dólar, os nomes dos presidentes das duas casas no Congresso, a saber pelo menos 5 siglas de impostos federais, a saber as tipificações de pelo menos 3 crimes do funcionalismo público, e a ter ideias complexas sobre técnicas de equilíbrio diplomático entre líderes políticos arrestados em investigações policiais para a mínima gestão das aparências. Como eu disse alhures, o Brasil é o país que não te deixa em paz. O brasileiro, seja de que classe econômica ele for, é um ser complexo, profundo, que usa da dissimulação sem a falsa moral dos calouros, e que sabe que lhe pesa a maldição de não poder dizer que leva a vida que lhe dê na telha, que zela com independência de sua família, pois o que acontece na política é a mão direita da qual depende para por a comida na mesa. Um amigo meu, semana passada, me recordou que há dez anos haviam apenas dois carros estacionados na praça pública da cidade interiorana onde moro. Ninguém naquela época tinha carro. Hoje, na referida praça, há mais de cinquenta carros. Todos os dias de madrugada eu passo, a caminho do trabalho, pelo maior colégio público da cidade, e nas ruas de frente é onde estão os melhores carros: os professores concursados são os que compram os melhores carros. Os servidores públicos que mais ganham mal, são os melhores clientes das concessionárias, das linhas de crédito consignado, e das financiadoras. É um erro deles, os que deveriam alertar os alunos sobre consumismos e economia, sobre danos ecológicos, sobre gastar a grana em coisas intelectualmente mais produtivas? Creio que não. Há dez anos esses velhos homens e mulheres atravessavam os morros à pé; seus correligionários de profissão das grandes cidades purgavam idas e vindas imprensados nas latas perigosas dos ônibus do transporte público. Talvez seja mesmo a maior lição deles mostrarem para seus alunos a pragmática apreensão do oportunismo comprando aqueles pomposos e brilhantes carros negros de quatro portas, o movimento mais astuto que eles poderiam ter na contra-dança com o país que a qualquer momento fará o passo de lançar-lhes ao ar sem a devida segurança, os farão se estrebuchar de barriga no chão. Keanu Reeves, Michael Douglas, Charlie Sheen, Al Pacino, e os grandes executivos que aparecem nos filmes em pé segurando confortavelmente as barras dos metrôs: em nossa mente inflamada de estoicismo, isso sempre parecerá absurdo.
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Claro que esses últimos 15 dias foram de total felicidade. Meu filho Eric nasceu, e tudo deu certo. A pressão sanguínea da Dani disparou na noite de sábado, dia 10, e o médico achou melhor antecipar o parto para a manhã de domingo. Cheguei à capital e ele estava deitado no bercinho, todo envolvido por mantas, à mostra no berçário através da vitrine. Só naquela manhã nasceram 10 bebês. O plano de saúde cobriu tudo, a cesariana, a laqueadura (a Dani não pode ter outra gravidez, o que conformamos), o apartamento de luxo por 4 dias (na verdade cobria um apartamento simples, mas não havia mais nenhum disponível, o que tiveram que nos dar o de luxo). Quando ela teve alta, saímos pela porta com as costas murchas, esperando alguém nos chamar para acertarmos alguma conta pendente. É que já estamos acostumados. O parto em que a Dani teve a Júlia, paguei 8 mil reais. Era um parto de alto risco, e a obstetra foi de um mercenarismo grotesco, contando cédula por cédula na minha frente, um dia antes da cirurgia. E coube a ela me legar uma cena constrangedora, pois a obstetra aparentemente esqueceu de repassar a parte da grana que lhe ficou incumbida para a pediatra, e a pediatra cobrou rudemente a Dani o dinheiro horas após o parto, no quarto em que a Dani estava instalada. Eu não estava perto, por sorte, pois nem sei o que eu teria feito. O plano cobriu a cirurgia cardíaca da Dani, dois anos depois, e, após a cirurgia, o cardiologista me liga cobrando 3 mil reais por materiais extras que foram necessários no procedimento. Ele foi tão gentil na extorsão, e eu estava tão aliviado que tudo tenha dado certo, que não titubeei em pagar. Assim é. Eu tenho aversão a dinheiro, devo dizer. Gosto de dinheiro e não sou nenhum asceta, não é isso que quero dizer. A Dani é que fica com os cartões bancários, e ela que gerencia a casa. Eu fico meses sem tocar em dinheiro, o que me faz muito feliz. Lembro a época em que me formei e comecei a trabalhar, em que tirava do banco apenas o aluguel de um quarto em que se incluía almoço e janta. No final do ano, tirei o extrato da conta e havia lá o que considerei uma fortuna. Comprei um carro à vista, por pura necessidade. Me assombra que médicos, que são os profissionais milionários por natureza, se mostrem tão gananciosos. Para onde vai tanta grana? Eles usam para quê? E sempre me pareceu de uma rasteirice paradoxal que eles usem os momentos de maior felicidade de seus pacientes para exercerem essa ganância desmedida. No momento pleno em que eles conferem a vida, eles se investem contra a plenitude que eles foram veículo para se rebaixarem à necessidade mais mesquinha da extorsão; e sem a mínima precisão. Talvez seja apenas o vício que o exagero de remuneração lhes acomete. Talvez o jogo de angariarem dos parentes aliviados um pouquinho mais de grana seja o modo adrenérgico compensador para sentirem com exatidão a mágica científica que fizeram. Talvez eles não compreendam o quanto fizeram felizes os que no fundo no fundo pensavam na morte, e a materialização do dinheiro seja a forma para eles empurrarem um pouco para o lado a insensibilidade da rotina.
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Houve apenas um contratempo nessa felicidade. Um dia depois do parto, minha irmã voltava às oito da noite da academia onde trabalha, na companhia da minha filha, e ao estacionar na frente do prédio da minha mãe, dois motoqueiros lhe apontaram armas e lhe levaram o carro. Deram tempo para que ela retirasse minha filha com a cadeirinha do banco de trás. Eu estava aqui na minha cidade. Por uma infeliz prova de que eu estava certo em minha recomendações, aquela noite foi a primeira vez que ela desrespeitou minha ordem de que a Júlia não poderia sair após as 18 horas. Uma semana antes, eu proibi que levassem a Júlia a uma festa de criança, por essa estar marcada para as nove da noite. A Dani me ligou chorando, e elas devem ter falado horrores do meu pérfido coração em não me amolecer diante a decepção da Júlia em não poder ir ao evento. Fui taxativo e disse pelo telefone que elas estavam na cidade que figurava entre as 32 cidades mais violentas do mundo, e seria uma isca sem igual um carro com três mulheres e uma criança vagando pelas ruas à noite. Se elas estivessem em Sheberghan, no Afeganistão, poderiam ir, mas estavam em Goiânia, Brasil, a trigésima segunda cidade mais perigosa do mundo. Foi a pior oportunidade que tive para dizer "eu te disse, eu te disse". Dois dias depois, a delegacia de furtos e roubos liga para minha irmã, a busca em casa e a coloca no meio de dez homens fardados de preto dentro de um camburão e saem cortando sinal à toda velocidade, até um bairro de periferia onde está seu HB20 largado no lado do calçamento. O porta-malas cheio de produtos roubados, além de cheques e documentos pessoais. Minha irmã acha um tanto anti-profissional que a polícia tenha escolhido esse método espalhafatoso para mostrar eficiência. 14 dias depois_ ontem_ tentam roubar o carro da minha mãe, quando ela e minha esposa estavam diante a clínica obstétrica. Elas chegaram na hora de ver os criminosos quebrando o retrovisor e levando o espelho com eles.
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Não troco por nada minha vida no interior. Não há bares sofisticados e nem eventos culturais aqui; mas eu chego em casa em dez minutos de carro. Quando fico um dia na capital, eu sinto a doença da capital querendo entrar em meu sangue. É uma vida bestial, suicida, infernal, mecanicista e estúpida. Goiânia é um dos escalões do inferno. Aquilo não foi feito para seres humanos. São Paulo, um tanto pior e mais bestial, é o objetivo a ser alcançado por Goiânia, em pouco tempo. Daí não sabem porque o Brasil está como está. Não há tempo para pensar em longo prazo, quando se trabalha 8 horas por dias e se gasta 4 horas no trânsito (caso de São Paulo), ou 2 (caso de Goiânia). O indivíduo não se integra mais nos problemas da sociedade, porque a exaustão o torna apenas um burro da carga. E isso não é apenas os baixos funcionários, mas executivos, os médicos loucos por grana, os juízes, etc, etc. Todo mundo. Não sobra tempo para os filhos, que são criados apenas sob a influência dos órgãos oficiais de contenção, sem carinho e sem ternura, sem atenção. Daí sobrar tempo para pensar em Cunha, em CPMF, ou o que seja? Animais cumpridores de movimentos pavlovianos. Não me espanta que estejam cada vez menos espiritualizados. Os espiritualizados numa rotina dessa se matam. Nenhum espírito aguenta essa pressão. Não largo, por nada, a vida boçal com excesso de tempo e excesso de espaço que tenho aqui. Aqui é único paraíso possível, idiotas!
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Há uma cena que nunca me saiu da cabeça no magnífico filme As sete faces do dr. Lao. Uma mulher entra na cabana do vidente cego do circo do dr. Lao e lhe pede que leia o futuro nas linhas da mão. O vidente, entediado, se recusa. Ela, uma senhora requintada, vestida com pomposidade elegante, com seu ar inamovível de superioridade loura, ameaça com ira o velho cego, perguntando-lhe quem ele acha que é ao recusar um pedido de uma dama digna como ela. O velho então prende a mão da mulher à sua e perfila toda a vida futura que a dama terá pela frente, anunciando que nunca lhe aparecerá o cavalheiro que ela espera para lhe pedir em casamento, que ela jamais será a pessoa socialmente influente que almeja ser, que ela envelhecerá na solidão sem ter cumprido nenhum de seus sonhos de grandeza e glória, que ela morrerá esquecida por todos em sua casa solitária, que ninguém ao longo dos anos que lhe restam a amará ou se importará com ela, e que sua lembrança se apagará assim que ela for enterrada. A mulher consegue soltar sua mão e sai aos prantos desesperados da cabana, causando um alvoroço entre os frequentadores. Ela se esconde ao lado de uma tenda, chorando ainda mais, e uma outra mulher a encontra e lhe pergunta o que se passa. A dama segura o choro, limpa a cara, e diz que se sente muito feliz porque esteve com o vidente cego e este lhe assegurou que todos seus propósitos de felicidade se cumprirão imediatamente. Não por menos sinto a atração de chamar a internet, com seus blogs, twitters e Facebooks, de dr. Lao.