sábado, 5 de setembro de 2015

Protocolo kafkiano



Sabe-se que entre as poucas obras que Kafka pretendeu ver publicada estão seus aforismos; trabalhou neles em seus últimos anos de vida. Tem uma eloquente contradição ver que o montante de seus aforismos forma sua obra mais frágil e ao mesmo tempo mais poderosa. Seu trabalho de revisão ter deixado passar, já nos primeiros deles, aparente distração de palavras repetidas, revela muito sobre o autor. Dois desses aforismos pecam pelo enfeixe machista, dizendo que também ele teve suas concessões vaidosas às modas da época. Mas o restante deles são tão profundos, tão amplos e fundamentais, que transcendem a literatura.

Na verdade é um solipsismo tolo dizer que algo transcenda a literatura. A literatura que possui fronteiras a serem transcendidas é literatura estilista sobejamente humana no mais chão conceito. Talvez por isso que Kafka tenha revestido esses seus textos mais espiritualmente pretensiosos com deslizes voluntários: através dessa fragilidade consentida ele faz a coligação entre os inatingivelmente elevados níveis da mensagem com a mundanidade prosaica. Muito do que ele expôs nessas curtas frases é incomunicável, inapreensível, inominável. O tipo de coisa que às vezes pensar muito afugenta o entendimento, e deve-se usar a técnica de apreender a insinuação do objeto através do olhar lépido. Seus aforismos tem a mesma excepcionalidade não verbal das imagens produzidas em palavras de Jesus e Nietzsche. Mas há uma diferença entre esses três aforistas. Se uma só palavra pudesse resumir esses pensamentos de Kafka, seria humildade.

Nesse sentido, sua humildade é um desalento convicto mais reacionário que a humildade de Jesus: Kafka não a entende como uma arma de batalha. Ele está além de oferecer a outra face, não acredita que isso irá ajudar em alguma coisa. Também a humildade em Kafka está além de qualquer esperança. Cristo usava o dar a outra face como um auge da inteligência onde alcançaria a vitória sobre o opressor as hordas de indivíduos em lutas solitárias através da história. Cristo estava no início da história para poder dizer tal coisa, e cumpria uma missão didática. Já Kafka tinha consciência de que sua mensagem (porque ele também é um doutrinador imprescindível, nunca um simples escritor) jamais seria entregue; como em tantos outros de seus textos, a mensagem se extraviaria pela impenetrabilidade do caminho ou porque a verdade que ela levava era tão absurda que tinha a leveza que a confundia com o invisível. Nisso ele está em extremo oposto a Nietzsche , que acreditava tanto em uma indeterminada redenção à espera no extremo derradeiro de todas as provações. Sua mensagem não seria entendida porque ela era um complemento à arte, e ele foi, talvez, o único grande artista que enxergou sem eufemismos que a arte inflige diretamente contra a verdade.

Há muitos conceitos e intuições poderosas sobre a física em Kafka, e uma delas se iguala ao Princípio da Incerteza de Heisenberg. Kafka achava que a exposição formal de uma ideia através da arte afetava na capacidade produtiva da mensagem. Mesmo se conseguindo imprimir uma deslumbrante visão da eternidade em uma obra de arte, o simples fato do veículo empreendido para alertar a humanidade ser a arte dava ao receptor o alívio de não levar o aviso a sério. Talvez por isso ele fez seu amigo, Max Brod, jurar que queimaria seus rascunhos depois que morresse. O ser humano é um animal cultivado na milenar dança esquivante contra uma série perigosa de inimigos do pragmatismo, e com isso é um fator evolutivo inarredável nele ser inócuo a esoterismos mais que superficiais. Kafka sabia que só o terror é a forma mais eficaz para manter a atenção humana, ainda que ela se mantivesse por um período efêmero demais antes de decair em sua perene distração fisiológica; por isso toda sua obra é uma impregnação do terrível. Ele tinha a consciência artística extremamente apurada para saber, contudo, compor seus alertas inatingíveis com o necessário mobiliário de cena e trivialismo do enredo para torná-los degustáveis. Seus pesadelos opressivos atingiram a quintessência literária de serem investidos da mais pura narrativa paródica, terror que chega ao cume de fazer rir. Não é para menos que suas histórias sejam tão adaptadas para quadrinhos e para outros tipos populares de expressão juvenil, pois no horizonte de suas construções oraculares a sisudez é substituída inteligentemente pela comédia. Em Um artista da fome, por exemplo, as descrições iniciais da feira pública com os espectadores em torno do artista em 40 dias de jejum dispensa a cosmologia de um Hierinymus Bosch pela singeleza cinematográfica de uma antecipação a Disney. Em A colônia penal, tanto o executor dos castigos quanto a vítima magérrima com as costas tatuadas na carne viva lembram a impiedade esvaziada histrionicamente de peso dos desenhos de Asterix.

Tudo é risível e teatral, o autor prestando excepcional vênias à tradição de se contar histórias, mostrando assim que ninguém mais do que ele próprio sabia que a visão que trazia era forte demais para que a arte não cumprisse seu papel de, imediatamente servindo-se de veículo a ela, escamotear sua suprema importância. Kafka enxergava das zonas finais disso que convenciona-se chamar história, e tudo havia sido demasiadamente testado em vão para que alguma outra ideia terrena fosse aventada. Assim, nada sobrava para que se ativesse à coerência de doutrinador do que mandar que queimassem seu insuficiente espólio artístico, compensando, porém, sua falha com a conservação dos aforismos (no final de sua vida ele manda a Brod que destrua os aforismos, talvez pela doença já tê-lo esgotado). Os aforismos são seu veículo ideal: podem prescindir da arte, da estética. Seus aforismos são os mais orgânicos e incisivos. Tratam de temas que estão além e conjugam vertentes do conhecimento represados pelo poder das instituições ortodoxas, sem contudo ter a mínima importância quanto a preservar a restrição de direitos de exploração nela impostas.

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