Shakespeare é o caso mais eficiente desse constitutivo que ora e outra simulamos estar por esquecer ser um dos fundamentos da arte: o plágio. Parece uma ironia do destino_ que, firmando-se em seu propósito de coerência, plagia outras vertentes da realidade_ o tido como o maior escritor de todos os tempos ter roubado boa parte de suas obras de outros escritores. No ensaio de T.S.Eliot, lamentavelmente ligeiro mas relevante, que acompanha a nova edição de Hamlet recém lançada no país pela Companhia das Letras, vemos que Shakespeare não só copiou personagens, situações e o enredo de uma peça de Thomas Kyd para compor o seu Hamlet, mas, em alguns momentos, chegou simplesmente a revisar o texto de Kyd. E o detalhe mais impactante é que a peça de Kyd, longe de ser desconhecida, fora um sucesso de público apenas poucos anos antes de Shakespeare engrenar a sua empreitada. As informações oferecidas por Eliot vão além_ complementadas pelo prefácio do tradutor, que aponta ainda outros autores mais distantes no tempo como possíveis fontes do bardo_, comparando mesmo as similitudes de estilo entre Kyd e seu imortal copiador; e o que é pior: nos dizeres de Eliot, copiou-se fragilidades evidentes de estilo.
Eliot faz uma atribuição contrária ao cânone: "Longe de ser uma obra-prima de Shakespeare, a peça é certamente um fracasso artístico". Não se trata, porém, de uma crítica original, visto que Tolstói e Bernard Shaw se anteciparam ao americano. E mesmo o mais ardente defensor de Hamlet, Harold Bloom, reconhece que toda a magistral grandeza da obra está em suas imperfeições: Hamlet é, segundo Bloom, o personagem mais inteligente da literatura. Hamlet é uma obra tão carregada de perigo por sua intensidade espiritual, que suplanta Shakespeare. Eliot chega a se espantar com a coragem de Shakespeare em tratar de um calabouço de verdades tão terríveis. Ainda que minha peça preferida de Shakespeare seja esse manual de sutileza pérfida sobre a manipulação política que é Júlio César, Hamlet é o que mais me instiga a me reaproximar do raio magnético do autor. A trama é tão complexa, a exuberância de pensamento tão arrebatadora e sobre-humana, que não é para menos que seja a mais imperfeita escrita de Shakespeare, e que seja o exemplar cabal de que a potência da mensagem prescinde do respeito pelas normas da compostura do que seja originalidade e primazia narrativa. Christopher Hitchens compara duas passagens importantes entre Augie March e Gatsby que deixa mais que sublinhado que Bellow copiou a música, o estilo e a visão esotérica de Fitzgerald. O caso de Shakespeare se distingue, além do mais, por o poder da obra com elementos plagiados ter feito sucumbir no esquecimento o modelo usado.
Fui a única obra que li de Shakespeare e para mim é uma obra-prima, ainda bem que podemos pensar diferente dos grandes críticos e analistas literários.
ResponderExcluirPena que li em inglês e não domino tão bem a língua para a apreciar mais ainda, aguardo uma tradução que me garanta qualidade e surja nas livrarias nacionais.
Claro que hoje deixar-se influenciar por outros escritores sem os citar é plágio, mas na história da arte muito génios fizeram isso, retrabalharam o tema ou a personagem e ainda a melhoraram, resta apenas saber se no seu tempo o autor teria assumido essas influências e não seria plagio.
Aventuro a acreditar que Shakespeare tenha sido um desses gênios indiferentes quanto a meros detalhes protocolares de suas obra. E tem-se que lembrar que Shakespeare, apesar de ter garantido uma aposentadoria abastada com o sucesso de suas peças, não supunha que seria lembrado, nem passava por sua cabeça que aquilo que produzira duraria mais que uma década. Também gosto muito de Hamlet. No romance O legado de Humboldt, de Saul Bellow, o finado Humboldt aconselha em sua carta póstuma que seu amigo Charles Citrine renova suas forças espirituais e sua concentração artística relendo A tempestade, para assim se preparar para ser merecedor da herança que lhe deixava.
ExcluirLi recentemente Macbeth, na excelente edição da Cosac, mas por mais que me esforce não consigo ver qualidades literárias na peça e noutras que já li do bardo...Devo ser um leitor bem ordinário...
ResponderExcluirPode ser uma epidemia silenciosa, Ricardo. Você não está sozinho. Tolstói dedicou-se a ler Shakespeare por anos, em inglês e em outras línguas, para tentar desfazer essa mesma imperiosa impressão, e não conseguiu.
ExcluirCaro Charlles, sugiro a leitura da análise realizada, sobre essa questão, por Bárbara Heliodora, recentemente falecida, infelizmente.
ResponderExcluirNas Obras Completas de Shakespeare, editada pela Nova Aguilar, ela enfrenta o tema do suposto plágio com a firmeza e a naturalidade de quem foi uma das maiores estudiosas do bardo. A rigor, não se trata de plágio: seja porque à época refazer obras de outros autores e apresentá-las no palco era comum, seja porque Shakespeare nunca teria negado que se valia da versão de Thomas Kyd para elaborar a sua própria, seja porque a história de Hamlet é bem mais antiga (teria real origem em lendas nórdicas, pesquise por Amleto).
Parece-me que não é tão simples assim categorizar uma obra monumental daquelas como plágio e pronto (o que certamente contribui pra inferiorizá-la), sem avaliar todos os aspectos envolvidos.
Sobre uma boa tradução de Hamlet, a que consta na obra citada é ótima, foi feita por Anna Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça.
Vou seguir sua sugestão, George. Acho válidos os ataques, digamos assim, feitos contra as obras capitais. Não creio que contribuam para inferiorizá-las, senão o contrário. No ensaio de Eliot, percebe-se a veneração por detrás de suas descontextualizações da peça. Claro que depende de quem escrever tais críticas: o mero xingamento do ressentido cai na indiferença do leitor. Sugiro que leia o texto sobre Shakespeare escrito por Tolstói, no volume "Últimos dias de Tolstói", caso não o tenha feito.
ExcluirSobre plágios, talvez essa palavra hoje tenha uma força exagerada e bastante pejorativa. Pelos conceitos jurídicos atuais, alimentados por uma série de disputas mesquinhas no mercado de entretenimento, creio que Shakespeare realmente plagiou a obra de Kyd. Porém, isso não diz muita coisa. Essas coisas contribuem, penso eu, para a áurea de "força da natureza" do bardo, somando-se às dúvidas sobre o que ou quem está por detrás do nome Shakespeare, se a unidade acreditada como autor das peças realmente existiu.
É bem dificil hoje em dia entender plenamente o texto de Shakespeare. A curva de aprendizado é bem maior do que a média necessária em outras obras. O melhor jeito de se apaixonar pela obra de Shakespeare (tendo como unico exemplo eu hahaha) é ir comendo pelas beiradas. Se a pessoa se interessar pela obra e ir direto nela vai acontecer aquilo que acontece com quase todo mundo que tem 10 anos de idade e a professora de português obriga a ler Dom Casmurro, é o jeito mais eficiente de matar a literatura e criar ódio contra determinado autor que eu conheço.
ResponderExcluirEu recomendo essa palestra do CPFL Cultura para começar: http://www.cpflcultura.com.br/2015/04/28/hamlet-de-shakespeare-e-o-mundo-como-palco-com-leandro-karnal/
Eu recomendo ler a obra de hannah Arendt e Tony Judt para desenvolver um minimo de capacitade de reflexão, ironia e coragem intelectual para encarar a obra de Shakespeare.
Por ultimo eu recomendaria Ulysses do Joyce, que é puro Shakespeare.
Quais seriam essas obras da Arendt e do Judt?
ResponderExcluirPode ser as principais obras deles. Da Hannah o melhor é Eichmann em Jerusalem. Do Tony nós temos em portugues uma boa variedade de livros, pode pegar qualquer um. Talvez não tenha ficado claro no meu post mas esses são livros de História e Filosofia.
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