Texto com comentários, originalmente publicado aqui.
Vai parecer esperança, mas não passa da velha resignação. Hoje acordei com vontade de dar um basta em todas as reservas. Acordei de um sono completo, com quarto envolvido nesses escuros absolutos que me dão anseios de procurar algum indício de luz de que não esteja cego, com um lençol macio, com o travesseiro usual entre as pernas e o outro caído manhosamente de lado, sem uso. Foi um sono reparador, sem sonhos, e por isso não teria motivos que de súbito, agora pela manhã, diante o computador, eu fosse assolado por esse gigantesco tédio. Faulkner está errado, pensei, Faulkner é um fingido; como acreditar que o homem sobreviverá?, como acreditar que o homem é bom? Vai ver é porque meu trabalho de ficção não me esteja parecendo nada promissor; palavras de mais, adjetivos que não se desgrudam de mim, advérbios que escondem a obstrução de uma coisa genuína. Leio o que escrevo e parece que sofri uma involução, voltei a escrever com aquela paixão adolescente sem consequências do colegial, que só cativava por procuração professoras piedosas, que queriam elas mesmas brincar que acreditavam que algum de seus alunos levavam a promessa. Um analfabetismo no final das contas. Vontade de desistir; a felicidade está mesmo na música perecível; vontade de ser um cantor sertanejo, vontade de me assumir da forma mais franca possível que não tenho nada, ser canalha de cara limpa e acolher os dividendos da onomatopeia. Criar uma musiquinha para celular, se isso ainda é viável. Vontade de ganhar um prêmio acumulado na loteria federal, e gastar ostensivamente o resto de vida jogando para todos os desafetos a arte da corrupção na prática, e não tentar fazer isso através do placebo pobre da escrita. Ser um Edmund Dantés que inventa a sua própria vingança, vai criando-a no momento em que faz dobrar diante de si os joelhos dessa criaturinha levianamente vendível que é o homem, esse homem que o bêbado Faulkner, mal se aguentando em pé no palanque do Nobel, mentiu acreditar.
A minha vontade hoje é ser desbragadamente ingênuo, não me proteger contra nada. A eterna proteção exaure. Dá vontade de, de uma vez por todas, me resignar diante esse otário cibernético, máquina, presidiário ou quem quer que seja, que todos os dias, infalivelmente, deposita em minha caixa de e-mails inúmeras tentativas das mais idiotas extorsões. Aumentar meu pênis, receber uma bolada de um milhão de dólares, enviar auxílio para algum senhor de cômico nome mutante entre indiano e angolês, encontrar aquela garota ninfomaníaca que me descobriu e me envia notificações lúbricas de imediata intimidade, requerer meu prêmio (mais uma vez, que sujeito sortudo eu sou!) na loteria inglesa (!), comprar um imóvel promocional em Recife, ir a uma festa literária para a qual me convidaram com honras (até isso!). Vou abrir esses e-mails e vou seguir diligentemente cada passo exigido por eles; chega. Hoje é meu dia da resignação. Vou assistir a esses programas de adivinhas que passam de madrugada na tevê aberta, e ligar para o número embaixo, mesmo sabendo que o programa é gravado, para exigir meus 150 reais, e quando me atrasarem de propósito com musiquinhas de Kenny G., ou gritarem em meu ouvido que tem novos enigmas que podem aumentar o dinheiro, vou esperar com paciência, até que a tarifa do "serviço" telefônico ascenda aos 4 dígitos e eles me façam perder, "ahhhh, lamentamos que você não tenha visto quantos dentes tem o desenho do bode; da próxima você leva". O que pode acontecer comigo? Perdas econômicas? A vida não é isso, além de todo retumbar dos bumbos da filosofia de boteco? Que eles me roubem. Quem sabe a verdade esteja na profunda desproteção; quem sabe Faulkner tenha visto com sinceridade e seu texto adocicado do Nobel seja canalha por osmose da falta de consolo cotidiano. Se essa entidade se esforça tanto para me enganar, se esforça religiosamente para isso, se em sua distância ela só pense no serzinho passível de vilipendiação que eu sou, há nisso uma forma evoluída de amor. Dizer assim provoca até arrepios na nuca, mas, no fundo no fundo, qual o argumento contrário? Vou agora mesmo responder à Samantha, que tremula com os seios voluptuosos quase para fora do top de ginástica na tarja ao lado da caixa de e-mails. Oi, estou vendo que você mora em Goiânia, a mesma cidade que eu, e, quem sabe, poderíamos nos encontrar para um drinque. Mas não sei se vou conseguir me conter com você! Me digam, por que não acreditar nela? Mesmo que eu tenha a absoluta certeza de que é um computador que me joga essas frases pré-formuladas e que um nível de tesão tão engajado às oito da manhã de uma terça-feira é algo que nem os anjos de Jó seriam capazes, mas... considerem o altruísmo que fundamenta a coisa, a fé de quem planejou, as horas de trabalho que nada devem à concentração e o abandono de um cientista diante sua pesquisa, ou o compositor diante sua partitura. Oi Samantha, como vai? Não moro em Goiânia, mas posso chegar aí em uma hora e meia, é só me dizer que horas que é o encontro. Obrigado por ser tão atenciosa, mas acho que exagera em seus elogios; não sou essa tentação física que você acredita ver; tudo não passa da generosidade de seu olhar. Mas devo avisar que eu é que fico um tanto assanhadinho depois de alguns drinques, ainda mais diante uma loira monumental como você. Minha conta bancária? Lá vai...
Me recordo de não sei qual estoico, se na literatura ou na vida real, certa vez disse que era um encanto que às vezes um beija-flor viesse lhe atazanar as orelhas ou ficasse com o bico próximo a seu ombro; "não é enternecedor que um animalzinho destes te elogie ao confundir você com uma flor?" Claro que não sofro de uma estrondosa carência desse porte, mas hoje estou disposto a considerar que a ternura sofre uma brutal evolução. Não é enternecedor que um programa estelionatário na corrida louca da vida moderna escolha aleatoriamente você como remetente de todas as horas de zelo de quem o criou? Quando eu for me encontrar com a Samantha na capital hoje, vou sentir mais uma vez isso, como sinto a cada vez que tenho que enfrentar uma cidade grande. A vontade de assassinato que existe por trás de cada buzinada. Uma vez fui de carona com um amigo; ele parou diante a garagem de um prédio o tempo suficiente para retirar as malas do bagageiro para que sua esposa descesse, e um senhor esperou dentro de um carro do outro lado da rua, com elegante parcimônia, para poder entrar na garagem, até que esse amigo entrou no carro e deu a partida; então, o senhor começou a xingá-lo, filho da puta, caipira, vai tomar no cu seu bastardo, seu corno. O senhor fez isso com um ódio tão puro que o que antes era sua completa inofensividade invisível da qual eu nem reparara, agora eu o via como um guerreiro tribal psicopata que iria de uma hora para outra retirar uma pistola do porta-luvas e nos transformar a todos em estatística. A fuga da estatística no mundo moderno é nossa atual forma de ternura, me diz a voz de meu bêbado interno especialista em filosofia de caneca. E como fazer isso senão através da única coisa que sobrou de um depauperado aprendizado de amor ao próximo? Através da catarse do trânsito, ou da carranca no elevador, ou da virada de rosto em negação no shopping, ou da desconfiança esquizofrênica nas filas do banco da qual temos que nos comunicar em silêncio eloquente o quanto somos unidos no respeito sagrado em não tentarmos furá-la. Um dia, quando minha esposa passava por uma convalescênça logo após uma cirurgia cardíaca, eu resolvi aliviar a tensão inútil da espera indo à livraria de um shopping próximo, e na fila do caixa, onde eu via que havia apenas eu, um sujeito cortou vindo de não sei de onde por mim me dizendo que não iria aceitar que eu passasse na sua frente, ah, isso não!, eu pensei que se eu fosse um cidadão daquele mundo, seria lógico meu agradecimento por ele me oferecer daquela forma um calor humano de consolo, por mais estranho que tenha sido tal contato. Se não nos matamos após a buzinada e o xingamento, é porque nosso amor era legítimo, pois fugimos à estatística. Não seria impossível que o senhor e meu amigo se sentassem no final do dia para uma cerveja, e começassem uma forte amizade. Um dos personagens de meu romance despirocado é um conceituado especialista em Marx que deixa, de hora para outra, sua cátedra em uma universidade alemã e parte para um povoado esquecido do Caribe, e que mais tarde se descobre que seu desaparecimento aponta para a coincidência do surgimento das mais populares canções valenatas do rádio. Há um longo discurso com sotaque carregado de como tudo o que ele ambicionara no campo da escrita erudita se cumprira na composição das músicas banais de refrão fácil e que só falam do único sentimento que ainda traz um pouco de perseverança: o amor. Ele era um importante mantenedor da perseverança biológica da espécie, ele se julgava orgulhosamente um promulgador do equilíbrio social. Mesmo que houvessem facadas de bêbados nos bares dos povoados, sob o som de suas músicas, mas isso era a natural exacerbação que vem com derivativos da homeostase. A estatística não conta, a estatística é a mentira séria de uma derrota que nunca virá, que só existe no papel. Blá-blá-blá.
Por isso hoje minha vontade de cair em todos os engôdos, sem me sentir humilhado. Acessar os links sobre as ditas "celebridades", e confiar que elas são mesmo divinatórias. Fazer um mapa cabalístico das trivialidades delas e ver nisso um plano profundo da providência.
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