Mês passado participei de um simpósio profissional. Desde quando fui comunicado fiquei puto da vida, porque tais coisas não servem para nada a não ser atender a determinadas exigências burocráticas sem pé nem cabeça por parte de instituições de controle. Mas no final, valeu a pena. Fiquei conhecendo ainda mais o quanto somos um povo subdesenvolvido no caráter e na moral. Somos um povo tosco espiritualmente. Foi um ensinamento de reafirmação de todas essas tristes verdades cotidianas. Lá estava só gente graúda. Juízes de direito, promotores do MP, e, especialmente, entidades importantes da minha profissão. Como vou falar sobre coisas que me comprometeriam, vou escrever com lapsos de nomes e empregando o mínimo de referenciais possíveis. Beneficio-me sempre do fato deste ser um blog obscuro, praticamente desconhecido, que nenhum de meus colegas de profissão imagina que exista. Então, lá vai. (Juro que tudo neste texto é verdade, e sem nenhum exagero.)
Costumo ser rigoroso em questão de horários. Cheguei uma hora e meia mais cedo (foi exagero, eu sei, mas queria me ver livre logo da tralha), de modos que pude estacionar de frente ao prédio, na sombra. Estava munido de meus fones de ouvido, que pretendia usar na surdina, sentado no local menos visível possível. No dia anterior havia comprado O livro do desassossego, por inacreditáveis dois reais na Fnac, mas fiquei pouco prazo o lendo, pois o espetáculo que estava para se produzir à minha frente me tomaria totalmente a atenção. O prédio fica em uma grande avenida na capital, tendo na esquina uma rotatória. Os carros foram chegando. As vagas à minha frente e atrás foram preenchidas, e logo se via carros barateando à procura de estacionamento. O primeiro ato de nossa contumaz grosseria nacional, de nossa alienação quanto ao respeito ao outro, de nossos arranjos e jeitinhos brasileiros, eu vi de um motorista que estacionou de frente à garagem da casa que fica em frente ao prédio. Não bastasse que ele interrompesse sem o mínimo sinal de comiseração a garagem de alguém, o indivíduo aproximou seu carro do que estava à frente, para-choque com para-choque. Saiu do carro com a cara mais limpa possível, e entrou no prédio, cujas portas já estavam abertas. Olhei para os lados para ver se alguém presenciara tamanho descalabro, mas aí que comecei a ver as tantas outras façanhas que estavam em andamento. Na casa ao lado do prédio, que me pareceu um misto de residência e loja de eletrônicos, já estavam três carros estacionados NA CALÇADA, em frente aos três portões nos quais haviam ostensivas placas com letras em vermelho avisando GARAGEM NÃO ESTACIONE SE ESTACIONAR O GUINCHO SERÁ IMEDIATAMENTE ACIONADO. Em frente a uma mini-garagem com três vagas preenchidas pertencente ao prédio, já havia uma trupe de caminhonetas Hilux estacionadas. Toda a avenida ficou tomada de carros. Quatro horas depois, quando saí para o almoço, eu vi o absurdo do absurdo: em uma das ilhas da rotatória havia um Golf estacionado EM CIMA. Durante os cursos da manhã, uma funcionária constantemente interrompia o palestrante para pedir que determinados donos de determinados carros retirassem seus veículos dos locais proibidos em que os deixara, e determinados sujeitos encasacados com ares suntuosos de bons pais e diletos trabalhadores de altos salários se levantavam e andavam calmamente até a porta.
Há muito minha profissão perdeu qualquer vínculo médico, o que é bastante natural, visto que a própria medicina humana pouco tem de medicina. Agronegócio é a palavra sacramental da vez desde que eu fazia o primeiro ano na faculdade. De modos que eu não deveria ter ficado assustado com o que foi dito nas palestras. Nenhuma referência a bem estar animal, a não ser em termos estritamente de consumo: a manutenção de níveis de stress condizentes com um bom ph da carne. O que mais se via ali era a relativização absoluta de todos os códigos de conduta de fiscalização, em prol dos lucros dos empresários e latifundiários. Praticamente, nenhum animal poderia ser descartável, que doença fosse que o estivesse acometendo. Só se a coisa fosse realmente brava. Animais com aspectos repulsivos (e aqui foram apresentadas várias fotos que revoluteavam o estômago, desde mutações com a quinta pata saindo das costas, até tristes animais em puro couro e osso e com cancros purulentos de diversas nomenclaturas patológicas), todos eles tinham seu aproveitamento. Se uma bola de pus fosse descoberto no fígado, era só cortá-la de forma circundante e o restante poderia em sã consciência ser fatiado e vendido nos balcões dos açougues. Um detalhe capital foi estabelecido para o devido esclarecimento didático da plateia: a diferença entre um animal caquético e um animal excessivamente magro. Era fácil se ater apenas ao aspecto fundamental: os dois poderiam ser consumidos, com condicionantes. O empresário não poderia ficar no prejuízo. Faça-se embutidos, patês, charque, farofas.
A cereja do bolo foram os vídeos que um dos ministradores apresentou sobre seus serviços. Suas mãos aparecem, céleres, cortando todas as partes da carcaça, com rapidez, tudo feito para que ele parecesse tão virtuoso como um pianista de fama mundial. O Horowitz da faca. Enquanto mostrava os vídeos, ele ressaltava a importância de que o serviço fosse bem feito porque a carne brasileira é exportada para a Europa e para a Rússia. E nos vídeos, não apenas ele, mas nenhum de seus funcionários menores de equipe apareciam usando luvas. NENHUM. Suas mãos pegando em cisticercos, em carbúnculos, em edemas e líquidos orgânicos de todos os tipos, sem proteção alguma, e a mesma mazela submetida a todos seus auxiliares. Na hora das perguntas, ninguém foi capaz de soltar esse questionamento no ar, em uma sala tão repleta de patrícios automobilísticos infiltradores de espaços urbanos indiscriminados. Eu fiquei embasbacado, mas não poderia ser eu a fazer a pergunta, de maneiras que instiguei um desses falastrõezinhos de palestras que ficam em estado de volatilidade estalante a fazer, e ele pronunciou exemplarmente as palavras com o peito estufado. O palestrante titubeou, pigarreou, admitiu que o uso das luvas era obrigatório, e, fechando rapidamente o assunto, disse que alguns profissionais não a usavam de vez em quando porque retirava um pouco a sensibilidade para a descoberta de incorreções nas carnes. Tive que me controlar porque meu palhaço incorrigível e histriônico possesso interno quase saltou: camisinha então, nem se fala!
Será que ainda existem ingênuos que acreditam que a corrupção é uma deficiência das instâncias menos abastadas do povo? Os altos escalões são muitíssimos mais corruptos e aptos ao crime do que o pequeno comerciante e o aventureiro peripatético que vende produtos do mercado negro nas praças. O Brasil está em rápido processo de implosão, e o que ficará de epitáfio pode muito bem ser a frase do Marcola, o traficante que diz saber de cor o Divina Comédia, quando esteve diante os juízes e promotores: Vocês por acaso tem moral para me julgarem? Vocês são muito piores do que eu.
li este post aqui, e depois o q está abaixo, um valeapenalerdenovo q não tinha lido - deve ser dos poucos posts q me passaram.
ResponderExcluirsobre este aqui fico obrigado a calar, pelo outro, muito mais importante e urgente. basta ver o contraste - tua escrita é necessária. qdo te veremos publicado mesmo? resignado, escancarado em sua "santa indignação", como bem disse - há quase um ano - o Wagner Soares.
Fodam-se o Brasil e os seus corruptos.
É só um meio desabafo...
ExcluirRapaz. Me lembrei de um comentário seu aqui no blogue, que tu remeteu a Naipaul que somos subdesenvolvidos por que gostamos e queremos ou alguma coisa do tipo. Me corrija se eu estiver errado.
ResponderExcluirNão está errado não, apesar de eu não me lembrar precisamente que comentário é esse.
ExcluirEssa é uma das minhas preocupações recorrentes.
ResponderExcluirEsse post me lembrou daquela reportagem da piauí uns meses atrás, sobre aquela empresa de carne, a Friboi. A reportagem é de embrulhar o estômago, uma longa exposição do vasto cardápio de burocracias, corrupções e pilantragens brasileiras, temperada com muita ganância e ostentação. Mas tem um momento lá que me chamou a atenção, sobretudo: falando sobre o seu negócio, um os donos da empresa diz algo do tipo: "matar boi é tudo igual, o que faz a diferença é [qualquer clichê sobre gestão de empresas que não me lembro mais]". Aposto que sujeitos como aquele já são realmente capazes de dizer esse tipo de coisa -- matar boi é tudo igual -- sem realmente sentir absolutamente nada.
ResponderExcluirEsse artigo da Piauí é um retrato do baixíssimo nível do pessoal ligado ao meio, Fabricio. Um ramo da economia que gira bilhões, imagine então quantos poderosos da política e do judiciário estão nos bolsos desses caras.
ExcluirExcelente e oportuno texto, Charlles.
ResponderExcluirExcelente pela qualidade literária costumeira. Oportuno pelo panorama político.
A maioria das pessoas está aparentemente indignada com a alta corrupção. Mas... estacionar diante da garage alheia não é nada perto disso, não é verdade? Na verdade é. E diz muito sobre nosso povo parvo e hipócrita.
A corrupção está da alma do brasileiro. Ou melhor, na sua ausência de alma, de educação, ou de qualquer coisa que se aproxime de um mínimo de dignidade e decência.
Cada vez ( leia-se: todo dia, em todos os lugares) que me deparo com situações similares (ou mesmo piores) às que você narrou, tenho mais convicção disso.
Se há leis não as respeitamos e (algo incomum), quando as "respeitamos" damos um "jeitinho" (o diminutivo diz muito aqui, penso) de aliviá-las, de abrandá-las de acordo com nossa conveniência. Fazemos isso com naturalidade, fazemos isso com orgulho desse "jeitinho". Gabamo-nos de nossas artimanhas para ignorar e burlar leis, e trapacear. É mais uma "paixão nacional" muito comum ostentar nossa criatividade ilimitada neste sentido. É típico no nosso país. Nosso maior patrimônio cultural. Infelizmente.
A propósito, a temática de seu post lembrou-me duas crônicas: uma do Sérgio Porto, "Inferno Nacional", outra do Drummond "Da utilidade dos animais". Elas ilustram bem nosso temperamento vil. Passou também pela minha cabeça uma frase do Karl Klaus: "Medicina: a bolsa e vida."
Claro que há exceções. A obscuridade deste seu blog é prova de elas existem. Graças a Deus!
Obrigado, Marcos.
ExcluirA questão é tão profunda e envolve tantos pontos. Basta dizer que frequentemente o produto brasileiro está sendo barrado aqui e ali nas exportações mundiais. Agora é a vez da Rússia. Este ano, veterinários europeus recusaram vários frigoríficos brasileiros, incluso os da Friboi.
Ótimo texto Charlles, diz muito da minha revolta com todos desse país, e eu creio que as revoltas contra o PT no qual passamos hoje é na verdade inveja e não indignação, pois seu texto nos mostra como o nosso povo gosta de burlar a lei e sente orgulho disso.
ResponderExcluirNão há ironia quando se diz que a corrupção é um patrimônio cultural nosso. Está tão entranhada, que é impossível vencê-la. E em feedback, ela continuará sendo o alimentador de nosso atraso e subdesenvolvimento.
ExcluirVejo o quanto isso é sério quando levo minha filha para a escola. Não estou me gabando de tentar fazer as coisas direito, de ser o maioral, mas sempre estaciono o carro longo da escola, nas esquinas paralelas. As esquinas próximas sempre estão desocupadas. Desço do carro e ando até a escola, e vejo a quantidade de carros dos outros pais parados em fila dupla de frente ao portão de entrada. Eu tenho um olhar teleológico sobre isso que me deixa sempre triste: do que vale deixar seu filho para ser educado em uma escola, se seu mundo particular não vê que sua função de pai e mãe pouco está contribuindo para auxiliar nessa tarefa?
Sim, grande parte está nessa de se deixar consumir por esse erro na escolha de como viver! Acham por ignorância, que essa escolha é viável pelo retorno fácil e pela satisfação imediata. Mas se melhor examinarmos, constatamos facilmente que logo na frente tudo se fecha em uma ostentação vazia e desinteressante. Sendo maior sob o domínio da consciência, dentro de uma realidade verdadeiramente cristã, onge de um mimetismo viciado, somos muito mais felizes.
ResponderExcluirAcho que já comentei isso aqui. Há uma proliferação modística de programas de barganhas na tv paga, programas como Trato Feito, Louco por Carros, Reis da Barganha, Caçadores de Relíquias. Assisto-os todos, com mais frequência o Trato Feito. Neste programa, um dos donos da loja às vezes tem que ser sincero com quem aparece por lá querendo vender alguma coisa, e, em nome de uma imagem de idoneidade pública, esse dono oferece um pagamento bem superior ao que o ofertante requeria. Um exemplo é de uma mulher que aparece por lá querendo vender um broche de ouro em forma de aranha. A mulher pede algo em torno de 3 mil dólares, ao que o Richard, um dos donos, coça a cabeça e diz que tem que ser sincero com ela, que a peça vale bem mais e ele está disposto a pagar 15 mil dólares. A mulher aceita e sai feliz de lá. Há outros e outros casos. E, para os mais céticos, a questão aqui não é se Richard exerce essa sinceridade em seu dia-a-dia de dono de loja de penhores, quando uma câmera não está lhe filmando em rede global. A questão é que, sendo sincero ou não, ele preza pelo zelo de sua imagem, ele quer passar a imagem de um comerciante honesto, com valores.
ExcluirPois bem: há um programa imitação de Trato Feito realizado no Brasil. Assisti-o uma vez. Ele passa na Cultura. Creio que se chama Caos. A diferença já começa pelo nome. Neste episódio que assisti, ao contrário da preocupação de Richard, o dono da loja se vangloria por ter passado a perna em um freguês, ato que é oferecido a todos os espectadores através do registro da cena pelas câmeras. Um freguês compra uma pipoqueira antiga, e o dono lhe tasca uma chicleteira velha (algo assim, não me recordo), por um preço que soa aviltante, e depois o dono relata o ocorrido usando um sem número de gírias malandras para a câmera, dizendo que a tal chicleteira estava encalhada ali fazia tempos e que ele conseguira empurrá-la por um preço acima do que ela realmente valia. O cara quer passar a imagem de caloteiro, de predador, de esperto e tale coisa; isso para ele é que é a vantagem.
gosto do trato feito (americano), principalmente quando o objeto sendo negociado é um livro raro ou uma obra de arte.
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