Um livro importante, desses que seria bom se as pessoas lessem. Não traz nada de novo. Quase metade é puro exercício excepcional de retórica, o que não passa, trocando em miúdos, de retórica. A outra metade é um estudo mais contundente sobre a obtusidade criminosa e suicida da humanidade. O que mais assusta é que percebo que já se passou o tempo em que os livros terríveis, por mais terríveis que fossem, tinham o consolo de falarem de outro tempo, de um futuro a ser herdado para uns cinquenta a cem anos. Os livros terríveis de hoje falam de tempos terríveis a serem enfrentados agora. E o que Gray fala aqui são de problemas à primeira vista incompatíveis demais em seus gigantismos com a miudeza estúpida do homem. É tão assustador e premente quanto Colapso, de Jared Diamond, embora não ofereça a esperança tímida de Diamond. Para Gray, a julgar por este seu livro, a humanidade construiu um labirinto inescapável em que a extinção é fato a ser consumado. Lembro do curso de História, em que se falava que áreas de estudo como a micro-história, a história das mentalidades e a história oral serviram a tirar o foco da narrativa dos heróis e reis para o homem comum. E agora, todos os livros terríveis só falam de homens comuns. Há uma semana um amigo me disse sobre uma pesquisa que assinala que a era do livro desenvolveu mais inteligência nos homens, e que a era da internet afunda o homem em uma progressiva burrice. Eu percebo isso, de forma assustadora, em meu cotidiano. Esses dias estava ouvindo um colega meu dizer que, se fosse possível, se ele tivesse uma propriedade que valesse um milhão, ele a penhoraria e sumiria com esse milhão. O dito cujo é formado em geografia. Eu o desconcertei com o raciocínio óbvio de que, se ele tivesse uma propriedade no valor de um milhão, um banco a avaliaria por uma tabela de valores bem mais baixo, para depois oferecer de 100 mil a 200 mil de penhora. Constato essa estupidez por todos os lados, parece uma epidemia. Eu vejo claramente que os seres humanos estão cada vez mais estúpidos. Já disse aqui e torno a repetir o quanto de pessoas vem me mostrar um vídeo em seu celular, recebido pelo whatsapp, cujo conteúdo é constrangedoramente infantiloide. E o gosto estético! Ainda me recordo quando, um conhecido meu estando de carona comigo, ao me ver parando num sebo para comprar os três volumes de José e seus irmãos, de Thomas Mann, me dizer, querendo piedosamente me salvar do valor monetário para ele absurdamente alto dos livros: "não faça isso, eu sei dessa história e conto ela para você". O quanto besteiras que deveriam servir apenas a uma efêmera curiosidade de consumo, como Game of Thrones, são tidas como clássicos imediatos, revoluções da narrativa e revoluções estéticas, ainda que não passem do mais do mesmo recalibrado com sexo brutal e encheção de linguiça entediante, referências truncadas à história e filosofia com a profundidade das pesquisas no Google_ e, apesar da superficialidade, ou por causa dela, são tidas como cultura sofisticada. A esperança abortada que se poderia ter do livro de John Gray é que, afinal, todos os terríveis vaticínios já sentidos na pele apontados por ele se referem à bestialidade do homem comum. O homem do qual ele traça um dos mais impactantes retratos: o homo rudens, ultra-violento, ultra-egolátrico e vaidoso, que vive de moralismos sintéticos auto-beneficentes e hipocrisias que cursam atestados pessoais de encontros com a Verdade. É muito importante ler esse livro de Gray, ainda que o ser bestial do qual ele trata acharia que tal livro é uma súmula de elogios à sua supremacia de sobrevivente desapiedado, sentado em seu escritório ou em seu gabinete ou em seu consultório ou detrás da mesa da sala de diretoria de sua empresa. Confesso que meu círculo de amigos se restringiu bastante. Não me sinto superior, me sinto esclarecido. O homem esclarecido, o homem culto, jamais se sentirá superior. Muito pelo contrário, ainda que eu nunca abandonaria o caminho dos livros se em um retrocesso alternativo visse que eu seria alguém muito mais feliz e realizado se abstivesse da leitura. O homem esclarecido não cai na balela da procura pela felicidade. Dentro de valores comparativos, eu sou um homem esclarecido, o que pelo baixo nível geral não se trata enfim de uma conquista muito grandiosa. A sorte minha é que eu sou descansadamente feliz na solidão. Um dia desses veio aqui em casa um de meus poucos verdadeiros grandes amigos, um historiador cuja providência impôs a distância de mil quilômetros entre nós, agora que ele é chefe do departamento de cultura de outro estado, de forma que nossas conversas longas e agradabilíssimas às cinco da tarde entremeadas na degustação da camomila ficaram resumidas a uma vez a cada dois meses, quando ele pega seu carro e vem passar alguns dias aqui na casa de seus pais. (Esse amigo pegou a moto e atravessou trezentos quilômetros de puro gesto de amizade para assistir a meu casamento, há 5 anos.) Nesse dia em que ele veio, ele se confessou tonto de solidão. Ele disse que estava sozinho em sua casa, e teve que se sentar no sofá pois sentia que as forças se lhe esvaiam pela pressão de dias inteiros sem falar com ninguém. Ele também se dá bem com a solidão, por isso estranhei que me confessasse isso. Eu também não sei, se não fosse minha esposa e filhos, eu teria me mandado, não estaria aqui em uma casa estabelecida, nem sei o que seria de mim. A família me ensinou que se deve suportar o nível paupérrimo a que a grande maioria das pessoas se limita voluntariamente, e procurar veemente fazer com que seus filhos se tornem cultos por sua vez e esclarecidos para se deleitarem com o segredo de que são mais que números a serviço de um jogo. Ele me deu um livro do Braudel, e eu lhe dei o Notas do Subsolo. Ele me ligou dizendo que acabara de ler Cem anos de solidão, e estava extasiado, e agora entendia porque eu insistia tanto que ele lesse o Subsolo, estando já na metade dele. A pobreza compulsória de espírito da humanidade aponta para um futuro terrível, mas temos que manter a esperança.
Eu estou com esse livro de Gray na cabeça desde que o li no começo da semana, em dois dias. É um livro de um negror violento, mas, ao mesmo tempo, libertador. E hoje de manhã, enquanto a turma dormia (manhã fria), assisto o filme do Woody Allen que botei para gravar. Certa vez eu teci uma diatribe falando mal de Allen, mas é pura mentira. Eu adoro Woody Allen_ a adoro um tanto mais estranhamente seus filmes medianos. O de hoje foi um que nem sequer sabia que existia: Tudo pode dar certo. Um filme mediano, mas absolutamente encantador para mim. Talvez os que o viram vão pensar: o Charlles virou um sentimental de gosto decadente mesmo, ou coisa que o valha. O filme responde ao livro de Gray, o que talvez possa até ter sido intencional da parte de Allen (Cachorros é de 2002, Tudo pode dar certo de 2009). O filme trata sobre um ex-professor de física, altamente inteligente, que tentou o suicídio após a esposa lhe deixar, e que agora mora em uma espécie de sótão despojado, sozinho, cultivando uma visão niilista sobre a existência. O ator é fenomenal_ um dos poucos filmes que não traz Allen no cast do elenco_, e a gente é levado a ver Allen nele. Um certo dia, voltando de uma conversa de bar com os amigos, o herói se depara com uma garota que fugira de casa aportada na escada de seu apartamento. Ele a recebe em casa, e não existem duas pessoas menos condizentes uma com a outra. Ele é um loquaz misantropo com réstias de exuberância simpática que beira os 60 anos, ela uma garota recém saída da menoridade com nenhuma ideia substancial na cabeça e bastante ingênua. Os dois acabam se casando. O filme tem aquele didatismo incorrigível de Allen, cheio de arestas cinzeladas bem redondinhas (que funcionam sempre por Allen ser astuto o suficiente para justificar a falha artística na leveza de mostrar continuamente que não se leva a sério), e os diálogos mantem o ponto forte de Allen. Tá, tá, tá. Vamos em frente antes que eu me perca ainda mais. A mãe da garota aparece no apartamento; é uma mulher tipicamente WASP, branca e exsudando moralismos religiosos enraivecidos e descerebrados, que desmaia ao ver que a filha se casou com um velho ranzinza. Lá pelo final do filme, aparece o pai da garota, o marido exímio modelo republicano, sócio do Clube do Tiro, macho dominante e da mesma forma exsudando domínio sobre um deus cristão servil a seus propósitos ascensionistas. E aqui vai um spoiler filho da puta, ou um spoiler, filho da puta. A mãe caipira infinitamente limitada da garota é descoberta por um dos amigos do herói, e se torna uma talentosa fotógrafa; o pai caipira infinitamente limitado da garota assume sua homossexualidade em um bar, e se casa com outro homem. Essa é a resposta de Allen para Gray, e é justamente a resposta que Gray intui e quer ouvir de um leitor atento. Allen diz que a salvação para a humanidade é o homem deixar de ser comum. A certa altura, a garota simplória que se casa com o professor gênio da física o critica pela primeira vez, dizendo que ele tinha que deixar de ser ranzinza, tal qual uma criança emburrada, e ver que as pessoas não são má, apenas tem medo. O professor fica embasbacado e, na mesma diretriz sincera que o destaca, diz admirado que jamais esperava uma avaliação tão inteligente vinda de uma cabecinha tão fútil. Está aí, pensei. Allen em seu didatismo, em sua redondez límpida, atinge uma profundidade única em suas formas de concisão rendidas às exigências de atendimento às massas da indústria cinematográfica americana. Gray fala dos homens comuns, que, infelizmente, se tornam ainda mais comuns graças à tecnologia atender estritamente ao comércio. O homem comum que, finalmente, no cúmulo de milhares de anos de história cultural, tem toda a grande música, a grande literatura, o grande conhecimento substancial, ao alcance de um clique, como se diz, de graça, mas sua simploriedade visceral torna toda essa fonte de esclarecimento inacessível, optando pelo escatologismo da merda estúpida do zapzap. Os personagens desse filme de Allen se tornam livres, se revelam, perdem o medo, são paridos em plena maturidade quando o destino ou as convenções do bom roteiro os exorcizam e os fazem deixar de ser homens e mulheres comuns. Eles passam a usar o cérebro e pensar não por clichês e pelo titerismo dos inúmeros poderes instituídos da alienação e do comportamento de rebanho.
Esse filme do Allen teve influência do "Memórias Póstumas de Brás Cubas".
ResponderExcluirInteressante. Allen não contracenou, penso eu, por se fazer uma auto-crítica, olhando-se por fora da cena.
ExcluirNovamente sobre Game of Thrones, ontem assisti o episódio mais recente, e que tédio. Estive por dormir várias vezes. Quem acredita mesmo que cada episódio custa uma fortuna, acredita nos contos da carochinha da indústria moderna. O que eu vi neste episódio foi uma regulação de baixo orçamento em que usa-se alguns cenários co-desenhados pela computação gráfica, e algumas beiras de praia ocasionalmente despovoadas. Pura embromação. E as tantas incoerências? A patrulha da muralha de gelo, tão importante para zelar pela proteção dos reinos, vive à míngua, enquanto uma sociedade secreta (situada, apesar disso, no centro de uma megalópole) de assassinos, vive em um templo gigantesco com artes decorativas de primeira linha em seu interior. E... uma rainha ser presa por ter mentido em um julgamento de um homossexual??? Em uma sociedade aos moldes do pre-cristianismo????
Foulcault no senhor George M.
ExcluirNo início do filme de Allen, o professor está em uma mesa de uma lanchonete conversando com dois de seus amigos. Os amigos estão zombando dele porque ele está dizendo que Marx bebeu das ideias do cristianismo primitivo para sua teoria econômica. O que é isso, dizem os amigos, Marx com influência cristã? Aqui não vejo como uma crítica sofisticada à obtusidade global por parte de Allen; vejo a própria superficialidade na qual muitas vezes Allen sucumbe, como, por exemplo, em Meia noite em Paris, em que Hemingway e demais escritores são demasiadamente estereotipados . Hemingway neste filme não para um segundo de dar conselhos sobre literatura, o que é irritante e ridículo. Se Allen fosse representar Churchill, o faria dormir com seu charuto na boca. É uma das fraquezas de Allen. Quem, com um mínimo de leitura, não sabe que o marxismo tem raízes proto-cristãs?
ExcluirEm tempos em que Velozes e furiosos e os heróis da Marvel são os mais assistidos da história do cinema, roteirista fazem o que bem quer do espectador. Game of Thrones ganhou a incrível estatura que possui (a ponto de se falar que é a melhor série de todos os tempos) por usar a fórmula de perverter fórmulas tradicionais. Eles pegaram a fórmula da narrativa de fantasia, e a perverteram. Encheram-lhe de sexo, de uma pretensa e falsa lucidez maquiavélica sobre os bastidores do poder, de ausência de heróis, criando uma impressão de algo adulto, altamente intelectualizado, cerebral, algo que arrebanhou uma legião de pessoas dispostas a consumirem e vestirem todo tipo de clichês e poses instituídas pelo evento, como, p. ex., a necessária contraposição severa ao Senhor dos Anéis. (cont.)
É uma astúcia impossível de não dar certo. Pega-se um ícone como os filmes sobre o mundo de Tolkien, e fazem uma espécie de diálogo com ela, assumindo uma atitude soberba de ridicularização: nós é que sabemos sobre política e sobre o coração perverso dos homens, nós trazemos a inteligência cognitiva sobre a vilania em que o público pode usufruir de uma melhor disposição combativa para a vida. Enquanto, dizem eles, O senhor dos anéis e coisas do gênero são meras tolices infantis.
ExcluirE assim vai. Uma fórmula genialmente adequada para um público vazio mas ansioso por uma cultura com aparência de requinte que não exija muito. Vender a Branca de Neve como puta, em um mundo em que as fadas são alcoviteiras e o espelho mágico é pedófilo. Risível em todo seu nítido absurdo e apelação.
Para pessoas simplórias, a política mostrada como uma maldade assoberbante é atestado da verdade. Game of Thrones traz a maldade em um pretenso nível asfixiante e absoluto, que chega a ser espontaneamente cômico. Cai-se aqui no oposto das historinhas da carochinha mais singelas, em que a bondade é apresentada limpinha como reinação do mundo. A maldade em Game of Thrones é tão singela e ingênua da mesma forma.
ExcluirSe não te recomendei "Tudo pode dar certo" há tempos (pode ter acontecido), só pode (pode, pode, pode) ter sido por aquela diatribe. Eu adorei esse filme. É engraçado demais (e eu sempre coloco tudo junto na conta da graça - as ideias mais profundas).
ResponderExcluirJá o GoT, vi o primeiro capítulo e dali não passei, mas não por não ter gostado - sim por ter perdido a companhia da esposa (too much sexo, Rô) e por não ter me escapado estes clichês a q te refere (acabam sendo clichês)... ainda que possa haver ali algo de instigante, como num jogo. Parece q há, e em algum momento devo ver esta série.
Estou frequentando um curso de filosofia da Nova acrópole, instituição q só conheci recentemente e, apesar da primeira impressão dúbia q te dá o pessoal trabalhando só no voluntariado, no amor e tal... to gostando bastante das pessoas q tenho conhecido; gente realmente interessada em conhecimento, gente preocupada com gente, e não só com seu umbigo, e etc. Exercício diário para não deixar-se comum.
Nova Acrópole!? Frequentei muitos cursos em uma entidade com esse nome, quando era mais jovem.
Excluirpois é. é uma organização internacional. a verdade é q alguma coisa sempre me chamava à bela casa em q antigamente estavam sediados (a casa onde fica a sede atual, no coração de porto alegre, é ainda mais bonita).
Excluirse vi corretamente, há uma sede em Anápolis e outras 3 em Goiânia. uma boa visita para qdo forem pra lá numa dessas (em vez da livraria do shopping).
contei isso por contar, mas outro dia encontrei lá um personagem desses q aparecem por aqui, como o velhinho sentado em frente a uma casa, lendo um livro. um senhor de chapéu q é uma figura, conhece de tudo e tem um humor fantástico.
O que esse cara aqui fala sobre a violência pra mim vale também sobre a estupidez. Pra mim sempre existiu, mas com a internet entra em nossos lares com mais eficiência. Hoje em dia é mais difícil se fechar. http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/05/1630173-internet-so-evidencia-violencia-social-brasileira-afirma-sociologo-espanhol.shtml?cmpid=facefolha
ResponderExcluirTudo Pode dar Certo é um ótimo filme em sua primeira metade. Depois desanda, exatamente quando chega a mãe da moça e o filme vira uma comédia familiar de sessão da tarde.
O filme tem a preocupação recorrente de Allen em mostrar referências literárias. Tem até uma referência a O som e a fúria. Como eu disse, eu gosto mais dos filmes medianos dele.
ExcluirFacebook já é um recurso falido. A grande maioria das pessoas tem, mas boa parte delas já sabe que o fetiche do reconhecimento que tinham a impressão de angariar com a exposição de suas vidas felizes no começo, agora já se esgotou. E os tais intelectuais do Facebook também já chegaram ao ponto em que a reavaliação de seus valores reais de pensadores não pode ser mais adiada, frente ao esgotamento que o excesso de frases mutuamente elogiosas causa nos usuários dessas redes. Há um certo ponto inevitável da trajetória em que o ego começa a questionar se o alimento lhe dado é realmente sincero. Como em todas as "grandes revoluções" humanas, coisas como o Facebook (falo dele, mas estou falando de todas as plataformas tecnológicas criadas afoitamente para uma rápida sobreposição antes que seus prazos de validade muito curtos expire_ hoje a moda é o whatsapp), quando perdem a estridência descomunal do início, servem para mostrar o que está na base de todo esse maravilhamento pseudo-esotérico: a raiva homicida, o xingamento, a indigência mental, todas atravessadas por uma deficiência linguística abominável.
Eu sempre acreditei que nós, brasileiros, somos um dos povos mais violentos do mundo.
já leram isto aqui?
ResponderExcluirhttps://medium.com/bang-bang/a-hist%C3%B3ria-do-trem-bala-brasileiro-f27235ccc4b7
LEIÃO.
https://medium.com/bang-bang/a-hist%C3%B3ria-do-trem-bala-brasileiro-f27235ccc4b7
ResponderExcluir