A verdade para Tarkóvski nunca é um fim alcançável, uma possibilidade de satisfação consciente que permita uma harmonia mediadora entre o tempo em que vivem os personagens e o tempo do mundo que os cercam. A verdade para Tarkóvski é sempre um sopro incognoscível, presciente, cuja grandeza alienígena não se presta sequer à intuição da loucura; está além e em volta de tudo mas a uma distância contraditória que é ao mesmo tempo friamente indiferente e gestativamente vigilante; sua efemeridade insuportável faz com que os heróis tarkovskianos que existem para a tentativa obsessiva de alcançá-la procurem ficar de frente para onde sentem que sua força emana, o que, em decorrência, faz com que eles não sejam mais deste mundo, abdiquem de compartilhar a velocidade do dia. Por isso, diante o inominável inexequível, os personagens de Tarkóvski são apresentados como paisagens internas, são largos panoramas desérticos, imensos silêncios, uma fremente e budística imobilidade, e assim sabemos quais os materiais de uma angústia cósmica compõem seus puros mobiliários espirituais, podemos viver em eterna lembrança retardatária em suas companhias dissipadas por não conseguirmos mais retirarmos de nós aquelas arquiteturas descomunalmente vazias e absurdamente belas.
Assim, em Nostalgia, o herói exilado na Itália é uma pradaria russa em que vivem em eterna e inapreensível felicidade a família que deixou para sempre, e uma catedral inacabada com colunas magníficas que sobrepõe ao primeiro ambiente; o professor louco, que mantinha em cárcere privado a esposa e os filhos para protegê-los da fúria do mundo, é uma casa escura e em ruínas, com infinitas goteiras, úmida com água represada por toda parte, com uma porta inútil que abre para o mesmo lugar no meio da sala, e também uma praça na cidade onde ele prega a revolução do alto de um andaime para uma multidão congelada e sem vida. Mesmo os personagens secundários são vestígios de uma partida, a importância que suas simploriedades limitadas revelam em estarem apenas na materialidade do presente é carregada de uma falibilidade fóssil, pois os vemos no continuum temporal em que existiram e desapareceram para sempre, são fímbrias da lembrança, às vezes fagulhas de luz veranica constrangedoramente felizes; é o caso da belíssima mulher que acompanha o herói de Nostalgia, para a qual suas investidas se batem contra a total abstração e desinteresse deste, sua total indiferença às jogatinas sexuais dessa rasa faixa da realidade. Vemos a beleza saudável, plena, exsudante dessa mulher de Botticelli, sua juventude clamorosa, e por um momento pensamos no peso da perda de possibilidades lenitivas que poderia recair sobre o herói; mas então a mulher de Botticelli aparece longamente, o foco em seu rosto angelical cuja tristeza da rejeição é mais um acréscimo à armadilha, e vemos a deterioração acontecendo em sua lentidão irreversível; vemos uma papada incipiente e a ressequidão da pele, as marcas feitas pelo efeito colateral da corrente de tantos pequenos e acumuláveis sofrimentos de se optar em viver no pragmatismo degradante dessa terra; vemos os hormônios e a química intranscedente agindo em seu poder inexorável que corrói sem piedade a lâmina fina da efemeridade encantatória. Tanto que essa mulher, quando desiste com furiosa zombaria do herói, retorna à sua paisagem interna, mostrada em um escritório de alguma repartição pueril, em que um gordo homem de terno sentado a uma mesa passa para um outro burocrata emaciado pela corrupção um maço de dinheiro.
Os ambientes dos filmes de Tarkóvski tem sempre paredes calcinadas, um ar sépia devastador que ressalta a solidão, como se isso tudo fosse um dos efeitos desse sopro salino, radioativo, da verdade. E o impacto é que essa verdade inaudita consegue ser passada para o espectador, no modo como Tarkóvski divide a impossibilidade efetiva de sequer podermos ver os contornos das sombras que ela provoca.
Postagem original aqui.
Postagem original aqui.
Paredes calcinadas: fiz pra mim uma versão da Maja Desnuda, de Goya, à maneira de uma ruína de Pompéia, quase indiscernível, para ilustrar um trecho de um poema de John Donne: "A vida é a sombra de um sonho que está fugindo".
ResponderExcluirIsso tem a ver com Tarkóvski, com Tchekhóv e outros quaisquer que, enquanto se agarram ao que seria a vida e toda beleza que nela haveria, mas percebem que ela também é algo que escapa e tem as raízes bem fincadas em nossa imaginação que, para se reconhecer sólida, cria a realidade virtual, e nela prospera em seu grande vazio.
Ô, depressão...
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirBelo texto Charlles!
ExcluirOs filmes de Tarkóvski me parecem absolutamente sinceros e acho que principalmente nisso consiste sua força, sua ternura, diante da vida, das suas personagens e de seus (ou nossos) dilemas.
Nas imagens hipnóticas de sua obra, as histórias traduzem com perfeição o impasse frente ao sentimento de solidão na vida. E, no entanto, ele não se presta a defini-la. Daí a Beleza de seus filmes. É um poeta que intimamente vê, sente e se propõe a mostrar sua angústia sempre com uma sensibilidade que, embora inquietante e deprimente é, repito, sincera e verdadeira.
O verso brilhante de Donne (citado pelo Marcos Nunes) enfatiza que "A vida é a sombra de um sonho que está fugindo". Poderosa metáfora, sem dúvida. Pode ser que a Vida também seja isso. Seria uma bela resposta do poeta se lhe perguntassem: “O que é a Vida?”. Prefiro, contudo, a belíssima passagem do Dom Quixote quando o Cavaleiro da Triste Figura se bate contra os Moinhos de Vento, como ilustração a tamanha “pergunta”.
Como disse Valéry: “Se soubéssemos, não falaríamos nem tampouco pensaríamos”.
Essa frase lembra-me muito os silêncios de Tarkóvski...