segunda-feira, 12 de abril de 2021

Trilhos


 

No trem para S., encostei-me à quina do banco com a janela, o rosto um pouco abaixado de encontro à gola da camisa do exército, com os olhos nivelados com a paisagem mutante lá fora. Os sons das rodas de ferro sendo alavancadas pelas barras de impulsão; a cabine cujos encaixes tremiam quando toda a máquina se recolhia em sua dimensão retilínea para poder passar pelas curvas dos trilhos; os vidros cedendo, de forma quase imperceptível, às leis da termodinâmica, sofrendo dentro das atribuições estudadas pelos engenheiros de construção a compressão dos encaixes metálicos_ tudo ia massageando meu ego destroçado, que só naqueles instantes de consciência que a brutalidade dos mecanismos do mundo envolvia tudo o mais que existia, as coisas delicadas e as coisas que respondiam às suas funções mais rígidas, compreendia que havia uma zona de equilíbrio para que a fragilidade pudesse sobreviver em relativa paz com a força absoluta. Halperin, Halperin_ uma voz dizia, balançando a cabeça sob a canção milenar da sabedoria expressa com resignação_ a sua jornada, no fundo, olhando com uma capacidade mais restringida para a admiração, talvez possa ser interrompida num estágio mais precoce, a procura apaziguada pela aceitação de que seu lugar seja entre os que se silenciaram sem medo diante os grandes enigmas. Talvez a nobreza verdadeira seja apenas o deixar-se ficar sonolentamente ao embalo das coisas milenares. Eu achava mesmo que essa voz agora dizia algo que enfim podia dar ouvidos, afinal o que diabos eu procurava? Não me pareceu que a revolução, nos moldes adotados pela turma de Ernesto e Libertad, justificasse a grande sede por propósitos que me dominava. Aliás, qualquer revolução, me parecia, era um enorme engodo, cujas motivações nunca eram as que propagavam nos ideários onde seus heroísmos de cartilha pensados sob eflúvios alcoólicos à noite eram impressos, mas suas turbinas se moviam por recalcadas ambições pessoais_ dominação, sexo (no caso de Libertad), falta do que fazer diante a pequenez do bípede a quem não foi dado a constituição própria para o vôo. Como estava cansado desses propósitos majestosos.
            De frente a mim, com as cabecinhas apoiadas no encosto do banco, havia um menino de uns oito anos e uma menina mais velha, talvez uns treze, que desde que o trem se colocara em movimento me estudavam com atenção. Meu olho roxo e minha aparência geral de destruição os deixavam impressionados. Eram loiros, sardentos, e seus pais, parecia ter-lhes adotado o estilo de criação de os deixarem à mercê da sujeira saudável para reforçar seus sistemas de defesa. A menina, de imediato, só de olhá-la, já se podia perceber ser a antípoda ativa do rapazinho, de cujo rosto partia uma total dependência dos humores da irmã. Se a menina sorria por nenhum motivo, sua cópia masculina e mais nova estendia a face num sorriso também sem explicação; se ela, por sua vez, balançava a cabeça ao embalo de uma melodia secreta, ele também passava a cantar, repetindo o ar de alheamento, sua canção particular. A menina tinha um olhar diabólico, parecia conhecer profundamente o estágio de torpor exausto dos pais_ um homem e uma mulher mirradinhos, com uma perfeita máscara de estupidificação nas caras_, e aproveitava com astúcia a liberdade involuntária que tinha. Minha presença arranjada pela benemérita providência divina, logo atrás de seu banco, era uma ocasião deslumbrante da qual ela tinha de demonstrar com todo afinco estar à altura do merecimento. Um ser que transparecia conotações ainda distantes de sua experiência, de que se situava num impreciso limite com o invisível, mexia com as considerações sobre bondade e medo que aquele casal simplório havia lhe inculcado. Seus olhinhos perversos procuravam algum indício de que eu fosse culpado por minha aparência, para então desembaraçar-se de qualquer remorso e ser também um instrumento para acentuar meu expurgo. Fazia-me caretas discretas, que pareciam dizer “não, bobo, não tenho tempo para você”, e retornava a estudar a composição de sua proeza vocálica, que apenas fazia fundo sonoro à procura por novas curiosidades oferecidas pelo ambiente. E o pequeno ser que lhe arremedava fazia o mesmo, revirando o pescocinho, com uma segurança de que aquele era o caminho certo para novas diversões. Então ela mostrou toda a potência de seu conceito sobre estranhos, me crivando um olhar onde a graduação de sua certeza era expressa pelo movimento das pálpebras_ quando se semi-fechavam, que era o que fazia então para manter toda sua concentração sobre mim, estava deixando claro que sabia o que eu representava. Não era tola para cair nos arranjos que os adultos demonstravam criar para submetê-la; reconhecia que muita coisa lhe passava batido pela condição de ainda ser criança_ esse termo que limitava sua vontade e contra a qual destinava toda sua rebeldia, inclusive o seu desprezo pelo irmão cuja estupidez era ainda maior por adotá-la como modelo, mas tinha um confiança em si mesmo que a tornava militante contra essa estupidez que lhe chegava de todos os cantos.
            Decidi confrontá-la, pois estas idéias todas aparecerem na minha mente e me vi tomado por uma súbita admiração por aquela menina. Oposição poderia ser verdadeira amizade, como já disse o velho Blake, e ela não iria querer que eu lhe viesse com a amolação de tratá-la como uma menina. Pus um ar de severidade nos olhos, resisti ao seu encaramento e disse, (não sei por que):
            _ Essas feridas eu as ganhei numa briga de trem, semana passada.
            Ela não mostrou nenhuma reação de empuxo contra ter-lhe dirigido a palavra. Seu olhar abrandou-se um pouco, não em sinal de começo de confiança, mas para avaliar o sentido daquilo. De súbito, passei a crer que ela fosse uma espécie de criança ultra precoce, que nada haveria de mais familiar a seu espírito centenário a realidade atroz dos trens, para a qual vagabundos e deserdados gerais faziam meio corrente para atravessar de canto a canto o país. Um traço de mulher madura, não de todo desprovido da feiúra temerosa das anormalidades, passava por seu rosto à medida que refletia. Então, ela recolocou os olhos em mim, carregados de faíscas opinativas como estavam há meio minuto, e me disse:
            _ Nada incomoda mais aos punhos do senhor Santiago do que vagabundos feito você.
            Sua voz era árida como cacos de vidro roçando uma parede, mas ainda assim bastante doce. Respirei aliviado. Não, não! Era uma criança como qualquer outra. Eu estava no planeta usual que a detivera de experiências alienígenas por esses anos todos. Olhei para ela por sobre o desnuviamento de meu sorriso, achando que se ela tivesse realmente os anos a mais que de primeiro achei ter, saberia que eu roubei a expressão de piedade terna pela arrogância inofensiva da inocência de algum filme americano de década de cinqüenta. Mas ela levava a coisa ainda bem a sério. Apostava nos protetores músculos desse seu herói das viagens, Santiago.
            _ Pois não foi Santiago que fez isso a você. Santiago não deixa sobreviventes._ daí ela pôs a língua para fora, uma língua rosada de algum produto dulcicorado de mercado que seus pais omissos deveriam achar ser parte da força imunizadora do mundo livre, e me virou as costas, pulando sentada sobre seu banco e saindo de vista. O protótipo masculino seguiu-lhe o exemplo, lanceando a língua, embora de forma sedutoramente desprovida de conotações políticas quanto a conhecidos poderosos do ramo da segurança de trens, mas permaneceu olhando para mim com os olhos cheios de hilaridade vazia, sentida apenas pelo fato maravilhoso de estar vivo.

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