sábado, 10 de abril de 2021

Incidentes Protocolares


 

O que permeava o mais profundo da mente do meu avô era sua consciência de que fazia parte de alguma casta ainda não de toda determinada, cujas raízes eram obscuras e os méritos não descobertos, mas que outorgava a ele seu direito de pertencimento irrevogável. Naquela aldeiota perdida no meio das serras, onde a lentidão era dominante e o tédio temperava os humores e regia a filosofia resignada de alguns, ele se mostrava sempre altivo, andando com seu passo galante por entre os jogadores de caixeta que promoviam campeonatos particulares arrastados por epopeias semanais e que ele premiava seus campeões alternantes com caixas de elixir paregórico e balas de gengibre. Dormia ainda na pensão da velha Ofélia, uma senhora rude de feições impenetráveis, que o surpreendia com algum vislumbre de que estivesse por romper sua casca protetora com algum inesperado sorriso e com uma ainda mais inesperada confissão de algum antigo amor nostálgico, mas que quando parecia estar no limiar da revelação voltava a cair em seu fado eterno de lamúria silenciosa e remoer de alguma dor encalacrada há muito tempo na alma. Já tinha a farmácia estabelecida e os clientes fiéis que lhe permitiam comprar para si uma casa própria, como soe ser a respeitabilidade esperada de um doutor, mas ele insistia em permanecer no mesmo quartinho da pensão, um cubículo com uma janela basculante e uma cama de solteiro que seus pés de vara pau ficavam para fora na hora de dormir, e cujo teto de telhas sem forro distribuía com generosidade democrática os sons das paixões não de todo sinceras das meretrizes no cio e gatas pardas caçadas nas noites para sanar sua solidão, de modos que os peregrinos, cuja sorte de suas erráticas aventuras os faziam parar ali, podiam ouvir com um lastro de inveja suas performances sobre-humanas, assombrados ao constatarem ao raiar do dia que tamanho prodígio vinha de um homem de aparência tão impoluta que só uma mente doentia imaginaria ser o mesmo animal desconsolável que os impossibilitara o sono, não se sentindo seguros de reclamarem à inquilina. Se bem que, com o tempo, a velha Ofélia acabou ficando cúmplice de suas lubricidades, de tal maneira que passara a facilitar suas caçadas de uma forma que ele já não precisava sair pelas ruas, colocando as vendedoras ou as professoras que vinham dar cursos de aperfeiçoamento para os funcionários municipais nos quartos ao lado do dele, o que, as presas já amaciadas ao longo do dia com seus sorrisos, sua polidez estudadamente distante e astutamente desinteressada, seu cálculo preciso em tocar-lhes a mão na hora de se servirem no jantar como se fossem inocentes acidentes, caíam desbaratadas na armadilha já pronta quando ele as puxava para o cubículo e as faziam esquecer de suas promessas de fidelidade feitas aos maridos e namorados com uma culpa que só lhes aumentava o prazer de agirem como putas.

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