Anselm Kiefer, Heroic Symbols, 1969 |
Chego ao escritório hoje e tenho que ouvir os mesmos clichês, as mesmas ladainhas, as mesmas ideias fixas e o mesmo ódio que pretende ser debochado. Me resta concordar com tudo, rir e levar na esportiva; não dói nada ser falso, tamanha a minha consciência de que contestar esse muro é não só inútil quanto demasiadamente desgastante. Eu não estou certo, não me ponho nessa situação em momento algum, apenas optei por descartar o máximo de relativismo que me seja possível. Já expliquei isso antes para alguns colegas, mas ou parece que eu é que estou num estágio de fundamentalismo, ou eles é que são incapazes de enxergar algo que não seja o desesperado utopismo. Querem um futuro que não cabe em nossa medida como povo, uma redenção vinda de não se sabe de onde. A vingança que estão tendo nestes dois últimos dias não lhes parece mais doce; eles esperavam uma catarse completa, uma expiação que proporcionasse a simplicidade inquestionável da dicotomia bem/mal, e não tiveram. Estão em um desbaratino tão delicado que não podem se por como logrados, porque isso destruiria de uma vez as suas já frágeis certezas. Me recordo então do Herzog, um dos personagens do grande Saul Bellow que moram comigo eternamente, ele andando por Chicago se questionando se realmente lera os livros certos e se ao lê-los não fora um tanto preguiçoso, se a verdade lhe escapara. Cogito se eu não estou errado; diante essa malta de pessoas que se regala com o conforto da certeza comunitária, se eu não deveria fazer o mesmo, a história não se avultará para provar que a voz de deus é a voz do povo e eu não passo de um esnobe tolo. Afirmar isso seria jogar no lixo todos os livros de história e toda a impactante literatura política que me passou pelas mãos, eu os entendendo ou não. Capitular seria mentir para toda a minha vida em que me preparei, mesmo não tendo a consciência disso na maior parte do tempo, para a ocasião inevitável em que eu estaria absolutamente sozinho. A busca do esclarecimento não passa disso: se preparar para o momento inevitável em que a solidão o segregará do poderoso senso comum; tornar-se mestre do silêncio. Muitos indícios de que o momento está chegando, e agora eu tenho filhos, uma esposa, agora tanta gente que eu amo que falar não me parece uma boa coisa. Lembro do jovem Elias Canetti na Kristallnacht, quando o terror de estar no meio de uma massa enfurecida ditou todo seu tema de como evadir-se do pecado do coletivismo_ escreveu Massa e poder, uma bíblia e uma vacina não devidamente lida. Lembro do conto A bandeira inglesa, em que um Kertész demasiadamente lúcido descreve a euforia de meros segundos que foi a sarcástica revolução de um carro metralhado com a bandeira inglesa da libertação abortada. Aqui eles estão falando de Bolsonaro, de militarismo; um colega negro chega a falar que certa expressão do racismo é mesmo legítima. E me sobra o orgulho de conhecer uma nova força em mim, a da dissipação, a da não importância, pois espero dar a hora propícia para ligar para minha esposa para perguntar se o plano que fizemos ontem para facilitar o sono de nosso filho de 10 meses, Eric, funcionou: o de colocar um aparelho de som no quarto tocando as músicas que o fazem desmaiar durante a noite: uma partida noturna efetiva às custas de Bach e Mozart, de Mogwai e Explosions in the sky. Não sei até que ponto esse meu desinteresse corrobora com alguma coisa, se isso também não é seguir as massas. Talvez eu esteja me achando ingenuamente astucioso demais.
Coloque pro Eric, além de Mogwai, o Godspeed You! Black Emperor, Charlles. Tente também a ruído/mm, que é uma banda brasileira. Sempre funcionou comigo quando jovem.
ResponderExcluirEu estava mesmo precisando de mais dicas, eferim. Explosions in the sky é muito bom, coloquei o álbum deles "The Earth Is Not a Cold Dead Place", e mais o novo do Mogwai, que também é muito belo. O Eric está impossível, pensamos até em vendê-lo para os colombianos (ele é bonitinho e tal e durante o dia tem uma cara de anjinho bem comportado, o que serviria de propaganda), mas tememos a devolução após a primeira noite. Passa a noite inteira acordando, e aí eu tenho que ligar a música na sala e deitar com ele, e aí ele dorme. Daí resolvemos comprar um som novo e colocar no quarto, de modos que a partir dessa noite a casa é uma profusão de música ininterrupta. Parece que funcionou, em vez das 30 vezes em que acorda, acordou 3 vezes. O duro foi a Dani conseguir acordar às nove horas com os concertos mozartianos tocados pela Mutter na cabeça.
ResponderExcluirDepois que entrou pro Face deu pra ver mais de perto como a coisa é feia, né? O nível da discussão no blog sempre foi bem melhor, pena que parou mais nos últimos tempos.
ResponderExcluirEu não parei. O Face é vazio e frio.
ExcluirO Face também é efêmero. Volta e meia retorno aos comentários aqui, alguns de quatro, cinco anos atrás. Lá é beeem mais difícil fazer isso.
ExcluirFalo que parou mais a discussão aqui. O fluxo de comentários diminuiu, não?
Paradoxo: a audiência aumentou mas os comentários diminuíram.
Excluireu estou lendo sem comentar, diluindo UNS acontecimentos aí
ResponderExcluirEu também estou lendo sem comentar...
ResponderExcluirEstou exilado... Ando com uma certa depressão... É difícil caminhar...Minha glicose subiu... O que ainda me salva é meu filho é meu livro...
"A busca do esclarecimento não passa disso: se preparar para o momento inevitável em que a solidão o segregará do poderoso senso comum".
ResponderExcluirCharlles, querido amigo, nunca tive tanta certeza sobre o dito acima.
Charlles, publiquei seu aforismo no meu "face".
ResponderExcluirEstou muito triste com isso tudo, Ramiro.
Excluir"Os pobres de espírito são menos bem-sucedidos do que os ricos de espírito, mas eles são, por essa exata razão, mais passíveis de ser salvos. Graças a tal pobreza, eles de fato não são cientes de muitas das possibilidades de discórdia que os ricamente dotados transformam com tanta facilidade em efetiva desarmonia." - Huxley
ResponderExcluirÓtima reflexão.
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