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A bonita e expressiva capa da editora Grua |
Jesus Cristo talvez seja minha maior fascinação. Sem que seja preciso mencionar aqui o lado religioso, que é muito idiossincrático para que pudesse explicar, o homem Jesus é que me interessa profundamente. Do ponto de vista de todas as religiões que há por aí, eu sou ateu. Não acho que as igrejas são mais benéficas do que maléficas, e nem que funcionam consoladoramente para os mais destituídos. Por muito tempo cultivei o desejo de entrar em um monastério, mas meu ceticismo sempre foi gigantesco demais para isso. Em paralelo, conseguia me manter meio dignamente na contemplação vivendo sozinho. Os verdadeiros amigos da juventude foram cada um para seu lado, como haveria de ser, e, baseado na premissa de que amigos mesmo só compensam o que teriam os mesmos gostos e afinidades que eu, eu ficava plenamente com os livros. Nunca fui assoberbado pela solidão; os amigos sociais, aqueles que fingimos saudavelmente que nos bastam, uma ora e outra preenchiam as zonas de trivialidade da minha vida. Mas meus amigos, sem eufemismos e relativizações ou tristes consolos, sempre são os livros. Ler por anos Faulkner me enchia de alegria. Lembro que um de meus amigos verdadeiros, que cultivei na raridade da vida adulta, o Galheb, em um desses natais em que nós dois poderíamos ter-nos dado a companhia um do outro diante a mesa de jantar, em nossas vidas em que não havia ninguém mais que pudesse fazer esses papéis recíprocos, se despediu de mim nas vésperas da comemoração e me perguntou com quem eu passaria a festa. Eu respondi que com Winston Churchill, e ele, da mesma maneira séria, avaliou a questão e disse que era uma ótima companhia, e concluiu que ele passaria com George Steiner. Nas noites de frio, eu me sentava com Arsene Lupin, e com os para mim sempre acolhedores ensaios de Borges. E não havia felicidade maior do que esta.
De modos que re-conhecer Jesus através da ótica da literatura é-me muito valiosa. Os dois grandes livros para isso são O mestre e Margarida, que tem um dos mais desconcertantes e belos Cristos, e A última tentação, essa obra-prima inigualável escrita por Kazantzákis. Nesta última, o leitor quase sente o resvalo do homem Jesus em sua pele. É tudo profundamente atmosférico e feroz e cheio de ternura, cheio de perigo humano e radiante. Recordo que o final do filme que o Scorsese fez para esse livro foi tão surpreendente quanto, digamos, o final de O sexto sentido. O impacto da inesperada surpresa, aliás, é bem maior. A astúcia usada para explicar a mensagem de Jesus para os homens, através de uma ótica racional e pragmática, utilizando aquele final genial, é apoteótico. Muitos da igreja consideraram aquilo um insulto mancomunado por uma nova coligação do pensamento formador ateu, o que era um disparate. Aquele filme me ganhou para as frentes do cristianismo utópico, em um momento em que o ateísmo em sua mais incomunicável e equivocada vertente me assediava. Meu Cristo seria sempre aquele. Andei atrás do livro, com desespero de leitor obcecado, e o li em uma sentada, atravessando dias e noites e almoços comidos às pressas. O final, a surpresa, o cósmico ensinamento, foram todos retirados do livro, são todos obra da mente generosa de Kazantzákis. O cinema de Scorsese tem por mérito os cortes portentosos, a trilha sonora do Peter Gabriel, a beleza plástica de Willem Dafoe, o Deus que oprimia o homem Jesus a aceitar o encargo descendo como um abutre invisível do céu, as palmas que se fecham uma sobre a outra na invocação magnânima do Lázaro de seu sepulcro.
Achei minha igreja na minha família. Lembro que propus à Dani que ela viesse morar comigo. Sempre fui avesso a todos os arquétipos do consumo, de modos que por detrás dessa proposta só havia o amor incipiente e verdadeiro talvez em menor grau que a previsão dos auxílios na velhice, e não a necessidade da serva feminil e confortadora na qual se escora o escritor. Ela se recusou, como haveria de se recusar, e, enxergando no fundo do meu coração (onde havia mesmo um vazio sem fim), arranjou de me dar uma filha. Nos casamos, e a Júlia sempre foi uma alegria tão imensa, que arranjamos, já de comum acordo, de termos o Eric. Sei que para muita e muita gente filhos não são a salvação e nem são interessantes. Mas em mim se encaixaram despudoradamente todos os clichês da paternidade redentora. Escrevi certa vez que ver a Júlia no berço da maternidade foi equivalente a tocar o sol. Não há um dia, porém, em que não penso se não fui grotescamente egoísta em trazê-los para esse mundo. Se para poupar-me de um suicídio, eu negociei com duas vidas. Do fundo, um remorso pesado tenta emergir. O Eric, tão contrário à Júlia, passou esses nove meses chorando umas 10 a 20 vezes por noite. A Dani está um bagaço. Eu brinco com ela para prestar sempre atenção ao pegar o Eric para ver se não pegou a gata enganada e está a lhe dar de mamar, tamanho o estado de zumbi em que ela e eu estamos. Eu vejo isso com o orgulho do pai, que atribui à ânsia do filho a vontade de abandonar logo a fase de bebê e poder andar, correr, ser independente, ser dono de seu corpo. Eu falo para a Dani que só a mãe tem essa paciência. Por isso tantas babás agressivas, tantas professoras dispostas ao beliscão e ao chute. Só a mãe tem esse amor, só. Eu, se estivesse sozinho com o Eric, não teria dado conta. Mas também eu nunca perdi a paciência com ele. Sempre o abraço muito e o beijo muito, e às noites, quando a Dani já está esgotada, eu o coloco deitado entre minhas pernas e vou-lhe ninando com o balançar até que ambos dormimos, ao som de Bach e da Mutter. Embora tirar-lhe da mãe seja difícil, o cara é viciado nela. Uma grande nostalgia do útero. Como se fosse um protesto, que aos poucos vai passando ao lhe oferecermos opções de recolhimento convincentes.
Cristo não está nas igrejas, cada vez mais demoníacas. Esses dois assuntos tem muita relação para mim, o que talvez não transpareça no texto.
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Três de nós |