quarta-feira, 29 de junho de 2016

Corpos divinos, de Guillermo Cabrera Infante



Não há muita coisa que se possa completar sobre Guillermo Cabrera Infante que seu amigo e parceiro de jantares literários íntimos, Javier Marías, não tenha dito. Que GCI é o escritor mais livre do século XX, o próprio paradoxo de ser exilado de uma das últimas tiranias ocidentais evidencia isso para seus leitores; que GCI é o herdeiro literário mais fiel de Laurence Sterne, as deliciosas e impagáveis digressões de seus livros comprovam; que ele é o narrador nato mais talentoso das letras latino-americanas qualquer um pode ver em fração de segundos, bastando para tal abrir na primeira página de um de seus livros.

Na memória pessoal, Infante foi um de meus fetiches inacessíveis. Quando adolescente, vi ou li em algum lugar o Caetano Veloso respondendo a um repórter que preferia Infante a Garcia Marquez. Como eu achava que Marquez era tudo que havia de melhor na ficção, só tive paz quando, após economias severas e buscas que esbarravam na desesperança pelos sebos, pude adquirir o que para sempre pareceu a mim esgotado o Três Tristes Tigres, romance estandarte de Infante. Li-o em estado de febre, assombrado diante a constatação taxativa de que no mundo dos escritores pudesse haver dois que fossem tão opostos em tudo quanto esse cubano e o autor colombiano. O que em Marquez era ordem e admissão imediata no classicismo, em Infante era anarquismo e traquinagem, descomedimento e irreverência total. Infante me apresentou, em minha imaturidade sedenta, aos escritores que atiram para todos os lados, que não respeitam nada, para os quais nada é sagrado, a não ser a felicidade plena e impagável de darem total liberdade para seus talentos. Foi uma paixão irrevogável. Li Três Tristes Tigres duas vezes seguidas, sempre com a sensação de que assistia a algum crime genial, proibido por todas as formas de ortodoxia. Havia sexo desmedido, proezas verbais incontroláveis, virtuose embriagada, e aquela ternura incondizível das mais eloquentes e líricas memórias infantis. Infante era o maior escritor latino-americano, eu cheguei à conclusão naquela época. Cortázar, que era quem mais se aproximava dele, perto dele era um rapazinho comportado, pudico, que só simulava aquela boêmica loucura capciosa para a qual seu formalismo congênito não tinha coragem. Infante na verdade estava sozinho nas letras caribenhas: seus irmãos moravam distante, talvez por isso a sua procura pelo exílio em Londres; seus irmãos eram Nabokov, Anthony Burguess, Kerouac, Pynchon, Joyce.

Depois li, também após economias colossais e procuras ainda mais desabonadoras pelos sebos, esta que tenho por sua maior obra, Havana para um infante defunto. Um livro que foi publicado pela Companhia das Letras, se esgotou numa rapidez atordoante, e nunca mais foi re-publicado no Brasil, o que evidencia o quanto Infante ainda sofre, nesse andar do século tecnológico, a pecha anacrônica de escritor maldito_ evidencia o quanto Roberto Bolaño estava certo ao apontar as causas perpétuas de nosso subdesenvolvimento cultural. Esse misto de romance, memórias, e excertos soltos de segredos de gaveta, é uma das cinco maiores coisas que aconteceram nas Américas no campo da escrita. Tem tudo o que um grande romance pode oferecer, desde uma visão profunda e modificada das coisas até aquele reino na infância-juventude, feito da relembrança artesanal de salas de cinema que só não foram apagadas da nostalgia memorial e dos tantos ritos de passagem que tornam a Havana de Cabrera Infante tão imortal quanto a Dublin de Joyce_ ou a Macondo de seu arqui-inimigo.

Mas aconteceu um abalo na força. Esse ano a Companhia das Letras publicou Corpos Divinos, um romance póstumo lançado em 2010 que tem tudo para ser uma obra-prima de mesma envergadura que Havana para um infante defunto. Li-o semana passada quase sem conseguir desprendê-lo dos olhos. Senti a mesma energia inesgotável daquele seu outro grande romance. São mais de 600 páginas que tem uma fluidez incorrigível e deliciosa. Ali estão os mesmos eternos temas de Infante: sua juventude na Cuba bucólica carregada de fetiches cinematográficos e eróticos, sua proeza verbal generosa e eternamente jovem e inesgotável, sua visão política libertária e iconoclasta, sua angustiante nostalgia, seu humor que vira tudo de pernas para o ar. Sim, não há o que complementar ao que disse Marías em algumas crônicas dedicadas a Infante (e a partes do seu Negro dorso do tempo, que trata dos jantares na casa de Infante em Londres): Infante é o mais livre dos escritores latino-americanos, e por vezes demonstra a vertigem de estar situado em um local independente bem acima deles.

2 comentários:

  1. Me lembro de uma entrevista dele, e fiquei muito impressionado de como ele conhecia a literatura brasileira, ele dizia ter lido: Machado de Assis, Jorge Amado, Guimarães Rosa e Mário de Andrade, e ainda aproveitou e deu uma alfinetada no Garcia Marquez, dizendo que o maior romance da América Latina era o "Grande Sertão:Veredas".

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