Vê-se a diferença do poder da mídia livresca entre os EUA e o Brasil através da comparação de dois autores respectivos de cada país, ambos com o mesmo quilate. Falo de William Burroughs e Ignácio de Loyola Brandão. Para vários leitores cultuadores de Burroughs, ou mesmo vários leitores de prosa norte-americana, comparar Brandão a Burroughs é uma heresia. E por quê? Pelo simples fato de que Burroughs em seu país é visto como um revolucionário da língua escrita, um inventor anárquico, um autor que usa de seu cotidiano devasso no meio de drogas pesadas e de sexo homossexual para falar coisas sublimes. Não é exagero: Burroughs não só e visto assim por lá, como é tratado por gênio por aqui (vide um texto do Terrón, laudatório, que surgiu alhures no blog da Cia das letras). Mesmo gente como Ian McEwan disse que só soube como escrever quando assistiu uma palestra de Burroughs. Eu não gosto de Burroughs. Em minha definição de escritor, ele entra por uma questão pessoal de que eu, como qualquer outro, tenho os meus fetiches para alimentar. Burroughs é preguiçoso, trapaceiro da pior forma possível, leviano e, em um nível que destrói qualquer escritor sério, amoral. Tenho por base Petrônio, quando penso em Burroughs, o Petrônio que parte dos estudiosos de literatura romana julga não ser o autor verdadeiro de Satiricon por ter sido hedonista demais para arranjar tempo e concentração para escrever. Ler o ensaio que acompanha o recém lançado Almoço nu, pela Companhia das Letras, é constatar que esse livro só foi ajuntado e publicado por uma força enorme por parte de Allen Ginsberg e Jack Kerouac, isso porque Burroughs era incapaz de se concentrar e ter um fôlego mais extenso do que o de escrever cartas aos amigos. Quase todo livro é uma costura de cartas que Burroughs escreveu a Ginsberg. Nesta edição da Cia vem informado na capa ser a Edição Definitiva, o que quer dizer que tem adendos novos de coisas avulsas descobertas no espólio do autor. É uma colcha de retalhos, sem objetivo, sem coerência, absolutamente solta e inflada ao máximo para ter o diâmetro que os editores julgaram propício para um romance. Há fantasias aparentemente escritas durante viagens lisérgicas, constrangedoramente vazias, que, num primeiro momento, pretendem ao ensaísmo fabulesco de Robert Musil, mas que acabam resultando apenas em brincadeiras de um drogado que sabe bem manejar as letras_ mas prescinde do simbolismo legítimo. Um exemplo é o capítulo intitulado Benway, que, a meu ver, parte do propósito do excepcional Kakânia, mundo inventado por Musil para criticar acidamente a Áustria pré-guerra, mas a Anéxia criada por Burroughs serve apenas para uma série de piadinhas pretensamente surrealistas e cansativas, em que o autor mostra o virtuosismo sem propósito de sua imaginação.
Mas eu leio Burroughs. Qualquer coisa que saia dele por aqui eu leio. É o fetiche. A invenção mais importante dos EUA: o poderoso fetiche cultural americano. É ele que me fez perder uma hora e quarenta e oito minutos de meu tempo ontem à noite, com o filme Deadpool, uma imensa bobagem. Raramente eu assisto a essas porcarias, e não vou fazer aqui um panorama comparativo entre o nível precário da inteligência geral com esse tipo de ração insossa. Leio Burroughs porque sinto uma atração genuína pelo mundo que ele fala, o da devassidão, das cornijas suburbanas das casas arruinadas sob a chuva, das ruas povoadas de lixo sacudido pelo vento de uma quarta-feira irredencionista, das caras destruídas de mulheres tatuadas, de homens raquíticos que se escoram nas traves dentro do metrô com olhos em que o ódio se suplanta inadvertidamente por uma infinita angústia. Leio Burroughs avidamente: a Cia me enviou esse livro, que eu escolhi preterindo outros mais interessantes, e assim que me chegou deixei todos os outros e o devorei em 4 dias. Sonhei com ele. Tenho a sensação sólida de que ele me alimenta, aumenta ou poda as arestas das minhas credenciais mentais de expressão, sublinha com mais rigor (um rigor paradoxal) a liberdade de escrever. Se alguma coisa tranca em minha caneta por sobre a folha, a lembrança fresca de Burroughs oferece uma efetiva lubrificação.
Agora passo para Brandão: eu era um leitor fervoroso de Brandão, em meus 15 anos. Ele era cultuado pela turma de sedentos pela cultura de impacto e despertadora política a qual eu pertencia. Zero e Não verás país nenhum foram tão chocantes para mim quanto Kafka, com quem guarda influências e semelhanças. Nestes livros tudo era de ponta cabeça, incongruente, estranho, removedor de óticas normativas. São muito, mas muito melhores que qualquer coisa que Burroughs tenha escrito, e, o que lhes dá maior mérito, são livros politizados escritos em um dos ambientes mais negros da América Latina do século passado. Depois, contudo, não li mais Brandão. Cheguei a esquecer profundamente dele, mas sempre que o via, em entrevistas raras quando ele estava à frente da direção de uma revista, eu sentia minha imediata reverência, eu, como se diz, tirava meu chapéu para ele. Assim é também com outro escritor por quem tenho muito respeito: Marcelo Rubens Paiva. Feliz ano velho e Blecaute me estontearam. Direto flagro em meus pensamentos corriqueiros a influência desses dois livros: a explosão da torre da rede Globo nesse último, as frases escritas nos muros do primeiro ("Rendam-se terráqueos", e essa que me aproximou dos Beatles, "Lucy in the sky with diamonds"). Comprei o último romance que Paiva lançou, tido pela crítica mais dura como uma obra-prima, mas ainda não o li. Paiva seria quem? Paul Auster? Sei lá: Kerouac (por que não, Charlles?, só porque você respeita sobremaneira Kerouac?).
Vejam a capa de Almoço nu, que lindeza! Uma das mais belas da Cia. E vejam as de Brandão. Surpresa: fui pesquisar agora na Amazon, e vejo que as de Brandão são também muito bonita, ainda bem! Mas... e aqui vai outra vez um dos meus clichês: se o Brasil tivesse um imaginário cultural e uma mídia cultural poderosa, Brandão e Paiva seriam conhecidos no mundo inteiro. Assumo um certo reconhecimento de ser enganado, mas isso é a raiz de toda aquisição cultural. Conheço pessoas que acham Kafka um pé no saco, que acham Ulisses uma brincadeira de esnobes que mentem venerá-lo só para adquirirem certa proeminência nunca comprovada do gosto. O fetiche é importante e inseparável da cultura.
Esses dias, assistindo ao programa Minha loja de discos, apresentado pelo canal Bis, cogitei dos caminhos que a cultura, em especial a literatura, esteja tomando graças à internet. Neste programa, aparece um sem número de novos músicos, absolutamente desconhecidos pelas mídias convencionais: seus discos são bem produzidos, com capas belíssimas (paisagens urbanas pitorescas fotografadas sob uma ótica sofisticada, rabiscos expressionistas, rostos em preto-e-branco). E o mais impressionante: o expressivo mercado que os abarca. Há estudos sobre eles, livros sobre eles, programas de rádio dedicados às suas músicas. Deixa a gente pensando em qual o sentido consumir apenas a música canônica nos trazida pela grande mídia_ ou pela mídia pequena longilínea no tempo que nos autoriza a boa música_, e não essa nova música que, no mais, tem todo o aporte inteligente e profundo do fetiche da outra. Me lembrei do Claudio Magris falando que na Itália profunda existem grandes escritores e poetas desconhecidos pelo mundo, mas interagidos em total cumplicidade entre seus consumidores cultos das aldeias e povoados italianos.
Oras, Charlles, deixe de bobagens: você gosta do Burroughs! Tô brincando. Também tenho sentimentos ambíguos em relação a ele. Aquela história do assassinato da esposa... Mas há uma aura em torno dele, não? Aquele rosto idoso pétreo e aparentemente sereno pelo resto da etenidade. Mesmo lá no caixão ainda hoje ele deve preservar aquela mesma expressão descansada e superior. Ele tem uma claque de admiradores e discípulos neste saco infinito da "cultura pop", gente como Kurt Cobain (há na internet uma foto muito curiosa dos dois juntos), Tom Waits, mas alguns destes seria leviano a gente reduzir assim: o McEwan que você citou, a Patti Smith, Ian Curtis. Aliás, veja a sincronicidade: não faz nem uma semana comprei essa mesma edição da foto que você postou acima e pretendo lê-la na sequência, assim que terminar o livro da Patti Smith que estou lendo agora, e onde ela fala bastante no Burroughs. Vejamos.
ResponderExcluirTá bom, tá bom, tá bom. Eu gosto do cara, com reservas. Gosto bem menos, por exemplo, que Kerouac e Bukowski. Li Junk, que achei superior a esse Almoço nu.
ExcluirAlgumas pessoas se surpreendem quando digo que gosto desses escritores, como se alguém que gosta de Faulkner e Borges não pudesse gostar na mesma medida de contra-cultura (ou o rótulo que seja). Pynchon, que é um dos meus favoritos, é da mesma turma.
Pretendo ler esse da Smith. Que mulher! Vi um show dela na tv, e fiquei ainda mais fã.
A propósito, estou no aguardo de um dos livros que mais desejei na vida, e que, por pura sorte, procurando sem muita fé na Amazon, e encontrei, estarrecido:
https://www.amazon.com.br/Flash-Gordon-no-Planeta-Mongo/dp/8555460115/ref=sr_1_1?ie=UTF8&qid=1465991811&sr=8-1&keywords=flash+gordon
Das coisas mais importantes da vida: não se levar muito a sério e saber rir de si mesmo! Não vejo nada de muito condenável em gostar dos beatniks e de Flash Gordon. Eu certamente gosto de coisas bem piores... [risos]
ExcluirCara, sou fã da Patti Smith, sempre gostei muito de tudo que li dela, sobretudo sua poesia (que li esparsamente em inglês). Os dois livros dela que a Cia das Letras publicou aqui são ótimos, mas gostei mais do primeiro, que se chama "Só garotos". O segundo, "Linha M", terminei ontem, é muito bonito. Patti é uma leitora dedicada também, como nós: fã de Sylvia Plath, Rimbaud, Hesse, Blake, Camus, Bulgakóv (ela dá a entender que "O Mestre e Margarida" é o livro favorito dela), Bolaños, dos beats, etc. Esses seus textos em prosa são encharcados de poesia, livros, viagens e café. E de morte, mas de vida também.
Terminado o "Linha M", eu pensava em partir pro "Almoço nu", como disse ontem, mas agora acho que vou de "Junky", que tem na biblioteca do meu irmão.
Eu li esse primeiro da Smith. Realmente tocante, excepcional.
ExcluirEstou como uma criança esperando o Flash Gordon.
É redundante e meio besta dizer isso, mas lá vai: tem grandes escritores que adoram essas vertentes da literatura. Borges com a literatura policial (e de ficção científica), o magistral romance sobre quadrinhos do Chabon, As aventuras de Kavalier & Clay.
Interessante: eu recorrentemente releio Günter Grass, e, dentro do Anos de cão, percebi que se na Alemanha tivesse rótulos literários como existem nos EUA, Grass seria contracultura.
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ResponderExcluirGosto do Almoço nu devido ao filme do Cronenberg. As cenas com a máquina de escrever estão no meu imaginário pessoal. Quanto ao Ignácio de Loyola Brandão, gosto mais dos contos do que dos romances dele.
ResponderExcluirNão sabia sobre o filme.
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