quinta-feira, 24 de março de 2016

Há sempre um lugar



Estou no período da minha vida em que, posso finalmente dizer, adquiri uma compulsão pela escrita. Desisti de vez de algumas coisas que julgava indispensáveis, como o teclado e a internet. Comprei cadernos escolares básicos, de capa vermelha lisa, e canetas de pontas flexíveis de cor preta, e fico horas de intenso deleite escrevendo e escrevendo. A internet, por enquanto, como se pode constatar, ainda não me é completamente descartável. A idiotice assumiu uma onisciência plena na internet, o que me deixa bastante desmotivado. Não vou falar mais sobre isso. Voltemos à escrita. É espantoso como a escrita nessa fase da minha vida é profundamente perturbadora, me deixando nu e na condição de não saber nada. Estou mais cuidadoso e exigente, mas, ao mesmo tempo, livre e feliz ao escrever. O fato de usar a caneta remete à total absorção de quando eu escrevia na minha juventude. É, literalmente, assim como disse Walter Benjamin, a maior de todas as drogas. Atingi o estágio em que nada me é mais prazeroso que a escrita. Por anos e anos achava que jamais atingiria esse estágio, suspeitava que ele não existisse, ou, pior, que eu não era digno o bastante para ele. E agora, poxa!, eu me tranco em minha biblioteca, pego o caderno, elevo-me a uma concentração rigorosa, e escrevo. Stendhal tem muito a ver com isso. Não é possível que só ele poderia escrever um romance como o Cartuxa em 53 dias. Não pretendo escrever meu romance em 53 dias, mas em 3 anos. O importante de tal exemplo é para me exorcizar do medo, o medo feroz e prostrante de escrever. E eu perco esse medo cada vez mais. É a descoberta de que a palavra gênio e a palavra talento são muito peculiares. O gênio pode estar na imersão absoluta, feito por um homem comum, e não na determinação meritocrática dos genes. Eu não me julgo um gênio, nunca tive essa dose de espetacularismo virtuoso; mas me julgo um cara extremamente capaz de escrever o que eu pretendo escrever. A preguiça e, principalmente, o cansaço ditado pela realidade cultural nacional, sempre me fizeram crer, contudo, que a escrita não era para mim. Estou a escrever o mesmo livro que me pus a escrever 20 anos atrás. E agora, com essa entrega, esse direcionamento disciplinado e um tanto anárquico para a escrita séria, muitas descobertas me chegam durante o exercício. Uma nova voz domina minha mente, uma voz que tenta se firmar mas, por enquanto, está quebrada e tosca. Eu releio as 5 ou 10 páginas que escrevi durante o dia, em uma atenção que me abduz do mundo, e já não tenho aquele incognoscível nojo que eu sentia pelo que escrevia. Eu vejo todos os defeitos, as palavras repetidas, os momentos em que de imediato devem ser reescritos de outra forma, e sei que a coisa final não será assim, mas..., me sinto muitíssimo orgulhoso. Para mim, de forma verdadeira, nada melhor e mais importante está sendo escrito na língua portuguesa do que esse livro que eu estou escrevendo. Só essa atitude é passível de estar no espírito de um escritor que se preze. Eu não sou escritor de livros que preenchem catálogos e a vaidade unitária do autor; ou vai ser tudo ou nada. E o mais: minha alegria é tanta, e a escrita é suficiente como saúde para a existência, que eu não me preocupo uma fagulha em publicar. Nunca pensei na fama, isso é absolutamente irrelevante. Tenho muito de Robert Walser e Kafka, que escreviam com um egoísmo divino, com uma independência que seguia adiante sem se importar por todos os atos sociais de reconhecimento. Eu quero atingir aquele núcleo selvagem da minha juventude de quando eu escrevia minhas redações no quarto, em abandono nirvânico. Retornar infância adentro, como disse o Schulz. E isso, para meu enorme agradecimento, está acontecendo. Há parágrafos e parágrafos desencontrados, em que o excesso de palavras erradas imitam uma forma e suplantam a cor da vida necessária, mas aí, pimba, aparece aquela cena, aquela interação entre a certeza de se estar escrevendo algo digno e humano com a percepção de que aquilo é a minha verdade, e que justifica o ofício. Minha mão não dói ao usar a caneta, tenho a hipertrofia dos músculos necessários para esse exercício, enquanto a digitação me exaure e me dá câimbras. E como eu acho meus garranchos bonitos, como eles se parecem com um trabalho árduo, como os sacos de cimento bem postos no caminhão carregado. Eu, há alguns anos, trabalhava em uma cooperativa veterinária, um trabalho pesado, que me deixava imensamente feliz. Eu devia perder uns dois quilos por dia com esse trabalho, e voltava sujo de lama, bosta e sangue para casa, e tomava uma dose de pinga para abrir já o nababesco apetite e em seguida jantava dois pratos vultosos. Essa escrita me deixa com a mesma sensação. Pela segunda vez na vida, a primeira sendo esse ano na cooperativa, eu sinto que estou trabalhando. Eu me sento com minha esposa e meus filhos e tenho um ar agraciado, uma sensação de plenitude e segurança. É isso! Finalmente consegui! Finalmente eu tenho a literatura como algo particular, inviolável, espiritual e despojado, e para a qual eu me sinto progressivamente apto. Compreendo o que é deixar grandes empregos e a vida confortável pelo trabalho espiritual que lhe salva, que justifica a vida. Essa noite mesmo, com insônia, eu continuei a escrever, e me veio a vontade estranha de extrair manualmente o cansaço e a necessidade de repouso para poder escrever mais. Não estou nem aí se isso não vai dar em nada; acredito que vai, sim. Nunca me lamuriei por achar que a literatura deveria me receber em algum lugar digno de sua casa. Isso é mitologia e não existe. O que você escreve com a alma sempre vai ser lido; há sempre um lugar.

8 comentários:

  1. Charlles, acho que este é o texto mais apaixonado e verdadeiro sobre o ato de escrever que já li. Você colocou aqui tudo de uma maneira tão forte que todas as imensidões que esse texto encerra estou lenta, porém indelevelmente, se incorporando em mim. Estou estupefato. Não tenho certeza do que dizer, porém tenho certeza que devo dizer alguma coisa, nem que seja um simples obrigado, por esse texto e por esse blog.

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  2. Acabei de ver que a Cia das Letras compartilhou o teu texto sobre o Doutor Fausto no Facebook deles, Charlles. Agora falta publicar um livro com teus ensaios.

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    1. Então é isso que está acontecendo, eferim! Teve 300 visualizações em dez minutos. Pensei que o blog estava sendo atacado. Hahaha.

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  3. Charlles, fico extremamente contente pelo fato de que esteja escrevendo, especialmente pela forma e paixão que está empregando nos teus escritos. Raramente encontro textos escritos com tanta verve e paixão quanto os de seu blog. Claro que, como seu leitor, gostaria que postasse mais amiúde. Contudo, quando acessar o blog e não ver nenhum texto novo fica o consolo e a felicidade de que está com canetas em punho escrevendo com liberdade, independência e gosto. Não tenho dúvida alguma que tem grande talento. Inúmeros textos que postou aqui sobre tantos assuntos já mereceriam publicação em livro tamanha sua qualidade, em minha opinião. Meu desejo é que não esmoreça em tuas convicções sobre a escrita, o ato de escrever, como forma da expressão máxima da personalidade. Neste seu texto você cita Robert Walser e com muita propriedade pois que lendo e relendo uma coletânea de textos dele (Absolutamente nada e outras histórias) fica patente que a literatura, para além de vaidades e políticas, pode ser a expressão mais pura de interpretação do significado de nossas vida. Mais que isso: pode ser nossa mais autêntica manifestação de vida.

    Abraço,

    Marcos

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    1. Muito obrigado, Marcos. Estou me programando para postar ao menos um texto por semana no blog, com compromisso de não falhar na data (talvez domingo, ou quarta-feira).

      Suas palavras são muito estimulantes, e mais uma vez agradeço por seu carinho.

      Esse livro do Walser é uma leitura constante minha.

      Abraços.

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  4. "Eu, há alguns anos, trabalhava em uma cooperativa veterinária..."
    E por aí deixar fluir..., sendo fortalecido por uma "rusticidade" da linguagem que torna o texto um lugar verdadeiro e especial!!

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