Não vi o filme Sátántangó, mas dizem que tem uma polêmica cena envolvendo a tortura e morte de um gato. Isso me fez afastar desse filme, ainda que o diretor tenha tentado se defender dizendo que o gato foi anestesiado, o que me parece ter piorado a situação. Mas no livro, obviamente, tem a mesma cena perturbadora. É perturbadora tanto pelo sofrimento de um animal quanto pelas questões filosóficas que ela suscita. Quem pratica esse ato abominável é Estike, uma menina com problemas mentais, a mais nova das irmãs, tornadas prostitutas, e do irmão (que é um pervertido idólatra). Estike é insustentavelmente pura, e isso que é o mais grave. Ela tem a pureza absurda de uma serial killer, ou a pureza absurda de um anjo? No livro, que é todo simbólico sobre a formação das religiões e das instituições de poder humanas, Estike pode ser vista como Cristo. Há uma cena em que ela se manifesta em uma áurea messiânica, depois de sua morte. O leitor é levado a se confrontar com a ideia de que a divindade, inserida na carne, envolve um processo tão amoral de subjeção e violência quanto a tortura feita por Estike. O experimento crístico que culminou na crucificação não seria ainda mais brutal? Um Deus encarnado no primitivo padrão terreno não envolveria um descompasso entre sua pureza e potência com os limites da realidade, que seria entendido pela nossa mente canhestra como algo brutal? Krasznahorkai nos faz ver a bestialização que se esconde nas religiões, e como a própria moral religiosa nos treinou para sermos hipócritas travestidos de piedade no alto da higiene de séculos de sacrifícios de animais a Jeová ou ao deus da hora. Toda religião, assim como todo aparato civilizacional, se fundamenta na barbárie e na violência, o que os aspectos metafísicos da transubstancialização evidencia. Mas Krasznahorkai não é um niilista, é, pelo contrário, um autor religioso, metafísico. É um ateu que crê no sagrado, ainda que se resigne a perceber o sagrado pelas insinuações do sublime. Quando Estike se manifesta em espírito, os três homens que a vêem (Irimiás, Petrina e o "menino"), apavorados, rejeitam o milagre. Um diz que é a fome e a penúria que os fazem ter alucinações, "como nas trincheiras da guerra". E assim, conformados, o próximo ato desses três missionários é negociar com Páyer, o vendedor de armas. Irimiás é tanto são Paulo apóstolo como os herdeiros de Maomé, é um dos sacerdotes de Quetzalcoatl e O Grande Inquisidor. Irimiás, Petrina e o "menino" são os institucionalizadores da fé, os primeiros padres e papas e pastores. Petrina, diante da fulgurante luz de Estike, e menina Deus que testou sua plenipotencia elegendo um gato para o primeiro arrebatamento, pergunta a Irimiás se ele acredita no inferno. "Deixe de bobeira", responde Irimiás. Nesse romance soberbo, Krasznahorkai nos leva onde ninguém nunca foi, no Cristo como primeira revelação satânica (lembrando Zizek), no Deus que ao se manifestar na terra incorre no paradoxo destruidor de ser impossível que um Deus se manifeste na terra. Que diferença tem a brutalidade de um gato torturado com o cadáver de um menino exposto na igreja católica, ou das tantas barbaridades escatológicas professadas por cada religião? Krasznahorkai reforça que a verdadeira religião existe, mas a religião da independência, da interioridade, da supressão, do absurdo. A primeira cena do livro mostra os apóstolos Irimiás e Petrina saindo de um cartório, um local sem elevação, sem valor, sem mistério. Os líderes dos homens, diz Krasznahorkai, são todos uns panacas trapaceiros e assassinos sem alma.
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