Emmanuel Carrère está no calor sufocante da ilha grega de Leros, hospedado na casa de uma amiga. A amiga oferece o chuveiro para que ele tome um banho, mas ele recusa. Está há uns bons dias sem tomar banho, e sente um "prazer sombrio em marinar no meu suor nervoso e nas minhas roupas rançosas". Eles saem à noite para beber. Carrère toma incontáveis garrafas de vinho. Volta para a casa da amiga, dança com ela ao som da Polonaise "heróica" de Chopin, tocada por Vladimir Horowitz. Depois, ele e a amiga não fazem amor, o que ele não se lembra "graças a quem de nós dois esse erro foi evitado", o que fica a suspeita que para o sensualista exacerbado e dedicado cultor erótico que ele é, na certa a recusa foi da mulher. O que não é de se espantar, visto a sua roupa que há dias não troca, a sua cueca que há dias não troca. Essa cena é narrada em Ioga, depois de Carrère tratar dos jovens médio orientais refugiados num abrigo grego, numa tentativa desaforada de ser um escritor com preocupações sociais e senso histórico. É desconcertante para o leitor ver na recusa de Carrère em tomar banho o limite clínico real de sua capacidade em ser altruísta, em pensar fora de si, em realmente ser "um grande escritor". E o mais desconcertante é que o nojo que eu, pelo menos, senti, ao imaginar o odor que um corpo europeu masculino de sessenta anos despende privado da mínima higienização por dias, aumenta por saber que Carrère mesmo não percebeu isso ao escrever o texto. Ele não dá dicas morais ou metafóricas a serem retiradas dessa porquidão, ele escreve isso sem a mínima autocrítica, desmerecendo todo esforço anterior empregado na obra por ser uma pessoa melhor, menos egoísta.
sexta-feira, 27 de dezembro de 2024
Cavalgada pela Masúria
"Cavalgada pela Masúria", um dos capítulos de "Minha infância na Prússia", entra fácil na minha lista de melhores contos. Trata-se de uma parte do diário da condessa Marion Dönhoff. Com uma prosa que lembra Hemingway, mas de forma superior_ sem nenhuma necessidade tão tipicamente masculina de dizer "olha como escrevo maravilhosamente bem"_, o texto narra uma viagem que a escritora, quando jovem, faz pelo interior rural da Alemanha, a cavalo, e acompanhada por uma amiga. É uma obra idílica, pastoral, cheia de sol, florestas e a densidade humana de povoados com camponeses laconicamente gentis. Só que o ano é 1941, e a presença da guerra é um incômodo generalizado. Marion cita os prisioneiros pelos campos de forma pictórica, um detalhe indispensável que se tem de colocar no quadro mas que teria sido muito bom se pudesse desconsiderá-lo. Só que a autora não é uma poeta, mas uma jornalista ativista, o que torna impossível qualquer grau voluntário de alienação. Ao mesmo tempo que fala da exuberante simplicidade daquela vida, em que nem sempre encontram estábulos para pernoitar os animais e uma só vez, depois de muitos dias, tem a chance de tomar um banho quente, perfaz pelas páginas o exército de jovens se arregimentando pelas estradas, as sopas de leite na mesa carente dos camponeses à noite e a desnutrição da onipresença da batata. É um texto que rescende uma dolorosa saudade, uma saudade de tudo, da paz, da harmonia, da modéstia. Como são belas as mulheres escritoras, em sua modéstia sábia, cientes de sua superioridade sobre seus pares masculinos; enquanto minha outra leitura, o Emmanuel Carrère, fala apenas "eu", "eu! eu! eu!", a "minha dor", o "meu desespero", a condessa quase não se coloca em cena, uma impessoalidade transparente para mostrar a história e a impermanência fruto da ganância do "eu". E quando essas reminiscências terminam, vem aquela lucidez que só a literatura mais elevada provoca, uma espécie de amplitude iletrada paradoxalmente feita pelas letras, uma fagulha de consciência universal que não é para menos que um outro escritor tenha conceituado como "esotérica". Sabemos que essa educada e serena senhora que escreve essas palavras é a mesma que fez parte de um complô fracassado para matar Hitler, foi presa e libertada, enquanto outros de seu grupo receberam a pena de morte. De forma que esse conto é auto-explicativo em última instância. É uma nostalgia por uma época e uma disposição de espírito que foram varridas pela história, mas não vinda de uma intelectual isenta, não vinda de alguém que se deleita ao som lisergiado por drogas pesadas do "eu", como é Carrère. Debaixo desse tom ameno dessa mulher de oitenta anos há a adaga escondida de quem lutou para salvar esse mundo da estupidez e da veneração por idiotas sanguinários. E é só uma ilusão achar que ela saiu de todo derrotada. A possibilidade de que seja lida por longos e longos anos atesta que sua força verdadeira está acima da violência, está na restituição da comunhão do entendimento. Como diz Sêneca, que pego de uma lembrança do Carrère em O Reino, os maus não vencem, os que praticam a injustiça não levam a melhor. É um engano se entregar a essa resignação derrotista. "Pensas que quero dizer: um ingrato será infeliz. Mas não falo no futuro: ele já é".
terça-feira, 24 de dezembro de 2024
Emmanuel Carrère
Emmanuel Carrère é ótimo. Mas quando fala o quanto é o fodão, com suas mulheres que transou, e com a grana que tem, que é rico e inteligentíssimo, a gente percebe o quanto a futilidade moderna impregnou a literatura. Não se vê isso, seria um absurdo inenarrável, nos russos pré-revolução, nem nos norte-americanos do século XX (nestes últimos eles não alardeavam seu classemediaaltismo, mas a usavam para a crítica profunda da perda da alma). Carrère faz como Seinfeld e outros alicerces da anedota elevada (porque, por mais que seja brilhante, o que ele escreve não passa disso): o culto da discriminação elegante, da condolência burguesa pelos desassistidos, desde que se mantenha sempre à vista o fato deles estarem por cima, com suas preocupações espirituais cosméticas e suas angústias metafísicas de vitrine. Mas há nisso uma grandeza. Não quero renegar o imenso deleite e aprendizado que um livro como O Reino me provocou. E o poder de Carrère está em reconhecer isso, de que ele é um escritor que atende à metamorfose do que hoje pode ser conceituado como "um grande escritor". Alguém que escreve algo que exorbita o cânone, que traz para o proscênio a tralha que antes era repudiada e hoje se adequa aos novos interesses de uma classe abastada de leitores: a auto ajuda refinada, temperada com filosofia e conhecimento social, o anseio pela redenção, pelo esclarecimento. Os russos o faziam se retirando para mosteiros, no exílio, ou de dentro de prisões, ou abraçando o campesinato; eles não, Carrère não. Carrère diz que não tem a amplitude moral de uma montanha, mas a mornidão dos que só tangenciam os grandes temas. Ele mesmo se define como "morno". Ele é uma "colina". Ele escreve em sua casa luxuosa na ilha de Patmos, a mesma onde o suposto evangelista escreveu o Apocalipse. É esse fetiche da coisa autêntica vendável que motiva Carrère, estar onde aconteceu o milagre, mas não se imiscuir nele. A aquisição do gostinho espiritual apenas, e não do Espírito. Sem sofrimento, tomando seu café com nome chique em um barzinho cool numa cidade de altíssimo custo de vida num lugar idílico na Europa. Mas ele é um escritor honesto e verdadeiro, não escondendo esses detalhes significativos de sua mornidão, de ser reflexo firmado no fetiche da sua impressão de profundidade. Seinfeld em um episódio pergunta ao George o que pode ter na América do Sul. Carrère, assim como todos os intelectuais franceses, deixa transparecer nitidamente seu prazer em ser europeu, intocável, em volta com suas marcas empresariais poderosas, suas grifes (em Ioga ele fala da maciez de seus sapatos finos), sua cultura restrita a seu direito de sangue. Em O reino ele abruptamente interrompe o tema do livro para falar sobre um vídeo pornô chamado "Brunette mourant de plaisir et jouissant deux fois", que ele achou pelo Google, e descreve a tristeza contemplativa da morena do título com todo o potencial de suas tintas superiormente reflexivas, pintando-a de maneira rembrandtiana, descrevendo sua entrega às duas explosões de orgasmos com a máxima sutileza insinuante à imolação interior dos primeiros cristãos, ou algo assim que ecoe elegantes dissociações perceptivas. Ele, Carrère, chega a mandar esse seu texto sobre o vídeo para sua esposa, pedindo que ela lhe traga mais informações sobre a morena. E a esposa dele, com o sorriso descolado da cônjuge culta, pergunta se ele entende as possibilidades terríveis que se escondem nesse vídeo, que pode muito bem ter sido postado de forma não autorizada por um ex-namorado vingativo, ou a própria mulher o publicou por uma situação de necessidade econômica, etc. E a única coisa que o morno Carrère escreve, em conclusão a essa aula sobre as torpes motivações políticas por detrás da mídia pornográfica, é como ele tem sorte em ter uma esposa assim. O que não impediu que Carrère fizesse a mesma coisa que o ex-namorado do vídeo, falando em seu livro Ioga sobre detalhes depreciativos não consentidos sobre seu casamento que levou essa sua ex-esposa a lhe processar. Mas essa cena não é um deslize autodepreciativo de Carrère, ele a descreve para, como Montagne (muito citado por ele), ressaltar que o assunto de seus livros é pura e simplesmente ele mesmo, com todos seus pecados, suas indiferenças, seus filistinismos, hipocrisia, carnalidade, preconceitos. Essa alfinetada gentil que sua esposa lhe dá para que ele se cientize um pouco ao menos sobre sua leviandade é um fato corrente de tantas outras partes em que a verdade lhe é mostrada por quem está de fora, dando pequenas marteladas em sua casca de proteção. Talvez toda obra de Carrère consista em suas respostas a essas marteladas. Seu amigo Hervé Clerc, como outro exemplo, é o homem espiritual, despojado, que vê a existência como uma luta da alma por sair das sombras e alcançar a consciência libertadora, enquanto ele mesmo se regala satisfeito de ser sua oposição, o homem feliz com sua riqueza, com suas bebedeiras diárias, sua sexualidade, sua agradecida limitação hedonista na carne. Carrère se descreve como uma repaginação moderna de Sêneca, esse filósofo best-seller mesmo em sua época que pregava o estoicismo da simplicidade mas que era um milionário banqueiro enfunado em seus palácios de prazer. E Carrère é ardiloso: ele conhece como ninguém seus leitores e o mercado do que sobrou do livro. Para uma geração de símiles globais dele, Carrère é uma amostra ainda bastante elevada do que a literatura vestigial pode oferecer.
quarta-feira, 11 de dezembro de 2024
Não intrometa!
Um dos efeitos da diminuição global da inteligência é essa ingenuidade vazia, algo satânica, dos vídeos feitos pela IA de velhinhos marinheiros salvando baleias árticas. É de um artificialismo tão flagrante que só uma percepção profundamente corrompida pelo sentimentalismo tolo e pela depravação mental julga verdadeiro. O animal cibernético adiposo em toda sua preguiça simula se encher de ternura por algo que não está só além do real como além do definhamento de sua sensibilidade. O próximo passo cotidiano é enxugar as lágrimas pelo salvamento do filhote da baleia e entrar no vídeo do sexo sadomasoquista, para calibrar as outras cordas de seus nervos viciados. E qualquer sinal de dissidência da opinião religiosamente corrente das redes sociais, o alarme é acionado: o que esse estúpido está criticando no facebook? o que esse esnobe arrogante está querendo reivindicar fora das regras? ou se adapte ao meme, à corrente de julgamentos da semana, à adoração ou ao cancelamento, ou caia fora. Ou faça o self do seu rabo, ou vá ser a estranha aberração que é na solidão. Não intrometa!
domingo, 8 de dezembro de 2024
Abrigo
Dos 17 até os trinta eu tinha só dois livros. Lord Jim, do Joseph Conrad, e O jogo da amarelinha, do Júlio Cortázar. Claro que eu lia como um louco, mas eu comprava, trocava, ou simplesmente me desfazia dos livros sem a menor consideração. Meu primeiro emprego era de veterinário em uma cooperativa, que eu exerci por cinco anos. Eu chegava exausto do campo à minúscula pensão na minúscula e esquecida cidade onde eu morava, tomava um banho, jantava, e me lançava à releitura infinita dos meus dois livros. Eu ainda hoje sei um capítulo de cor de Amarelinha, e trechos inteiros do Lord Jim. Tirei deste último o título da minha monografia de história, "As encarnações imprevistas". Daí conheci a Dani, e ela me deu os dois primeiros livros que eu iria guardar pra sempre, além das eternidades condensadas pelo outro argentino e pelo polaco que eu levava no alforje, os volumes três e quatro da obra completa de Borges. Nesse astucioso presente, veio decretado meu duplo destino, que era o de ter propósito para constituir um lar e formar uma biblioteca. (Lembro do espanto absoluto na cara da senhora minha vizinha, quando viu aquela moça e o bebê de colo_ a Dani e a Júlia_ entrando pela primeira vez na casa onde ela julgava morar apenas o triste psicopata solitário e inofensivo com o seu cão.) Daí a Dani me disse, quando eu lia a dedicatória em completo maravilhamento que ela escreveu naquele presente perfeito que em trinta anos ninguém jamais havia tido a sensibilidade ou o interesse em me dar: "Nós podemos reservar um dos quartos da casa e começarmos a montar uma biblioteca, o que você acha?". E hoje aqui estão, os meus primeiros livros de homem assentado, enquanto as crianças correm pela casa, elas mesmas se regalando por horas com a biblioteca. E a Dani, como sempre, com sua humildade política, por detrás de tudo.