sexta-feira, 5 de abril de 2024

Cafarnaum



 Quando eu fiquei muito mal da covid, a ponto de se eu me apresentasse a um hospital eles me entubariam (e eu não estaria aqui agora), eu tive uma vivência profunda do tédio. Eu tinha me isolado na biblioteca e intimado a todos de não se aproximarem, mas a Júlia, o Eric e a Dani praticamente arrombaram a porta e se deitaram afrontosamente no colchão que eu tinha estendido lá, do meu lado. O resultado foi que todos se contaminaram, expressando sintomas brandos. Ruim mesmo ficou eu. Um dia eu tentei erguer meu braço e não consegui. Perdi oito quilos em uma semana. Enzimas do meu cérebro foram reduzidas quase a zero, a ponto de essa percepção me fulminar. Era um estágio de profunda depressão. Recordo que me sentei com o Eric para ver um desenho, e me marcou o quanto o urso do desenho sofria, se desgastava em uma vida sem sentido, lutando contra uns esquilinhos azuis que nasceram para atormentá-lo. Eu pensava: "Isso é uma síntese precisa demais da existência humana para ser um desenho infantil!" A revelação de que o tédio é o moto perpétuo da existência e a única força que move o universo foi a coisa mais importante que me aconteceu. Eu me recuperei. Parei de beber. Parei de ter compulsão pela comida. Perdi 25 quilos e mantenho meu peso ideal até hoje. Todas essas coisas, bebida, comida, eu as tinha para vencer o tédio. Todas as noites tinha a hora do rock n roll, em que eu bebia uma garrafa de vinho ouvindo música, e depois comia um nababesco jantar. Hoje eu como regradamente, o mínimo possível. O drible ao tédio foi embora, mas também foram a hipertensão, a gota, a gastrite, e a baixa estima. Mas voltemos ao tédio: eu constatei o seguinte, se o espírito for imortal, o tédio é a constante universal. Um amigo espiritualista me disse certa vez que Deus criara a reencarnação para enganarmos o tédio. Uma ideia que me pareceu estúpida. O tédio tem de ser confrontado, aceito, interiorizado, enlevado. Se tivesse outro nome, que não essa pecha de tédio, poderíamos compreendê-lo mais corretamente. Se chamasse, por exemplo, cafarnaum. E eis que me deparo com esse livro do Kierkegaard, O desespero humano, no qual ele fala sobre essa minha descoberta pessoal. O desespero só pode ser sentido pelo ser humano, e ele vem como algo positivo, pois é a limpeza de eufemismos quando o espírito se vê diante de deus. Como já disse antes, eu leio muito, demasiado até, mas não levo nada a sério do que leio. Como Borges falou a respeito de Tomás de Aquino, grande parte da filosofia e da ciência me parece apenas uma bem engendrada ficção. Mas levo as intuições a sério. Se somos imortais? Se deus existe? Eu recebo essas intuições com as mesmas reservas que recebo as opostas, de que tudo é o Átomo (o que me parece, devo dizer, uma tolice maior ainda!). Mas eu sei que, se a vida imortal existir, não será para todos. Gorenstein diz que deus pouco se importa com a caridade. O que importa no eterno é o enriquecimento espiritual, o que a caridade seria uma mera consequência, visto o mal sempre, sempre, sempre ser burro. E o enriquecimento espiritual nada mais é que a convivência ativa com o tédio e o desespero. Somente seres imortais e eternos sentem o desespero. Camus também escreveu sobre isso, quando disse que devemos ser fanaticamente lúcidos, lúcidos até beirarmos a insanidade.

2 comentários:

  1. Primeiro gostei do texto, segundo, entre tédio e solidão não sei qual pior ou se são duas faces de uma mesma moeda... sei o que a solidão destrói e muito a autoestima e a bondade de uma pessoa.

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    1. A solidão realmente é ruim, e penso que seja diferente do tédio essencial.

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