terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Ioan



 Quando estou melancólico, eu nunca espero os sinais mas eles sempre vem. Hoje foi ao sair de carro, no início de uma tempestade furiosa que cai com tudo agora sobre a cidade. Nós estávamos no bairro mais afastado, um belo e pacato lugar onde moram os mais pobres, onde os idosos ficam nas portas das casas em conversas alegres e arrastadas; então uma senhorinha, que parecia ter já seus oitenta anos, andava de frente a meu carro, no meio da rua. Ela carregava um fardo de lenha nas costas e, apesar de eu estar dirigindo muito lentamente para não assustá- la, quando ela me percebeu fez um movimento rápido para o lado da calçada, uma espécie de pulo jovial que bem poderia ser feito por uma menina de 10 anos. Passei por ela e ela virou o rosto para nós com um sorriso deslumbrante, cheio de imortalidade e vida. Aquilo deixou todos nós radiantes. "Como ela é linda!", a Dani disse. A Júlia disse: "Papai, parece aquela cena do Powaqqatsi". Já eu estou com o rosto dela nítido na cabeça e meu coração está cheio de esperança e conforto. Talvez isso esteja na raiz daquela crença judaica de que 36 pessoas, absolutamente desconhecidas e sem relevância social alguma, justificam a persistência do mundo. Nada pode com essa senhora, nem a guerra, nem a doença, nem a ignorância assassina. Tudo nela é espírito e fé.

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

A chegada dos hunos



 Até o dia do colapso. Que ele estivesse pelo pescoço com aquela comédia barata que o destino fizera com sua vida era algo para não passar batido a alguém com a mínima acuidade perceptiva; ele até era generoso em sinais indo da apatia mecânica, em que atravessar em marcha lenta um simples corredor era uma tarefa hercúlea lhe soando incompreensível quando se via chegando no outro extremo em direção à luz, até uma ira mercurial que lhe tomava conta de vez em quando e sempre lhe parecia surpreendente ninguém ter providenciado seu afastamento imediato da sociedade por conta disso. Mas o que lhe aconteceu extrapolou todas as expectativas. Não imaginaria que o mecanismo adotado seria o das vozes, e num primeiro momento até respirou aliviado diante a intuição de que isso ele poderia suportar. De certa forma, ainda estavam sendo condescendentes com ele, pois um rompimento de uma artéria cerebral obviamente teria sido muito pior, ou em vez de vozes viessem lhe esclarecer sobre a necessidade de um despertar espiritual através do uso pirotécnico das luzes. Lera em algum lugar sobre um homem que via luzes envolvendo um caudal de serafins de severos semblantes incorruptíveis descendo em conflagração dos céus, o que os exames médicos a que o obrigaram sua esposa e filhas empobreceu bastante a prostrante beleza do milagre ao aparelho de eletroencefalograma transcodificá-lo em um câncer no cérebro. Agora, vozes, e ainda a voz de tom sutil, impossível de saber a qual gênero pertencia, mas não diáfana nos moldes do tédio da moda das músicas celtas, era algo até bastante prazeroso, e sua memória conservava uma ingenuidade voraz que lhe dizia para não se preocupar com consequências fisiológicas. A primeira voz ouvida foi quando estava no escritório de seu chefe, lhe soando tão próxima ao ouvido, com uma determinação trivialesca em querer mostrar que fora conduzida por uma distância não apta a ser imaginada para esse plano dimensional afim de ficar junto dele, que ele se voltou para a cara sibarita cujas encarnações pregressas em corpos de reis e donzelas da corte sua alma moldara para abrigar-se naquele avatar agora rebaixado por uma inexplicável provação detrás da mesa. Viu seu chefe lhe dirigir um olhar desamparado, como se o tivesse flagrado em um momento sem retorno processando alguma descompressão interna na qual o punitivo abandono cósmico naquela vida medonha aparecia em uma nudez absoluta, e teve certeza que ele também a ouvira. Emitiu um sorrisinho de alguém que tinha uma doença terminal, mas quando Eme estava fechando a porta lhe ergueu o braço em um aceno de coragem. Eme tentou entender o que a voz lhe dissera. Parecia "Valentina"", ou, analisando mais tarde com um pendor mais acadêmico, "Mais valia". Seria mais valia? Rebobinava a fita da memória e lá estava a voz, um viking castrati em seu aterrizar etéreo no centro de todo aquele aparato estrutural do emprego que era como uma pedra lapidar em cima de suas energias para continuar vivendo, abrindo sua boca esfumaçante para dizer "Mais valia". Era tudo que precisava, se disse, com humor brincalhão, um espírito de luz marxista. Iria ser preciso fazer mais se aquilo fora enviado mesmo para o retirar de sua casca suicida de complacência. Será que mesmo seus anjos da guarda eram tão identificados com ele que não tinham também escapatória?, estavam geneticamente codificados para o embotamento assim como ele?


Daí foi que notou que uma voz próxima à cabeça era talvez mais aflitivo a longo prazo do que a visão de luzes. Se deu por isso quando estava sentado no sofá com Eike, assistindo à final do campeonato Macarrões Tornytonny de perguntas e respostas na televisão, um programa com índices de audiência devastadores para a economia do país que tinha que parar e fechar as portas dos comércios mais cedo, e que a secretaria de transportes públicos tinha que espremer todas as cartilhas de gestão de riscos para fazer os metrôs e ônibus chegarem com a frota aumentada em seus devidos pontos e estações meia hora antes dos horários costumeiros e assim antes do espetáculo começar afim de evitar qualquer comoção social, qualquer guerrilha ativada pela astúcia da história, e que só os macarrões Tornytonny era quem lucravam com essa bem arranjada estratégia das agências da mídia. A massiva exposição das embalagens coloridas do macarrão instantâneo, que obedecia à ordem do prisma de degradação da luz branca assim como cada luz correspondia a uma foto suculenta de sabor_ vermelho para camarão, amarelo para frango caipira, verde para molho de verduras, marrom para picanha_, fazia com que os receptores neuroniais que se desembocavam nas papilas gustativas ficassem em estado de frenesi paranoico pavloviano. Eike estava devorando seu prato de macarrões Tornytonny sabor pimenta dedo-de-moça, os filetes helicoidais tensionados no alto do garfo próximo à boca descendo por trinta centímetros de rastafári de materialização química suculenta, enquanto à sua frente descansava no colo uma massa quatro-queijos de macarrão Tornytonny cujo abandono paulatino de vapor o transformava em algo próximo à condição sintética, quando a voz voltou com tudo. Tinham passado a tarde daquele primeiro dia (ele e a voz), em estática entrevista sensual de namoro, sentado sozinho no apartamento competindo com as palmeiras quem simulava com mais sucesso indiferença ao ruído dos carros que passavam na rua abaixo, ela lhe contando sobre as regiões de pura eternidade que deixara para estar ali com ele, e ele às vezes pontilhando a sinfonia sincopada com monossílabos de inadvertência que deveriam reforçar a simbiose inter-genérica que se formava entre eles. Estava mesmo ficando louco, pensava, enquanto balançava a cabeça afirmativamente para não ser indelicado em deixar a voz pensar que falava sozinha. Seu sistema mental estava em franco erodimento, agora de uma vez por todas e sem desculpa. Suava frio e agradecia por estar sozinho para suportar aquilo: o dia em que o cérebro de Eme Skhole enfim se transformou em geleia. Talvez por o medo ter se acentuado demais nele, a voz por finesse resolveu dar um tempo, como uma dama que percebe que os coquetéis que tomou a mais começam a abalar as boas maneiras exigidas pelo anfitrião da casa. Ele pôde restaurar a fundação sobre a qual se equilibrava o antropológico aparato de suas certezas motivadoras básicas, e prosseguiu. Até o momento em que o apresentador do perguntas e respostas do Macarrões Tornytonny fez a sua primeira pergunta para os dois participantes, aqueles dois hunos apostólicos que impiedosamente escalpelara mais que metaforicamente todos seus adversários em dez semanas cruentsa até chegarem ali em glória diante toda a nação para concorrerem ao prêmio de meio milhão. As perguntas começaram com pouca dificuldade, referentes a ciclos geodésicos e estações do ano. Para um cidadão comum eram algo impossível para seus cérebros mutilados pela passagem por um rápido e circunstancial sistema de ensino responderem, e que tinham uma poesia embotante tecida propositalmente para levemente insinuar acolhedoras situações para se comer o Macarrão Tornytonny. Até que Eme deu-se por vencido de que ele próprio, saído de um ciclo nababesco de carros de motores injetados e sexo nos banheiros da escola com meninas destinadas a integrarem o exército do assistencialismo público, não poderia saber as respostas às perguntas mais complicadas dos últimos blocos do programa. Mas mesmo assim, as respostas lhe vinham assopradas no ouvido: u`+ u3 - u, Zona de Convergência Intertropical, Kaminaljuyú, Soledad Orozco, Plutão, nó de escota, Marlene Dietrich e não Karoline Herfurth. Repetia baixinho somente para si mesmo, para confirmar a cola soprada pela entidade imaterial, sem que Eike ouvisse, e segundos depois a mesma resposta aparecia sendo dita na tv. Foi para o quarto antes da pergunta final e se olhou no espelho, tampou os ouvidos com força até que só pôde notar a retumbância do zunido pulsando nas têmporas, e bem na superfície daquele isolamento de músculos e nervos contraídos escutou com cinzelada nitidez a voz lhe sussurrar uma palavra. Maersalalhasbas. Voltou para a sala enquanto os confetes e serpentinas caíam por sobre o ganhador, um rapaz de óculos com uma camisa negra de mangas compridas dos cortadores de pulso fracassados que permanecia congelado em incrédulo contentamento no meio da euforia caótica de plateia e apresentador estridentes, e fez a pergunta mais angustiante de seus treze anos de casamento por ela não ter nenhuma salvaguarda de trivialidade que deveria ter, ao que Eike lhe respondeu sorridente, se afundando de alívio no sofá junto com 40 milhões de outros espectadores pelo país: qual o nome do filho de Isaías?, dá para acreditar que perguntaram isso? quem iria saber?

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

A perrenga entre o Bom Samaritano e o Falo Ancestral (curtas sobre sexo)


 Sem exceções, todos os homens da família da minha mãe, uma ora ou outra na vida, já destruíram suas vidas por conta de sexo. Há inúmeras histórias sobre esses homens que começam nelas como desbravadores incautos, animais superiores com amplos recursos de competição, e terminam em camas de hospitais, no bilhete não escrito do suicídio tentado, na bancarrota financeira, na separação de filhos e esposas. Entre eles, literalmente, dois ficaram loucos: um deles deixou tudo que tinha e sumiu no mapa, tendo-se notícias não confiáveis de que vaga pelo sul do país, em estado de semi-indigência; o outro ficou em coma por dois meses, depois da surra do marido da amante, e quando acordou a primeira coisa que disse, ainda entubado, era que precisava sair dali para ir atrás daquela que era o amor da sua vida.


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Todos eles, uma ora e outra, confessaram sem mistérios para mim que o sentido de suas vidas era "a buceta".

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Um desses tios, quando se deparou com uma namorada minha saindo da casa da minha mãe, me chamou de lado com a cara séria de quem iria me dar um profundo conselho filosófico, e me disse: "Fica de olho nela, porque senão eu como".

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Daí fica fácil entender que desde criança, despertada em mim a sexualidade, eu vi a obsessão sexual como uma sina a qual eu deveria combater. Senti o furor da co-sanguinidade avuncular tentar várias vezes me atirar no fundo desse poço. Todas as pessoas tem muitas histórias escusas para contar sobre sexo. Todas. Talvez seja o assunto mais rico para a literatura. Meu pai certo dia quis me ensinar sobre masturbação, enfiando a mão dentro de minha calça e me afagando com carinho didático. Eu fugi e encenei assombro sobre o que era já uma prática adquirida que eu conhecia há tempos. Muitas vezes na adolescência aquilo me cansava; eu repudiava sem nenhuma força de vontade o que eu sabia ser um fator fisiológico vazio, bestial, que a evolução havia exagerado demais em seus símbolos e seus terrores como se não confiasse nem um pouco que nossa espécie teria ensejo por conta própria para prosseguir se reproduzindo. Freud e todas as patologias mais grotescas surgidas por conta do sexo na verdade traz a assinatura paradoxal de que a evolução supervalorizou o fetiche do sexo temendo que as raízes perniciosas da filosofia ascética e da contemplação esotérica no homem o extinguisse pela ausência da libido. Sexo não traz redenção. É uma estupidez certos gurus, escritores e religiosos acreditarem que o sexo é divinatório. Sexo só é destruição e morte, escravização cultural e de gênero, infantiloidismo do envelhecimento que não se aceita.

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Minha primeira vez foi aos 15 anos, com uma prostituta grávida de seis meses que me convenceu facilmente a não usar camisinha. Estava eu na companhia de dois amigos, no puteiro histórico mais pérfido da capital, hoje fechado há muito tempo. Um amigo me aconselhou ficar roçando o bico do peito para facilitar a excitação. Todos nós estávamos ali para perdermos a tal virgindade. Eles foram primeiro, cada um de supetão, vencendo o enorme terror, e escolheram suas mulheres. Fiquei por último, pensei em fugir e mentir depois, já que não havia testemunhas. Mas fui. Cegamente. Ela estava escorada na parede, falando com um rapaz, e se surpreendeu quando lhe perguntei se ela poderia... Levou-me até a porta do quarto, e, com uma singeleza que denunciou que ela era também bastante infantil, perguntou se não se importaria com sua gravidez de seis meses. Aí que eu vi sua barriga. Eu me desculpei, disse que não tinha visto, que não dava, e já me afastava quando ela me segurou pelo braço e pediu um misericordioso "por favor". Fiquei com pena dela e de mim, e entrei no quarto, me despi, e ela pediu que fosse sem camisinha, pois a machucava. 1989, a AIDS em todo vigor, e eu aceitei. Talvez porque queria acabar logo com aquilo, talvez porque tinha absoluta certeza de que não teria uma ereção e isso me salvaria, talvez porque fosse uma das minhas táticas inconscientes para combater o Falo Ancestral assegurando que experiências realistas iria acabar com o fetiche exagerado do sexo. Mas consegui; não senti o mínimo prazer. Meu sucesso foi tanto contra o Falo Ancestral que passei a pensar que a evolução descartava sem muita atenção homens dispostos à assexualidade como eu; em sua eficiência de milhões de anos, o gene vestigial era desprezado com uma matemática facílima, com uma indiferença voraz.

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Demorei 4 anos para voltar a fazer sexo. Minha primeira namorada. Ambos virgens. As primeiras vezes foram catastróficas. Direcionamento manual, complacência, carinhos de consolo. Daí, como se o Falo Ancestral contra-atacasse, de madrugada no SBT vi um filme pornô. Uma suruba de mulheres loiras e homens com cara de eunucos atarefados com desconsolados pênis super-explorados no mercado de trabalho à custa de rebites. Essa namorada, uma loira de um metro e oitenta, se parecia com uma das atrizes. Daí foram 4 anos de sexo intenso com essa namorada. Aonde íamos tínhamos que transar. Uma vez fizemos num estúdio da faculdade de jornalismo. Outra vez na piscina do primo dela. Outra no quarto de um apartamento em uma festa de aniversário infantil de gente que mal conhecíamos. Fiquei tão obcecado que vendi livros do Garcia Márquez por conta de pagar simples três horas em um motel fuleiro. Sei que pouquíssimas pessoas tiveram experiência sexual tão plena quanto eu e essa namorada. Fiz uma sucessão de besteiras no término do namoro. Minha chance desperdiçada de honrar a estupidez dos machos da família. Quebrei o pé e fiquei meses encamado, até que a fúria se escoasse. Não sobrou nada. Fiquei novamente em paz, imunizado. 

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Eu tive uma vida sexual movimentada. Até os 35 anos fui um cara bonito. As mulheres que estiverem lendo isso, por favor, não caiam na besteira de me mandarem cantadas achando que sobrou alguma coisa. Hoje sou um senhor distinto, e indisposto a novas adolescências. Mas teve épocas em minha vida que se abriam para mim oportunidades tantas de cometer sandices e destruir-me por conta do sexo. Quando falo em minha luta contra isso, falo seriamente. Fui criado em meio de mulheres, o que me fazia mais consciencioso. Uma vez fui assediado por uma tia de um amigo, uma mulher que eu tinha absoluta certeza de que seria um erro fenomenal. Ela me daria aquilo que costumam chamar entre o credo maçônico de "chá de buceta", e eu me arrastaria a seus pés, venderia minha mãe para poder voltar a lamber os pés dela. Nos encontramos em uma festa, em que eu estava com esse meu amigo, ela me chamou para dançar, me levou a um canto e me beijou. Dessas mulheres em que o homem é que é a mulherzinha dominada. Era uma nêmesis, linda até o podre da alma. Ela me ligava, falava coisas que me deixavam ainda mais recolhido em minha mulherice ameaçada. Marcamos um encontro na porta do apartamento que um outro amigo me emprestara para a consumação de meu defloramento, ela dizendo que seria possível pois seu marido, um policial militar, estaria viajando. Eu esperei ansiosamente uma semana por esse dia e, pausa, não fui. Isso eu tinha 25 anos. Esses dias a encontrei pelo Facebook. Ela estava inchada, com outro marido. Pelo que li de alguns posts, em que agradecia a deus, ela sobrevivera a alguma doença séria.

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Não gosto de pornografia. Não sou desses que olham a bunda de mulheres na rua. Não olho sequer para mulheres na rua. Não gosto de sexo na literatura. Acho chatíssimo sexo na literatura. Como se, existindo literatura entre as abelhas, a experiência estetizada da cópula do zangão antes de ser deportado para morrer fora da colmeia fosse algo passível de significados profundos. O único sexo que dá certo na literatura é a sua contestação, assim Philip Roth, assim Nabokov, assim Houellebecq; o sexo fisiológico, simples e besta, tipo Henry Miller, é descartável, ainda mais na época em que o sexo é escrachadamente visual e gratuito como hoje.

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Teve aquela vez também, em que o Falo Ancestral fez com que eu seguisse o carro de um colega até que ele deixasse sua namorada, que havia me passado um sinal no barzinho que acabávamos de deixar, em casa. O colega assim que dobrara a esquina, ela veio na surdina e entrou em meu carro. Ficamos no agarro várias horas, mas ela disse que só iríamos transar no próximo encontro, afinal toda imoralidade é relativa. Esperei em febre os dias passarem até o domingo marcado, em que eu iria na hora marcada em sua casa. Eu voltava da capital, sob uma chuva violenta, e estava em cima da hora, mas daria tempo. Daí, no caminho, entre duas cidades que ficam num localização anterior à cidade onde eu moro, me deparo com um acidente de carro. Uma caminhoneta capotara. Paro no acostamento e presto socorro ao casal de senhores que estava no veículo. A mulher com escoriações que não pareciam graves pelo corpo, e o homem com a articulação do úmero na escápula aparecendo bem pelo buraco da carne como em um filme de terror. Levo-os para a cidade mais próxima, quase uma aldeia, sem atendimento médico, postos de saúde fechados. Encontramos o médico em sua casa, ele examina, diz que se o homem não obter tratamento imediato poderá perder o braço. Não há ambulâncias na cidade, eu teria que levá-los até a cidade mais próxima. Eu faço isso, mais 120 quilômetros contando ida e volta. Chego em casa quatro horas depois, já noite alta. Ela sequer atende o telefone. Meses depois o casal encontra minha casa e me leva uma cesta de queijos, e quando eu digo que qualquer um teria feito o que eu fiz, o homem terminantemente diz que não, vários carros tinham passado e ninguém tinha parado. Filme do mês: A Batalha Final Entre o Bom Samaritano E o Falo Ancestral.

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Existem as nêmesis. Para cada homem existe um número regrado delas. Em minha vida encontrei uma, uma veterinária com quem me envolvi por oito meses, e que tudo acabou em desgraça. As nêmesis só trazem desgraça, como paga pelo sexo mais infernal e demoníaco que existe. Eu viajava por três horas para me encontrar com essa nêmesis, com uma ereção contínua. Transávamos por horas seguidas, e nunca era o bastante para mim. Lembrava-me daquela piada em que alguém chama o outro de piolho, e apanha sordidamente; o outro pede para ele o chamar de piolho novamente, e ele o chama; volta a apanhar; e assim vai, até que o cara está todo destruído no chão de tanto apanhar, não conseguindo falar mais, e o outro fala: "me chama de piolho agora, me chama", e o cara no chão faz aquele gesto de unha contra unha que as mães fazem quando esmagam os piolhos retirados da cabeça dos filhos. Assim era eu com a nêmesis. Fiquei de olhos fundos, apoplético. Assim vivem continuamente meus tios. Foi a lição de misericórdia que o Falo Ancestral me concedeu, em nosso último combate. Tudo acabou em desgraça, eu quebrei de novo meu pé, como uma tradição de expurgo, e fiquei dois meses acamado até que a compulsão se esvaísse. A gente sabe que foi uma coisa vazia, um estrondo cujo terror demonstra seu histrionismo diabólico justamente por se revelar sem conteúdo depois que passa, pois a nêmesis é plenamente esquecida. Eu nunca penso nela, não sinto mais a mínima atração por ela. Ela é esvaziada tão profundamente no sobrevivente que, entre todas as mulheres, ela é a última que despertaria atração.

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Mês passado eu vi uma outra nêmesis. Assim que entrei nos correios e me sentei esperando ser chamado o número da minha senha, a vi em pé diante o caixa. Uma moça morena, de short, que era invisível para todos os demais, mas que eu não consegui despregar os olhos dela. Retrospectivamente percebi que desde a entrada eu sentira o poder dela, mesmo sem a ver. Eu não me movi, deixei que ela fosse embora, montasse na moto, e sumisse. Não haveria continuação à perrenga do cordel do Bom Samaritano Contra O Falo Ancestral.

(2016)

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Assim



 É costume aqui onde eu moro as pessoas que sentem a patológica necessidade de passarem a ilusão de serem ricas comprarem Hilux. Ontem ouvi uma dessas pessoas, no círculo de iguais, dizendo que está procurando uma Hilux para comprar. A reação foi como uma festa viking: todos a congratulando, dizendo "nossa, agora você vai ficar metida, hein!", e gritinhos eufóricos. O segredo é comprar uma caminhonete dessas com dez anos de uso, pois a lei diz que são isentas de imposto. Como uma nova custa 300, esses testes de laboratório do vazio cósmico as compram por 190: uma economia de uma vida para isso. Daí esse cidadão-cidadã médio sai com seu belo tanque cromado, com pneus altos para dar-lhe a sensação de ser um faraó agraciado pelo deus sol, vendo o restante do populacho de cima, com a cabeça erguida dizendo de toda forma metafórica possível: "Viram? Eu sou Elite! Sou superior e detentor de toda glória eterna e divina!". E etc, etc. Há dois anos, duas dessas Hilux foram roubadas na mesma noite de domingo. Uma delas, seu dono estava na Assembléia de Deus agradecendo por ser um Escolhido. Como esses macacos de realejo não tem mais grana alguma para pagar o seguro astronômico desses veículos, um roubo significa um prejuízo imenso, lembrado por anos quando todo mês tem que pagar a parcela do financiamento. Daí eu faço igual o Hermann Hesse, me aprofundo na carência regressiva que fez surgir esse sujeito espiritualmente mutilado até achar a criança primeva que me possibilite ter alguma empatia, e penso na minha vida. Eu só não suicidei porque tive filhos. Não é uma frase de impacto. Eu não teria me dado um tiro na cabeça nem saltado do décimo andar. Eu só teria bebido e comido até que meu corpo, um belo dia, bum!, explodisse. E teria sido, a seu modo, muito divertido: cada dose de scotch vislumbrando um cenário cifrado no rock inglês ouvido na acolhedora sombra noturna do quarto. Antes eles teriam que me aposentar, os amigos que resistiriam por alguma ameaça cristã de reciprocidade, e eu teria que fazer alguma memorabilia para ser cantada em odes menores nos primeiros dias de luto, depois que o IML me retirasse com a porta arrombada: eu teria que dar um piti numa festa de confraternização, quem sabe cantando a esposa do dono da casa, com meu pescoço gordo e meus olhos empapuçados, mijado na churrasqueira, abraçado cada um até cair no chão enquanto declamava Whitman ("Ah, como ele era culto e dizia coisas elevadas que ninguém entendia..."), e na certa nem teria sido expulso. Coitado, abandonado, sem filhos, sem esposa, um solteirão nerd cujo cérebro se liquefizera nos livros. Mas não choremos. Uma moça se grudou em mim por algum motivo e me passou o golpe da barriga (ela não lê isso aqui, portanto não precisamos usar esse tom sussurrado). Quando minha mãe soube que eu seria pai ela falou: "Meu Deus, o que vai ser da criança...!". Mas, contra todas as expectativas, inclusive as minhas_ eu odiava crianças!_, eu me mostrei um pai bem acima da média. Já escrevi vários textos chorosos sobre isso, mas é verdade mesmo, fazer o quê?, quando vi a Júlia ali na sala dos bebês, pela primeira vez, eu senti claramente que estava tocando o sol. Foi algo tão devastador que eu fui esfolado de dentro para fora e sofri uma mudança irreversível. Esses dias revi por acaso a primeira foto entusiasmada que tiramos da Júlia e dei um pulo de susto: era um ratinho indefeso e fragilíssimo que apresentei para todos como eu sempre a vi, desde aquele momento transfigurado, como o ser mais perfeito e poderoso que algum dia existiu. Há um poema de Brecht que diz que ele iria se conservar saudável e atento para não morrer prematuramente, assim não deixando abandonada a pessoa que ama. Demorou um pouco para que eu consertasse as coisas, mas então eu me mantive sóbrio e saudável, pesando o mesmo tanto de quando eu era um jovem Hércules de vinte anos. Eu não aconselho a ninguém que seja pai e mãe. Aconselho o contrário: fiquem de boa, sigam seus propósitos, não entulhem o mundo de lunáticos de coração triste, a não ser que VOCÊS TENHAM TALENTO E PREDISPOSIÇÃO E DEEM TODA A SUAS VIDAS PARA OS FILHOS (pronto, agora poderemos baixar o tom de voz e voltarmos para o nível elegante). Eu doo toda minha vida para meus filhos. Não cedo a extorsões sentimentais e sou grosseiro quando quero estar em silêncio e em paz, e muitas vezes meu carinho é brusco. E eu me esfoço para que o amor não me perca na missão de ensiná-los a serem seres humanos dignos. E blá, blá, blá, isso aqui não é texto motivacional. E o que essa coisa toda tem a ver com Hilux? Eu não poderia ser bom pai e ter Hilux? A resposta é não. Conhecimento de classe, psicopatologia cotidiana, honra ao Espírito, sentir lucidamente as emanações do apocalipse ecológico, dinheiro como liberdade educacional e não como impostura, não viver a vida que se exibe, não abrir tão ferrenhamente as portas para a depressão diante o vazio cultivado, não seguir o senso comum, não ser parte da manada, etc, etc, etc.

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Fissuras




 Tudo havia naquela manhã para fazer com que Natália Mendes não saísse de casa, o aguaceiro de proporções bíblicas que começara a cair do céu, a indisposição da vizinha em cuidar de sua filha doente, até mesmo a insurgência de um vírus que as autoridades sanitárias passavam a dar particular atenção; mesmo assim, Natália achou bastante justificável do ponto de vista da lógica passar por sobre essas circunstâncias e ir à agência de correios retirar uma fantasia de feiticeira que encomendara da China. Não lhe passava despercebido, porém, que essa teimosia disparatada escondia um indicativo de um transtorno mental. Em pé na fila de espera dos correios, após ter enfrentado um trânsito que o radialista pelo rádio do carro disse ser “uma troca de rancores não direcionados”, atrás de um senhor que era a metade de seu tamanho e seus olhos magneticamente se prendiam em sua tonsila  avermelhada que em nada poderia produzir uma distração de melhor nível, Natália se fazia uma análise do que poderia ser os sintomas de que seu aparato interno estava por implodir, com um estrondo talvez semelhante ao da tromba d`água que se chocava do lado de fora da porta rotativa. Ela era uma mulher que certa vez um namorado casual lhe descrevera ter uma estética retilínea, coisa que ela tomara como retrato preciso de seu caráter. “Se fosse uma obra de arte”, o mesmo sujeito prosseguiu em sua piada de gosto duvidoso ou sua cantada ruim, “seria um Modigliani com a inovação de umas pinceladas sombrias”. Ela tinha sobrancelhas retas, o porte alto e esguio, o queixo mais pronunciado do que gostaria, os lábios finos e retos que tanto a incomodavam na adolescência (mas que agora, fruto dos efeitos da hidrostática, já lhe eram resignadamente indiferentes). Reconhecia que era uma pessoa com arestas, seca, monotemática, autodisciplinada em modo espartano para conter uma profusa rede de compulsões, sem simpatia e sem potencial para ser odiada, com a deferência sem vantagem da neutralidade deixada em paz das ferramentas altamente funcionais. Ela se fazia essas avaliações sem qualquer culpa ou necessidade de estorno emocional, como alguém que contempla um frio jardim de inverno observando com langor o traçado do vapor liquefazendo-se no vidro de proteção. A verdade era que ela daria tudo para sair daquele apartamento de capa de cd de música de câmara, com a meia luz descendente que vai enfraquecendo com uma errática impressão de charme assim que se saía da sala para o quarto. O quarto de tantos sonhos ruins, aplacados com dois comprimidos de Amitriptilina todas as noites. 

           Não era fácil ela dizer isso, mas ali naquele ambiente de pobreza protocolar e descaso, com uma estante tripla na parede atrás do balcão com as depressivas caixas de encomenda e um boneco em uma cadeira de rodas com o uniforme dos correios, ela sabia que fugia de sua filha Sofia. Aquele ambiente não oferecia nenhum escoro estético, nenhum refúgio para dissipativas ilusões sobre outros mundos possíveis que estivessem lá fora, além da tempestade, a aguardando. Se havia uma fixação na ausência de eufemismos, aquela sala seria a borboleta mais exemplar pregada no isopor, a amostra perfeita. Natália sentiu algo como os músculos da nuca se contraindo sob o poder daquele tédio em estado puro, de forma que não teve como conter um suspiro. O homem da tonsila se voltou para ela dando algo como um muxoxo de reconhecimento e movimentou as sobrancelhas, como a dizer “o que fazem a gente suportar, não é mesmo?”. Mensagens mal interpretadas e a fugacidade da simpatia urbana, é o epitáfio da sociedade do século XXI, ela pensou. Era uma frase típica de Thomas, o seu marido, o que ele diria para ela se estivesse ali, com a voz propositalmente entonada o tanto acima do sussurro para que o outro pudesse ouvir. A sua estranha necessidade de audiência, não para ter algum tipo de fetichismo tolo de reconhecimento por sua perspicácia afiada, mas porque era esse o atendimento a algum protocolo interno que nem chegava a ser manutenção do amor próprio, mas uma espécie de registros catalogados de seu estoicismo diante o mundo. Ela fechou, dessa vez, bem forte os olhos, para ao mesmo tempo expulsar e reter esse diagnóstico, queria desviar sua mente daquilo e ao mesmo tempo preservar a frase para quando chegasse o momento inevitável que teria que confrontar o tema. E nessa hora ela apenas pensaria, em silêncio consigo mesma, que também o século poderia ser definido pela empáfia das frases de efeito que para nada serviam vinda dos homens elevados. Elevação! Fez um esgar alto com a boca a ponto de temer que algumas gotas de saliva tivessem partido para a ilha na cabeça do baixinho à sua frente, e ficou retesa esperando que ele se virasse novamente, não mais tão estupidificado pela solicitude. 
          Mas não, tudo transcorrera mais uma vez em seus circuitos particulares, tudo estava em sua cabeça. Todas as dores, a solidão, a sensação de um abandono anestesiado e docemente dispensado de transcendência, aquele descuido com a alma que talvez fosse outra marca do século, apenas que ninguém mais aceitava tais palavras sem uma culpa diante a prepotência, tudo isso dentro fervilhando, aumentando a pressão e logo tendo sua defasagem calórica em alguma atenuante oferecida por outras sublimidades comezinhas do pensamento dentro dela, provocando ruído que não se excedia nem um milímetro para o ambiente atulhado de tédio e falta de misericórdia, ela e os demais sete ou outro pacientes da fila com suas torrentes de angústias e ânsias e severas distrações, viajando naquele mundo afundado em uma tempestade cuja mais benemérita era a que se ouvia lá fora, balançando a placa de proibido estacionar de frente ao prédio. Pois bem, que calma, apesar de tudo. Que silêncio. Nos jornais se parara de noticiar as tragédias entre vizinhos por causa desse direito salutar já desistido de se ter, não se computava mais os assassinatos, os crimes passionais, motivados pela cobrança de um instante só de silêncio, de sono regido pelo apagar profundo sem interrupção de fora, e ela entendia que não porque o ser humano houvesse tido algum istmo luminoso e repentino de evolução no sentido da cordialidade e do altruísmo, mas porque os medidores sistemáticos da loucura, a polícia, os médicos legistas, mudaram o procedimento, lançaram aquela realidade inexorável na fluidez das estatísticas gerais, talvez eles mesmos precisassem desse consolo, dessa ilusão.
        E era em ambientes arruinados como aquele que ela conseguia esse silêncio. Aquele amarelo antigo, alguma tinta que apesar de tudo tinha sua qualidade primeva porque tantos anos e sob o ácido de tantos suores ela ainda resistia, como uma combalida vítima de radiação, mas resistia, conservando uma integridade de certa nobreza já que se via o efeito dessas fricções de décadas no esmorecimento de sua força mas não em descasques e fissuras. Será que eles repintavam aquilo?, ela pensou, com apreensão. Será que eles vinham com uma tinta cuja fórmula só eles detinham e repunham aquela tristeza fria, desprovida até o grau mais profundo de graça, em algum domingo em que a agência estivesse fechada e assim conservasse o teor secreto daquela secular conspiração. Ela sorriu, isso seria o tipo de observação que teria alegrado Thomas, o teria feito soltar seu sorriso residual da juventude, em que passavam tardes assistindo as cópias piratas do programa de televisão do Monty Python, o ministério dos passos idiotas, o papagaio morto, o futebol dos filósofos. 
         Ela pôde ouvi-lo, dessa vez falando baixinho apenas para que ela ouvisse, chegando a boca próximo ao seu ouvido não dispensando a insinuação sexual do arrepio, que ela não tinha jeito, que imagem de soberba leveza, era assim que ele falava, sempre colocando as grandes palavras esvaziadas para que elas voltassem a ter um sentido no anacronismo das ruas, soberbo. Natália olhou à frente e havia mais cinco pessoas, duas tinham sido dispensadas pela atendente. Ela recolheu seu queixo para dentro da gola do casaco de feltro, assegurou num lance rápido de olhar se não havia nenhum alguém pelos cantos que ela não tivesse visto anteriormente e que pudesse a molestar olhando-lhe naquela sua intimidade e não viu ninguém, assim pôde usar a mão enluvada para esconder do vazio o sorriso aberto que tais pensamentos lhe provocava. Tinham tido a sua porção de felicidade, era isso. A felicidade nesses termos pequenininhos, quase invisíveis, tracejado na nota de rodapé das situações bombásticas, era a mais democrática das sensações para todos. Tudo mais foi um grande mar de agruras e incomunicabilidade. Mas vamos lá, vamos fazer um diagnóstico, ela voltou a pensar. Seria a reinante depressive personality, a patologia com etiqueta, que enfim insistia para tomar rumos bem menos retóricos nela? Thomas fora acometido com isso, e como foi terrível seus últimos dias. Um filósofo catedrático, era esse o fim que sua mãe jamais suspeitara que o destino agiria com tanta desfaçatez para lhe oferecer, ele lhe dizia, um outro tipo de alacridade instalado em seu humor como aquelas usurpações corporais progressivas dos filmes de invasão alienígena. De tais ele não apreciava muito, o horror de uma ciência que não passava de crendice popular insuflada pela linguagem pomposa dos jornais. Toda a apreensão científica se deve à maquiagem das fotos, ao cinemascope. Quantas horas são precisas para filmar uma sequência em slow motion de um sapo projetando sua língua para pegar a pobre libélula, e era isso que ficava na mente das pessoas, essa fórmula fractal de uma perfeição de relojoaria suíça, escondendo a abjeção, as falhas, os acidentes de percurso, os dejetos biológicos, as chances minúsculas que a vida real tinha para se preservar. 
        Mas ela gostava desse tipo de entretenimento, a banalidade era uma salvaguarda, os efeitos especiais que a cada ano pareciam mais ridículos a adstringência ao requerimento de certezas e precisão. Thomas, Thomas, como ela gostaria que ele tivesse resistido um pouco mais, mais uns anos, camarada. Ela teria sido submissa a um nível humilhante, se ele precisasse isso, ele, tão loquaz e charmoso, tão na verdade cândido em sua aparente frieza, tão incapaz do mal em sua indiferença que muitas vezes a sufocava. Ele era um especialista excelso, doutor em história em um grau avançado o suficiente para que as pessoas sentissem aquela convecção de uma presença física de seu poder, sentiam que era alguém que elas não gostariam de imolar. Nos jantares oficiais que ela tinha que ir, sua arredia e silenciosa esposa, ela percebia numa observação perscrutadora o quanto o simples silêncio avaliativo dele entre uma fala e outra, ou quando se preparava para responder a uma pergunta, a mais trivial delas, todos ficavam em uma expectativa suspensiva, como se algum prejuízo pudesse sair daquele totem da sapiência que engendrava vários fios do futuro individual. Alunos, colegas, chefes em busca de votos para cargos da reitoria, as orelhas da imprensa nos informantes à caça do q eu pensam as mentes potentes sobre a situação mundial e as novas promessas da política. Natália era atrofiada nesse nível de influências, mas não era tola em não pensar que por sobre suas conexões obtusas a tensão sexual desses elos secretos e proibitivos pulsava entre mestre e alunas. Teria tolerado que ele tivesse um caso com algumas delas, se isso servisse para poupá-lo porá mais alguns anos, o suficiente para Sofia entrasse de vez dentro de uma maturidade que fosse razoável para ela. Talvez não fosse tão ruim se pensasse apenas pela ausência de competição animal visto que no departamento em que ele trabalhava todas as mulheres fossem iguais a ela mesma. Pare com isso, Natália, ela se admoestou, que infantilismo tolo. Teria doído muito, teria transfundido a depressão dele para ela com força total. Ela teria virado a histérica que sabia ser abaixo, bem abaixo, do seu autocontrole maciço. 
             A verdade é que ele desistira. Ela olhava agora um dos adolescentes se virando e saindo com os passos retesos, mascando um chiclete e esfregando o nariz com a mão, o moletom em cores escuras, vermelho e negro, má percepção da moda, ou será isso que os motoboys das empresas estão usando agora, um a menos na fila e um a mais no tumulto do trânsito lá fora. Estava próximo para ser atendida. Era uma tolice ficar na fila, já que alugava uma caixa postal e a atendente lhe ter dito várias vezes que o contrato reza a preferência, só entregar a notificação de chegada e assinar o documento de recebimento. Mas Natália gostava de seguir o modo operante básico. Não saberia o que responder se alguém a cobrasse de furar a fila. Suas arestas ficariam boiando na liquidez de suas estampa cubista e sua presença estudada sofreria um severo prejuízo. Quem sabe não era isso que estava dentro dela à espera para colocar os monstros para fora? Quem sabe ela não recorreria a uma fragilidade que tentaria fugir na surdina e seria uma forte candidata a aparecer nos vídeos de fúria da internet. Eram assim as pessoas ponderadas descobertas em seus redutos mais secretos, explosivas, surpreendentes, subitamente se vendo dominadas em seus atos libertários por eros e pela ira. Baseado nessa precaução de reconhecer que o animal antropológico não resolvido, provocado nessa prisão urbana opressiva em todo seu medo assassino, que existe dentro dela, era que a fazia esperar cordatamente a sua vez.
          Ela olhou à sua frente. Havia sete pessoas na fila, duas delas senhoras com casacos compridos e que, olhando-as pelo ângulo das costas, os ombros encolhidos e as perninhas com meias abertas a uma distância condizente com o nível seguro de equilíbrio da idade (um tanto comicamente afastadas uma das outras), podia-se saber que já passavam dos setenta. Os outros cinco se dividiam na malta de jovens ouvindo música por fones de ouvido, um rapaz muito magro de olhar nervoso que uma vez se virou para trás para trocar como ela um contato precognitivo, e o senhor calvo de baixa estatura com o desenho geográfico-cubista no alto da cabeça. Além delas, havia a moça que os atenderia, claro, que Natália conhecia e, em ampliadas perspectivas, poderia dizer que era amiga. Sopesou essa palavra, “amiga”; não era uma pessoa sentimental e se dava demasiadamente bem com sua solidão para se deixar aventurar por tais conceitos muito desgastados, mas olhando-a dali, no momento em que seu pensamento pareceu ter-lhe tocado em uma outra comunicação metafísica mais consistente, de modos que a moça parou o que estava fazendo e ergueu a cabeça do prontuário que preenchia de um cliente, devolveu-lhe o olhar e sorriu, Natália sentiu com uma acalorada certeza de que eram amigas. Uma ternura agradecida fê-la sentir o que havia por detrás dessa palavra, amigo, e porque de certo modo as pessoas que levavam tal palavra a sério destinavam-lhe tamanha importância. Talvez seu problema seja, afinal de contas, só a velha carência, a patologia social moderna do século XXI, ela pensou, com os olhos brilhantes voltando a averiguar a atendente em busca de um outro contato. (Contudo, ela se lançara em uma atarefada ocupação de digitar algum formulário no computador.) 
          Natália tinha dificuldade em lembrar-lhe o nome, um de seus defeitos sociais mais angustiantes. Precisava chama-la pelo nome assim que chegasse a sua vez e ela se pusesse de frente ao balcão; viu que era de sumária importância fazer isso, de modos que estava decidida a virar as costas e sair dali se não tirasse o nome dela do inconsciente. Sua mente ainda era uma massa de conexões fresca e saudável, felizmente, apesar de às vezes achar que a aproximação dos cinquenta a deixasse um tanto retardada e amortecida. Pegando o rumo de uma série de sinapses que vieram-lhe em ajuda, ela se lembrou de quando a amizade surgira, o que se tratava de um acontecimento de certa forma memorável. Foi há dois anos. Um motorista incauto direcionou sua banheira sobre quatro rodas, um Ford Galaxy branco de mafioso italiano, para uma vaga de estacionamento de frente à agência. O carro dera uma estabanada bruta de ré em uma adolescente que estava sentada em sua bicicleta esperando na linha da calçada, e a menina foi lançada para debaixo da grande raia esmaltada do para-choque do veículo, o motorista, um velho marujo de bermudas cáqui e camisa entreaberta no peito, não tendo-lhe passado por cima porque as pessoas começaram a gritar. A balbúrdia chamara a atenção de Natália, que estava entrando na agência com seu olhar fermentado de íntimas distrações, se preparando para o arroubo de sinestesia entediante que o ambiente lhe oferecia. Nesse momento da lembrança, como num flash, o nome da atendente lhe surge: Erica. Como pudera esquecer? Natália levou Erica e sua filha para o pronto socorro. Olhava pelo retrovisor a cândida atendente chorando representando tudo o que ela demonstrava ser detrás do balcão, comedida, voz suave, uma batalhadora que sabe o quanto custa a vida. Alguém que deveria ter tido uma educação severa, uma mãe que agora ela lhe saíra uma cópia em termos de monasticismo e aflição. Mesmo tendo ficado evidente, ao longo do tempo em que conduzia o carro numa linha equilibrada entre cautela e urgência, que a menina estava bem, que fora só um susto, a pobre criatura parecia uma pietá com a cabeça da criança no colo, e era algo belo de se ver. Não pode espantar os indícios de que aquilo era uma mensagem direta para ela, que os arranjos da aleatoriedade disfarçada de sentido fizera para a educar. A pessoa podia ser educada pela ação das circunstâncias, não podia? Natália aceitava esse caridoso cuidado, seja de quem fosse, numa altura de sua convivência com sua filha em que ela tinha tudo para reparar nos seus desmazelos como mãe, em sua incapacidade de digerir as péssimas influências que recebeu no ciclo descendente de filiação. Sua mãe havia sido uma triste sofredora, sem canais comunicantes que dessem lugar ao terno reconhecimento da miséria mútua, que Erica parecia tão bem ter tido comunhão com sua mãe. Erica chorava, puxava a massa líquida que se produzira no nariz, depois apertava os lábios com uma lisura composta e, lá de trás em sua moldura renascentista, erguia a cabeça e olhava-a pelo retrovisor. 
           A amizade se firmava ali, naquela troca de olhares que Natália fingia não ter tempo para levar a sério porque não queria lhe afligir ainda mais a fazendo pensar que poderia ocorrer mais alguma agrura no trânsito, entre motoristas tão ofensivos. O médico examinara os tornozelos da garota, olhara o fundo dos olhos com uma luz estetoscópica, e educadamente retirara quaisquer dúvidas que pudessem ficar nas duas mães. Não havia nada, nenhum trauma além do trauma psicológico. Natália levou as duas para um prédio de lajota azul, de quatro andares e sacada pequena (o tipo de detalhe arquitetônico que evidenciava o tempo da república nova em que fora construído, sem funcionalidade que coubesse um ser humano ali em pé à frente da janela, apenas um adendo que só numa aposta muito particular se veria alguma preocupação estética em desafogar o olhar dos moradores dos espaços quadriculados em série que tendiam ao vazio de suas linhas amplas e sanitizadas de humanidade). Fora convidada a subir pelas duas, que mal lhe falavam no carro, mas que trocavam afagos em voz baixa, e ela, talvez numa falha de etiqueta que suportara por uma necessidade angustiante de manter contato mais aprofundado com aquela mulher, aceitou. Ela observou bem no rosto dela mas não viu nenhum repúdio, saiu do carro pela porta traseira segurando a filha e depois lhe dando uma espécie de concessão de toque no ombro que a autorizava a andar sozinha, embora ela tenha pego a sua bolsa e a pasta de materiais escolares da menina. Subiram as escadas escuras e comprensadas até o terceiro andar, Natália se sentindo uma prestidigitadora convidada em uma apresentação ao ver que sua estatura e seus traços singulares ganhavam uma estranha áurea de graça na espiral e na sobriedade anacrônica, como um ser vampírico que se equilibrava bem sem se apoiar nas paredes. Era apenas dois apartamentos por andar e o apartamento, ao contrário do que se via de fora, não era nada deprimente. As duas, talvez mais por empenho da mãe, gostavam de plantas, espalhadas em ângulos

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Cary Grant



 A Dani me mandou ir a uma marcenaria hoje de manhã para finalizar a compra de uma mesa. Mostrou-me uma conta de facebook com a pessoa com quem eu teria que falar, dona da empresa. Eu olhei bem as fotos, parado com o celular ao lado da Dani. Instintivamente, olhei para a Dani e disse: "É com essa mulher que devo falar?". "Sim", ela respondeu, descansadamente. É claro que a Dani tem plena confiança em mim e somos lúcidos o bastante sobre os efeitos naturais da hidrostática corporal, mas por mais que ela tenha consciência que um homem de 50 anos como eu já está há muito fora do mercado libidinal eu me senti ofendido que ela não se importasse que eu falasse com aquela mulher.

A mulher das fotos era simplesmente deslumbrante. Era perfeita! O rosto dela era tão cheio de detalhes significativos que era impossível ver tudo de uma vez. Era preciso fazer pausas e retornar à cartografia daquele terreno de altíssima octanagem um sem número de vezes. Era como o rosto do Cary Grant, se o Cary Grant fosse uma deusa loira dos olhos azuis. Eu pensei que era muito desprezo por parte da Dani pelo meu lado icognoscível e fiquei pensando se haveria na história matrimonial algum episódio de desavença por ciúme antecipado e criado pelo próprio acusado. Eu mesmo jamais, JAMAIS, deixaria que a Dani chegasse sequer perto de certo ortopedista de queixo quadrado e enfadado ar ibérico que mora na cidade.
Mas tudo bem, vamos lá. Era uma incomodação ter que me haver de novo com já acomodadas áreas de uma antiga vaidade, e em vez de ir de bermudas e chinelas eu me vi com calças compridas novas e uma camisa social fina mas não o suficiente para mostrar premeditação.
Estacionei o carro a uma certa distância, me admoestando por perceber que o fazia para não mostrar à deusa que eu não vinha com um Porsche 911 mas com um carro popular normal. Entrei na marcenaria, me dizendo que era uma atitude estúpida eu andar espichando a incipiente escoliose para ressaltar meus 1,90 metros, e perguntei pela mulher a um dos funcionários, citando o nome da beldade. Fui até onde ele me indicou e entrei no pequeno escritório. Bom dia, eu disse à moça, a senhora M. está? A moça sorriu de modo simpático e respondeu: "Sou eu, em que posso ajudar?"
Comprei a mesa, efetuei o PIX, saí com os ombros relaxados e entrei em casa feliz. A Dani me esperava com seu sorriso sarcástico. Eu parei de frente a ela e suspirei aliviado. Não era um teste, era óbvio, mas ela contava muito com o pouco caso que eu dou às formas a que chegou o autoengano na era cibernética.
"Você já tinha ido lá, né?", eu perguntei.
"Não notou o tanto que a cadeira dela fica distorcida na região da cintura, nas fotos?", a Dani disse, rindo com um ar cheio de faceirice.
"Será que não é um estratagema comercial? A pessoa chega lá apreensiva, e tem o choque de achar alguém igualmente consoladoramente humano?", eu ainda insisti.

Virtù

 



Ser filho de um casal que se divorciou quando eu tinha 8 anos desenvolveu bastante a noção do que meus pais temiam fracassar em mim. Os dois tinham pavores opostos. Meu pai, nos nossos encontros mensais, na certa passava noites sem dormir quando ouvia minha voz fina, o jeito sensível que um menino na ingenuidade do deserto hormonal tem de caminhar e de se portar. Minha mãe via em mim um pervertido, na linha contrária, que apesar da minha timidez patológica sempre dizia para eu ficar longe das primas. A natureza da supressão nos torna maquiavelicamente lúcidos, e eu recebia essas coisas com um ar terno, ainda não conseguindo verbalizar a verdade intuída do quanto eles, que eram pais tão jovens, se rendiam ao desamparo.

Um dia eu saí do banheiro e minha mãe entrou, fazendo uma cara de nojo profundo, cheio de temor averiguativo, por ter pisado em uma gota fria.
_ Calma, mãe!_ eu disse_ É só sabão.

A real

 



Cheguei à meia idade com a descoberta que só tenho um talento. Eu assobio muito bem. Uma coisa que não serve para nada, não atesta superioridade em relação a nada, e que sempre incomoda. Ao longo da minha disciplina por não assobiar perto de outras pessoas eu venho percebendo que o assobiador equivale ao cara que tem suvaqueira da braba: todo mundo faz cara feia e repudia mas nunca faz o que deveria fazer, que é chamar o sujeito num canto e falar a real para ele. O assobiador e o suvaqueiro, por isso, podem levar toda uma vida de má fama e ser enterrado como uma lenda nefasta, na completa ignorância de seu problema.

E, olha, não é por nada não, mas eu assobio que é uma beleza (aiiii!). Sei assobiar sonatas para flauta de Bach inteiras, assim como o concerto número cinco para flauta de Mozart (agora mesmo, enquanto escrevo, estou fazendo o bico). Esses dias, por uma grave falha, assobiei uma canção do George Gershwin, "There's a Boat That's Leaving Soon for New York ", no trabalho, e vi que alguém lá no fundo da sala assobiou em protesto, imitando, como um "cala a boca!", ou um "vá limpar esse suvaco!". É um dom que tenho que manter em segredo, sem nenhuma esperança de reconhecimento póstumo.

Pois bem, vou chegar onde quero. Não podendo exercer minha genialidade asquerosa senão em casa, aqui eu me dou a liberdade de ser uma Anne-Sophie Mutter dos beiços estendidos. Ando pela casa, que é grande, espaçosa, com quintal, me sentindo como se estivesse no Carnegie Hall, como se fosse uma noviça rebelde livre e solta, e só não estendo os braços para os passarinhos pois como bom conhecedor da minha arte sei que tal não é a posição propícia para o uso correto do diafragma para que ela se externize plenamente. Então assobio, assobio, assobio, até que...

...até que a Dani se vira para mim de súbito e solta um: "Nossa, mas assim você vai ficar bicudo!". Assim mesmo, na lata! Quinze anos de casamento, e só agora, ela me joga essa sobriedade inesperada na cara. Eu disfarço, rio sem graça, recolho meu instrumento passando a língua para umedecê-lo: a umidade da vergonha. Vou para o quintal e me sento na cadeira para digerir aquela revelação. Então a Dani suportou isso por 15 anos. 20, se contarmos as vernissages que eu fazia nas nossas andanças apaixonadas de madrugada, quando éramos namorados, eu assobiando o Principe Kalender enquanto a levava na garupa da bicicleta. Fi fufi, fifufifu, fi fu fi fi fu fi fu fiiiiii...

Eu ensaio ficar amuado, tentando acender um ressentimento manhoso. Penso em contra atacar mandando uma indireta no estilo "nossa, mas assim você vai virar uma Maria Callas", em referência à sua mania de cantar o dia inteiro. Mas, infelizmente, já passamos há anos por essa fase, e eu já me peguei deitando o livro no peito e cochilando embalado pela voz dela. A Dani canta muito mal, e ela mesma sabe disso, mas eu gosto de ouvir sua voz pela casa, cantando.

Nem estou com vontade de me vingar. Só me vem na cabeça uma música. Também é de um álbum do Miles. Como é que é mesmo?
A Don't Wanna Be Kissed (By Anyone But You). Firulivi fi, firulivifirí...



segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Insignificâncias




Eu antes desprezava psiquiatras. Achava que era coisa de rico vazio, etc, essas coisas. Daí com a pós-covid eu tive um quadro de depressão preocupante e minha irmã ligou para um amiga dela, psiquiatra em Brasília, e uma antiga amiga minha também de quando eu era estudante. Essa amiga me mandou um email marcando a data de uma consulta pelo zoom, em caráter de urgência e que ela não receberia um não como resposta. Isso me deixou com noites sem sono atormentado por aquela imposição ridícula e pelo desconforto de ter de ficar de frente a ela pelo computador falando o quê? Eu não sabia como deveria me comportar. Daí aconteceu, chegou o dia. Uma hora de consulta e eu tinha chorado e revelado coisas que nem eu sabia que tinha guardadas lá no fundo. Eu até brinquei dizendo que ela tinha que trabalhar era para a PF. Ela me passou a quetiapina, e mais um outro remédio para loucos brandos. Esse segundo remédio eu tomei por um mês e não senti efeito nenhum, a não ser a mudança da percepção das cores de algumas flores no quintal e a tendência de ficar falando para a Dani como a vida era maravilhosa. Olhei na bula para ver se tudo lá estava legalizado, vai se saber! A mulher era uma das minhas amigas da juventude! Eu fiquei satisfeito e feliz por me desobrigar daquilo com dignidade: eu havia chorado e tal mas havia a ética profissional, ela não iria me sacanear. Daí ela me manda um email por mês avisando que seria consultas mensais. Eu passo por todas, choro sempre, e descubro o quanto o ser humano é frágil. Cada movimento que fazemos, cada pensamento, está alicerçado numa coisa ruim por qual passamos. Eu pude falar da morte do meu melhor amigo de covid, que eu, numa reação estupidamente condicionada, fazia esforço por não me atingir tanto porque, afinal, eu era Homem (sim, se vocês caíram nessa balela de me acharem um sujeito culto, eis aí a matéria da qual eu sou feito). No final de cada sessão eu estava quase em posição fetal, entrado numa zona proibida tensa e sombria do meu espírito atormentado. Eu fui ficando liberto, sentava na mesa do café da manhã e falava com a Dani como nunca tinha falado antes, sem proteção, sem a crítica exagerada que eu colocava sobre mim mesmo. E tem o lance dos pesadelos: eu recorrentemente tenho um pesadelo horrível, de que estou só, absolutamente só, como se eu fosse um fantasma em vida. Neles, eu ando sem rumo pela grande cidade, à noite, sem nenhuma pessoa com quem conversar. Eu jamais imaginava possível confessar esse medo para alguém, e lá estava eu o destrinchando para a médica. Lembrei de escrever sobre isso nesse post hoje porque, depois de quase um ano de tratamento, voltei a ter esse pesadelo essa noite. Acordei angustiado, fui de cama em cama beijando a Dani (dormimos no mesmo quarto mas em camas separadas), a Júlia e a o Eric, para ter certeza de que eles estavam lá. Faz dois meses que não falo com minha médica. Cada consulta dela é o olho da cara, que ela se recusou terminantemente a cobrar. Pelo terceiro mês eu disse que não poderia continuar se ela não cobrasse, que isso seria motivo de um outro trauma e só ficaria pior pois eu teria que passar uma sessão inteira chorando para ela me livrar daquilo também, e só teria um jeito, se ela me cobrasse. Ela disse então que cobraria metade, o que, não tendo outro jeito, topei. Ela estava grávida e, durante uma das sessões, ela deu um gritinho porque a menininha havia lhe dado um chute por dentro. Nós rimos bastante e eu contei como havia sido maravilhoso quando a Júlia e o Eric faziam isso na barriga da Dani. Era a primeira gravidez dela. Há dois meses ela perdeu o pai e, há um mês, no último ultrassom que ela realizou para ver como estava o bebê, os médicos espantados demoraram nos exames recorrendo a todos os recursos e disseram a ela que sua menininha não tinha nenhum sinal vital, que eles teriam que fazer uma cesariana naquele exato momento. Ela estava no nono mês de gestação. Desde então ela desmarcou toda sua agenda profissional e está incomunicável. Não há como mandar nenhuma recado de pesar, e nem sei como seria isso, para alguém com quem eu descrevi com detalhes todos meus mais profundos horrores.
Todas a

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Miriam


Ontem me lembrei com certo saudosismo da Miriam. Há mais de vinte anos eu fiquei desempregado e resolvi atacar os bancos. Saquei toda a grana que tinha no meu limite e gastei toda a margem do cartão de crédito. Não tinha com o que pagar e não estava nem lixando para isso. Vivi um ano de uma renda de poupança que eu tinha e desse dinheiro do banco e do cartão. Ficava em casa, dormia bêbado de madrugada e acordava todo dia depois do meio dia. Era solteiro, vivia sozinho e não tinha que prestar contas a ninguém. Daí apareceu a Miriam. Não, não era uma mulher fatal que apareceu para complicar ainda mais minha vida, mas uma funcionária da seção de cobranças do banco. Era uma terrorista esquizofrênica, para resumir. A primeira vez ela me ligou, a voz aguda, parecendo de uma das irmãs da Marge Simpson, e já direto me disse que eu era um miserável de um vagabundo e que tinha que arcar com minha dívida no banco. Eu fiquei sem resposta diante essa técnica crua de convencimento, e confesso que, pelo estágio psicológico em que estava, quase chorei. Desliguei na cara dela. Ela ligou de novo, cheia da alegria da vitória por ver que eu era um bunda mole sensível, e me disse: "E além do mais é um viadinho chupa rola de um derrotado que não aguenta a verdade na cara. Paga o banco, sua bicha!". Vi que eu tinha que adotar outro método de reação e tentei argumentar, perguntando porque ela agia assim, que não precisava me ofender. Ouvi um suspiro do outro lado, e um silêncio, crente que a havia enternecido, mas então ela disse: "Eu não sou sua mãe, seu retardado, pra ficar com pena de você. Eu não tenho nenhum filho bandido estelionatário e ladrão que dá cano em banco. É graças a merdas como você que as taxas estão tão altas nesse país, para compensar a cara de pau". E ela dizia essas coisas todas com fúria, mas sem perder a compostura. Parecia que fazia as unhas ou dava o peito para um filho (aquele que jamais seria como eu), enquanto me descascava todo. Eu é que comecei a ficar puto com aquilo, e quando devolvi na mesma moeda ela recorreu a um nível de profissionalismo tão elevado que se eu reproduzir no Facebook eu seria bloqueado por um semestre. Eu não deixava por menos, chamava ela de puth4, bisch4te, mandava ela lavar a bwc3tt4, coisas que eu nunca disse a ninguém mas um desempregado não é um ser humano então que tudo fosse para a pqp. Ela deveria ganhar muito bem ou tremendamente mal, porque me ligava todo o dia ou por excesso de eficiência reconhecida ou para descontar em mim a vida dura que tinha. Eu esperava o telefone tocar, sabendo que só podia ser ela, porque com o desemprego eu me tornei invisível e muitas pessoas só foram saber que eu não tinha morrido quando ressurgi, um ano depois, concursado. Então, paradoxalmente, eu só tinha a Miriam. Uma vez a gente estava gritando um com o outro (ela já estava apaixonada, já levava a coisa para o nível pessoal, já tinha jogado o bebê para o berço e esbravejava com aquele seio pingando leite para fora do vestido), e ela disse algo de um grau de escatologia tão abjeta, tão impossível de ser colocada no limite do verbo, que ambos paramos para reavaliar aquela joia nascida do nada e começamos a rir. Ela ria que quase chorava. Ela disse: "depois dessa não dá, eu te ligo amanhã". Eu disse: "então tá, tchau". Passaram três dias e nada dela ligar. Eu fiquei ressentido por ter talvez dito algo inconveniente, que não tivesse sido demasiadamente ofensivo, que a tivesse feito desistir de mim. Mas eis que o telefone tocou, de noite, quando eu preparava uma linguiça para comer com um pão, enquanto ouvia um cd do Doves que eu havia comprado com o dinheiro roubado do banco. "O pilantra tá aí ouvindo musiquinha de marica. Vai pagar o que você deve ao banco, seu travesti de esquina". Eu corri para abaixar o som, feliz da vida, e devolvi o xingamento colocando a moral dela em dúvida e definindo certas partes de sua fisiologia de maneira nada meritosa. Recordo que bebi as quatro doses de Caninha da Roça com Coca-Cola, me sentindo cheio de animação por ter "falado" com a Miriam, e desmaiei. Acordei no outro dia com a Ana Maria Braga narrando os atentados às Torres Gêmeas, ao vivo, e vi que o resto de esperança que eu tinha se desmoronava, o que me causou muito alívio. Eu estava com o passaporte pronto para ir aos EUA trabalhar numa empresa de distribuição de propaganda em sinal de trânsito de um tio meu, mas o Osama bin Laden havia mudado meus planos. Mesmo novamente empregado, eu nunca paguei as contas do bando e do cartão. Fiquei cinco anos livre da escravidão do crédito, até que um dia o Serasa me mandou um comunicado, dizendo que minha dívida havia expirado. E ontem, não sei por quais razões psicológicas, assistindo à série Caleidoscópio, me retornou a Miriam à memória. Vai ver porque é uma história que trata de assaltantes de banco.