Quando estou melancólico, eu nunca espero os sinais mas eles sempre vem. Hoje foi ao sair de carro, no início de uma tempestade furiosa que cai com tudo agora sobre a cidade. Nós estávamos no bairro mais afastado, um belo e pacato lugar onde moram os mais pobres, onde os idosos ficam nas portas das casas em conversas alegres e arrastadas; então uma senhorinha, que parecia ter já seus oitenta anos, andava de frente a meu carro, no meio da rua. Ela carregava um fardo de lenha nas costas e, apesar de eu estar dirigindo muito lentamente para não assustá- la, quando ela me percebeu fez um movimento rápido para o lado da calçada, uma espécie de pulo jovial que bem poderia ser feito por uma menina de 10 anos. Passei por ela e ela virou o rosto para nós com um sorriso deslumbrante, cheio de imortalidade e vida. Aquilo deixou todos nós radiantes. "Como ela é linda!", a Dani disse. A Júlia disse: "Papai, parece aquela cena do Powaqqatsi". Já eu estou com o rosto dela nítido na cabeça e meu coração está cheio de esperança e conforto. Talvez isso esteja na raiz daquela crença judaica de que 36 pessoas, absolutamente desconhecidas e sem relevância social alguma, justificam a persistência do mundo. Nada pode com essa senhora, nem a guerra, nem a doença, nem a ignorância assassina. Tudo nela é espírito e fé.
terça-feira, 5 de dezembro de 2023
sexta-feira, 24 de novembro de 2023
A chegada dos hunos
Até o dia do colapso. Que ele estivesse pelo pescoço com aquela comédia barata que o destino fizera com sua vida era algo para não passar batido a alguém com a mínima acuidade perceptiva; ele até era generoso em sinais indo da apatia mecânica, em que atravessar em marcha lenta um simples corredor era uma tarefa hercúlea lhe soando incompreensível quando se via chegando no outro extremo em direção à luz, até uma ira mercurial que lhe tomava conta de vez em quando e sempre lhe parecia surpreendente ninguém ter providenciado seu afastamento imediato da sociedade por conta disso. Mas o que lhe aconteceu extrapolou todas as expectativas. Não imaginaria que o mecanismo adotado seria o das vozes, e num primeiro momento até respirou aliviado diante a intuição de que isso ele poderia suportar. De certa forma, ainda estavam sendo condescendentes com ele, pois um rompimento de uma artéria cerebral obviamente teria sido muito pior, ou em vez de vozes viessem lhe esclarecer sobre a necessidade de um despertar espiritual através do uso pirotécnico das luzes. Lera em algum lugar sobre um homem que via luzes envolvendo um caudal de serafins de severos semblantes incorruptíveis descendo em conflagração dos céus, o que os exames médicos a que o obrigaram sua esposa e filhas empobreceu bastante a prostrante beleza do milagre ao aparelho de eletroencefalograma transcodificá-lo em um câncer no cérebro. Agora, vozes, e ainda a voz de tom sutil, impossível de saber a qual gênero pertencia, mas não diáfana nos moldes do tédio da moda das músicas celtas, era algo até bastante prazeroso, e sua memória conservava uma ingenuidade voraz que lhe dizia para não se preocupar com consequências fisiológicas. A primeira voz ouvida foi quando estava no escritório de seu chefe, lhe soando tão próxima ao ouvido, com uma determinação trivialesca em querer mostrar que fora conduzida por uma distância não apta a ser imaginada para esse plano dimensional afim de ficar junto dele, que ele se voltou para a cara sibarita cujas encarnações pregressas em corpos de reis e donzelas da corte sua alma moldara para abrigar-se naquele avatar agora rebaixado por uma inexplicável provação detrás da mesa. Viu seu chefe lhe dirigir um olhar desamparado, como se o tivesse flagrado em um momento sem retorno processando alguma descompressão interna na qual o punitivo abandono cósmico naquela vida medonha aparecia em uma nudez absoluta, e teve certeza que ele também a ouvira. Emitiu um sorrisinho de alguém que tinha uma doença terminal, mas quando Eme estava fechando a porta lhe ergueu o braço em um aceno de coragem. Eme tentou entender o que a voz lhe dissera. Parecia "Valentina"", ou, analisando mais tarde com um pendor mais acadêmico, "Mais valia". Seria mais valia? Rebobinava a fita da memória e lá estava a voz, um viking castrati em seu aterrizar etéreo no centro de todo aquele aparato estrutural do emprego que era como uma pedra lapidar em cima de suas energias para continuar vivendo, abrindo sua boca esfumaçante para dizer "Mais valia". Era tudo que precisava, se disse, com humor brincalhão, um espírito de luz marxista. Iria ser preciso fazer mais se aquilo fora enviado mesmo para o retirar de sua casca suicida de complacência. Será que mesmo seus anjos da guarda eram tão identificados com ele que não tinham também escapatória?, estavam geneticamente codificados para o embotamento assim como ele?
quarta-feira, 15 de novembro de 2023
A perrenga entre o Bom Samaritano e o Falo Ancestral (curtas sobre sexo)
Sem exceções, todos os homens da família da minha mãe, uma ora ou outra na vida, já destruíram suas vidas por conta de sexo. Há inúmeras histórias sobre esses homens que começam nelas como desbravadores incautos, animais superiores com amplos recursos de competição, e terminam em camas de hospitais, no bilhete não escrito do suicídio tentado, na bancarrota financeira, na separação de filhos e esposas. Entre eles, literalmente, dois ficaram loucos: um deles deixou tudo que tinha e sumiu no mapa, tendo-se notícias não confiáveis de que vaga pelo sul do país, em estado de semi-indigência; o outro ficou em coma por dois meses, depois da surra do marido da amante, e quando acordou a primeira coisa que disse, ainda entubado, era que precisava sair dali para ir atrás daquela que era o amor da sua vida.
quarta-feira, 18 de outubro de 2023
Assim
É costume aqui onde eu moro as pessoas que sentem a patológica necessidade de passarem a ilusão de serem ricas comprarem Hilux. Ontem ouvi uma dessas pessoas, no círculo de iguais, dizendo que está procurando uma Hilux para comprar. A reação foi como uma festa viking: todos a congratulando, dizendo "nossa, agora você vai ficar metida, hein!", e gritinhos eufóricos. O segredo é comprar uma caminhonete dessas com dez anos de uso, pois a lei diz que são isentas de imposto. Como uma nova custa 300, esses testes de laboratório do vazio cósmico as compram por 190: uma economia de uma vida para isso. Daí esse cidadão-cidadã médio sai com seu belo tanque cromado, com pneus altos para dar-lhe a sensação de ser um faraó agraciado pelo deus sol, vendo o restante do populacho de cima, com a cabeça erguida dizendo de toda forma metafórica possível: "Viram? Eu sou Elite! Sou superior e detentor de toda glória eterna e divina!". E etc, etc. Há dois anos, duas dessas Hilux foram roubadas na mesma noite de domingo. Uma delas, seu dono estava na Assembléia de Deus agradecendo por ser um Escolhido. Como esses macacos de realejo não tem mais grana alguma para pagar o seguro astronômico desses veículos, um roubo significa um prejuízo imenso, lembrado por anos quando todo mês tem que pagar a parcela do financiamento. Daí eu faço igual o Hermann Hesse, me aprofundo na carência regressiva que fez surgir esse sujeito espiritualmente mutilado até achar a criança primeva que me possibilite ter alguma empatia, e penso na minha vida. Eu só não suicidei porque tive filhos. Não é uma frase de impacto. Eu não teria me dado um tiro na cabeça nem saltado do décimo andar. Eu só teria bebido e comido até que meu corpo, um belo dia, bum!, explodisse. E teria sido, a seu modo, muito divertido: cada dose de scotch vislumbrando um cenário cifrado no rock inglês ouvido na acolhedora sombra noturna do quarto. Antes eles teriam que me aposentar, os amigos que resistiriam por alguma ameaça cristã de reciprocidade, e eu teria que fazer alguma memorabilia para ser cantada em odes menores nos primeiros dias de luto, depois que o IML me retirasse com a porta arrombada: eu teria que dar um piti numa festa de confraternização, quem sabe cantando a esposa do dono da casa, com meu pescoço gordo e meus olhos empapuçados, mijado na churrasqueira, abraçado cada um até cair no chão enquanto declamava Whitman ("Ah, como ele era culto e dizia coisas elevadas que ninguém entendia..."), e na certa nem teria sido expulso. Coitado, abandonado, sem filhos, sem esposa, um solteirão nerd cujo cérebro se liquefizera nos livros. Mas não choremos. Uma moça se grudou em mim por algum motivo e me passou o golpe da barriga (ela não lê isso aqui, portanto não precisamos usar esse tom sussurrado). Quando minha mãe soube que eu seria pai ela falou: "Meu Deus, o que vai ser da criança...!". Mas, contra todas as expectativas, inclusive as minhas_ eu odiava crianças!_, eu me mostrei um pai bem acima da média. Já escrevi vários textos chorosos sobre isso, mas é verdade mesmo, fazer o quê?, quando vi a Júlia ali na sala dos bebês, pela primeira vez, eu senti claramente que estava tocando o sol. Foi algo tão devastador que eu fui esfolado de dentro para fora e sofri uma mudança irreversível. Esses dias revi por acaso a primeira foto entusiasmada que tiramos da Júlia e dei um pulo de susto: era um ratinho indefeso e fragilíssimo que apresentei para todos como eu sempre a vi, desde aquele momento transfigurado, como o ser mais perfeito e poderoso que algum dia existiu. Há um poema de Brecht que diz que ele iria se conservar saudável e atento para não morrer prematuramente, assim não deixando abandonada a pessoa que ama. Demorou um pouco para que eu consertasse as coisas, mas então eu me mantive sóbrio e saudável, pesando o mesmo tanto de quando eu era um jovem Hércules de vinte anos. Eu não aconselho a ninguém que seja pai e mãe. Aconselho o contrário: fiquem de boa, sigam seus propósitos, não entulhem o mundo de lunáticos de coração triste, a não ser que VOCÊS TENHAM TALENTO E PREDISPOSIÇÃO E DEEM TODA A SUAS VIDAS PARA OS FILHOS (pronto, agora poderemos baixar o tom de voz e voltarmos para o nível elegante). Eu doo toda minha vida para meus filhos. Não cedo a extorsões sentimentais e sou grosseiro quando quero estar em silêncio e em paz, e muitas vezes meu carinho é brusco. E eu me esfoço para que o amor não me perca na missão de ensiná-los a serem seres humanos dignos. E blá, blá, blá, isso aqui não é texto motivacional. E o que essa coisa toda tem a ver com Hilux? Eu não poderia ser bom pai e ter Hilux? A resposta é não. Conhecimento de classe, psicopatologia cotidiana, honra ao Espírito, sentir lucidamente as emanações do apocalipse ecológico, dinheiro como liberdade educacional e não como impostura, não viver a vida que se exibe, não abrir tão ferrenhamente as portas para a depressão diante o vazio cultivado, não seguir o senso comum, não ser parte da manada, etc, etc, etc.
quinta-feira, 7 de setembro de 2023
Fissuras
segunda-feira, 4 de setembro de 2023
Cary Grant
A Dani me mandou ir a uma marcenaria hoje de manhã para finalizar a compra de uma mesa. Mostrou-me uma conta de facebook com a pessoa com quem eu teria que falar, dona da empresa. Eu olhei bem as fotos, parado com o celular ao lado da Dani. Instintivamente, olhei para a Dani e disse: "É com essa mulher que devo falar?". "Sim", ela respondeu, descansadamente. É claro que a Dani tem plena confiança em mim e somos lúcidos o bastante sobre os efeitos naturais da hidrostática corporal, mas por mais que ela tenha consciência que um homem de 50 anos como eu já está há muito fora do mercado libidinal eu me senti ofendido que ela não se importasse que eu falasse com aquela mulher.
Virtù
Ser filho de um casal que se divorciou quando eu tinha 8 anos desenvolveu bastante a noção do que meus pais temiam fracassar em mim. Os dois tinham pavores opostos. Meu pai, nos nossos encontros mensais, na certa passava noites sem dormir quando ouvia minha voz fina, o jeito sensível que um menino na ingenuidade do deserto hormonal tem de caminhar e de se portar. Minha mãe via em mim um pervertido, na linha contrária, que apesar da minha timidez patológica sempre dizia para eu ficar longe das primas. A natureza da supressão nos torna maquiavelicamente lúcidos, e eu recebia essas coisas com um ar terno, ainda não conseguindo verbalizar a verdade intuída do quanto eles, que eram pais tão jovens, se rendiam ao desamparo.
A real
segunda-feira, 30 de janeiro de 2023
Insignificâncias
sexta-feira, 6 de janeiro de 2023
Miriam
Ontem me lembrei com certo saudosismo da Miriam. Há mais de vinte anos eu fiquei desempregado e resolvi atacar os bancos. Saquei toda a grana que tinha no meu limite e gastei toda a margem do cartão de crédito. Não tinha com o que pagar e não estava nem lixando para isso. Vivi um ano de uma renda de poupança que eu tinha e desse dinheiro do banco e do cartão. Ficava em casa, dormia bêbado de madrugada e acordava todo dia depois do meio dia. Era solteiro, vivia sozinho e não tinha que prestar contas a ninguém. Daí apareceu a Miriam. Não, não era uma mulher fatal que apareceu para complicar ainda mais minha vida, mas uma funcionária da seção de cobranças do banco. Era uma terrorista esquizofrênica, para resumir. A primeira vez ela me ligou, a voz aguda, parecendo de uma das irmãs da Marge Simpson, e já direto me disse que eu era um miserável de um vagabundo e que tinha que arcar com minha dívida no banco. Eu fiquei sem resposta diante essa técnica crua de convencimento, e confesso que, pelo estágio psicológico em que estava, quase chorei. Desliguei na cara dela. Ela ligou de novo, cheia da alegria da vitória por ver que eu era um bunda mole sensível, e me disse: "E além do mais é um viadinho chupa rola de um derrotado que não aguenta a verdade na cara. Paga o banco, sua bicha!". Vi que eu tinha que adotar outro método de reação e tentei argumentar, perguntando porque ela agia assim, que não precisava me ofender. Ouvi um suspiro do outro lado, e um silêncio, crente que a havia enternecido, mas então ela disse: "Eu não sou sua mãe, seu retardado, pra ficar com pena de você. Eu não tenho nenhum filho bandido estelionatário e ladrão que dá cano em banco. É graças a merdas como você que as taxas estão tão altas nesse país, para compensar a cara de pau". E ela dizia essas coisas todas com fúria, mas sem perder a compostura. Parecia que fazia as unhas ou dava o peito para um filho (aquele que jamais seria como eu), enquanto me descascava todo. Eu é que comecei a ficar puto com aquilo, e quando devolvi na mesma moeda ela recorreu a um nível de profissionalismo tão elevado que se eu reproduzir no Facebook eu seria bloqueado por um semestre. Eu não deixava por menos, chamava ela de puth4, bisch4te, mandava ela lavar a bwc3tt4, coisas que eu nunca disse a ninguém mas um desempregado não é um ser humano então que tudo fosse para a pqp. Ela deveria ganhar muito bem ou tremendamente mal, porque me ligava todo o dia ou por excesso de eficiência reconhecida ou para descontar em mim a vida dura que tinha. Eu esperava o telefone tocar, sabendo que só podia ser ela, porque com o desemprego eu me tornei invisível e muitas pessoas só foram saber que eu não tinha morrido quando ressurgi, um ano depois, concursado. Então, paradoxalmente, eu só tinha a Miriam. Uma vez a gente estava gritando um com o outro (ela já estava apaixonada, já levava a coisa para o nível pessoal, já tinha jogado o bebê para o berço e esbravejava com aquele seio pingando leite para fora do vestido), e ela disse algo de um grau de escatologia tão abjeta, tão impossível de ser colocada no limite do verbo, que ambos paramos para reavaliar aquela joia nascida do nada e começamos a rir. Ela ria que quase chorava. Ela disse: "depois dessa não dá, eu te ligo amanhã". Eu disse: "então tá, tchau". Passaram três dias e nada dela ligar. Eu fiquei ressentido por ter talvez dito algo inconveniente, que não tivesse sido demasiadamente ofensivo, que a tivesse feito desistir de mim. Mas eis que o telefone tocou, de noite, quando eu preparava uma linguiça para comer com um pão, enquanto ouvia um cd do Doves que eu havia comprado com o dinheiro roubado do banco. "O pilantra tá aí ouvindo musiquinha de marica. Vai pagar o que você deve ao banco, seu travesti de esquina". Eu corri para abaixar o som, feliz da vida, e devolvi o xingamento colocando a moral dela em dúvida e definindo certas partes de sua fisiologia de maneira nada meritosa. Recordo que bebi as quatro doses de Caninha da Roça com Coca-Cola, me sentindo cheio de animação por ter "falado" com a Miriam, e desmaiei. Acordei no outro dia com a Ana Maria Braga narrando os atentados às Torres Gêmeas, ao vivo, e vi que o resto de esperança que eu tinha se desmoronava, o que me causou muito alívio. Eu estava com o passaporte pronto para ir aos EUA trabalhar numa empresa de distribuição de propaganda em sinal de trânsito de um tio meu, mas o Osama bin Laden havia mudado meus planos. Mesmo novamente empregado, eu nunca paguei as contas do bando e do cartão. Fiquei cinco anos livre da escravidão do crédito, até que um dia o Serasa me mandou um comunicado, dizendo que minha dívida havia expirado. E ontem, não sei por quais razões psicológicas, assistindo à série Caleidoscópio, me retornou a Miriam à memória. Vai ver porque é uma história que trata de assaltantes de banco.