O sr. Mombertto Luccena perdera o braço
por uma besteira monumental. Em um de seus raros momentos em que se dedicava a
explicar esse restrito significado filosófico em sua vida, me disse que haveria
alguma dignidade em um maneta se a causa de sua mutilação tivesse sido um
acidente de trabalho, ou um duelo, ou uma doença degenerativa que tivesse
tornado inevitável a remoção de suas raízes patológicas. Mas não em meu caso,
Halp, dizia, já sem nenhum compadecimento, segurando o cachimbo com a mão
esquerda, justamente a que sobrara em um destro para confirmar o quanto a
providência__ ou a ausência dela_, tem inúmeros meios de trabalhar com a insensatez.
As pessoas me veem, com razão, como um homem a ser poupado; não importa quem
for, se algum de meus fornecedores com quem eu solto os cachorros e falo a
merda que quiser, ou se for uma mulher que vem à loja para comprar alguma coisa
e descobre que o proprietário não possui um quarto do corpo; todos me veem mas
imediatamente fazem o máximo possível para me removerem de seus campos visuais.
E eu não os culpo, Halp, dou total razão a eles. Eu posso ter o poder que
tiver, a influência em bolsas de valores, ser marchant de importantes gênios
das artes, ter contas na Ilha de Man ou um veleiro com as assinaturas no casco
de todos os aventureiros mundialmente conhecidos daqui até Aleksandróvski,_a desincumbência
que o destino me deu de não precisar mais levar um adendo corporal me torna
imediatamente uma nulidade completa. E ninguém gosta de zeros a esquerda, Halp,
ele dizia, soltando o bafejo de fumaça odorífica que vinha realimentando no
bojo do cachimbo através de calibrados movimentos de influxo com a boca,
fazendo uma pausa para me lançar um olhar carregado de dramaticidade, mas cujo
significado doutrinário não me era de todo compreensível.
Apesar
de tudo era um belo homem. Podia-se perder uma discussão com ele apenas por se
ficar fascinado o observando. Ele aparentava ser um desses paradoxos da
inteligência que tem completa ingenuidade sobre si mesmo. À medida que
envelhecia, seus traços ficavam mais realçados, percebia-se
que toda delicadeza que algum dia ditara o tracejo de suas linhas faciais
tornara-se inteiramente condizente com aquele enredo perverso que o destino
tinha entremeado na narrativa de sua vida. Seus fartos cabelos encaneceram-se,
a petulância francesa do nariz aquilino, que na certa fora alvo de recalques
silenciosos em vista da inutilidade de um incremento desses em um maneta, se
tornara ainda mais petulante mas agora legitimado por sua áurea de profeta
rembrantiano de uma grandiosa decadência bíblica, seus olhos que disparavam
rajadas inflamadas de ódio antes de terem se suavizado foram disciplinados por
uma astúcia comercial em que uma ironia o posicionava acima e imune a todas as
tramoias da ralé no qual ele era forçado a lhe dar todos os dias.
Era impossível alguém vê-lo e não ficar tocado de alguma maneira com a
impressão calada de que ali estava um ser de aparência majestática, cuja
degradação brutal de seu lado direito se interromper no ombro acentuava sua
imponência através do paradoxo de uma fragilidade que não era imediatamente
digerida. Muitas pessoas tornavam a olhá-lo, quando ele não estava se dando
conta, para se certificarem que não eram alvo de um engano ocular, e mesmo
depois da realidade nua e crua comprovarem o que o fato ditava sem nenhuma
dúvida, não saíam pela porta do escritório do depósito de cereais achando
que haviam logrado ou sido logradas por um aleijado. Pois era isso que M.
fazia, lograva-os dentro daquele manual particular de sobrevivência financeira
que ele nunca havia escrito (e nem o pretendia), mas que me passava algumas de
suas leis fundamentais toda vez que saíamos para trabalhar. Um homem viril que
passava a segurança de ser capaz de tudo; sereno, rígido de uma maneira que não
lhe afetava morais de escritório e éticas de farmácia; alguém que independente
do que seria necessário para um canalha autorizado pelos princípios do lucro
esquecer o que havia feito de dia para poder repousar a cabeça no travesseiro,
ele dormia como um pedra em uma paz que não precisava de nenhuma retórica
escamoteadora mas que era uma simples intervenção da natureza; havia lido muito
apesar de a impressão ser de que o trânsito atribulado de seu cotidiano não
favorecia levar um volume de Eckermann por entre sacas de milho de cem quilos e
caminhões aspergindo vapor de diesel não lhe daria a concentração adequada.
Mas seus conhecimentos eram
vastos; citava nomes e eventos históricos no meio de tramoias de comércio em
conversas com velhos industriais pançudos e friamente mal-educados, e com uma
voz inquebrantável fazia esses senhores desabrocharem impossíveis sorriso marotos
achando que se tratava de informações avançadas lhes passadas em surdina. Ele
falava com nós, seus funcionários, com uma rispidez que às vezes parecia
aristocrática da pior maneira possível, como um senhor de terras russo falaria
com seu servo mais preguiçoso, mostrando por detrás das palavras que se tinha
aquele resquício de paciência era por ali conter uma censura ainda mais severa que
não desejaríamos descobrir; mas a questão era que seus 35 empregados já
trabalhavam com ele há anos e nenhum cogitava a ideia de sair dali e, novamente
eu digo, isso não tinha a ver com seu aleijamento. Ele tinha esse magnetismo e
sabíamos_ era visível de forma imediata_ que ele era humano, que a potestade
que ele não acreditava e da qual não fora a perda de um braço que a faria ser a
espectadora de seus monólogos estoicos sobre a desgraça que era a vida, não
poderia ter errado-- era o que nós pensávamos, mesmo não tendo consciência
disso_, algo assim não poderia ter acontecido com alguém que nascera tão pronto
para o martírio da existência nessa zona intermediária entre o nada e a aposta
infundada em um paraíso, cheia de eflúvios de culpa, traumas, patologias
mentais, moléstias de caráter e depravações; a mão de um deus obscuro não havia
apontado para ele sem cálculos precisos de que a história magnânima a ser
registrada seria cortada no início por uma desistência e nem por um suicídio
parcelado em uma vida de oitenta anos, ele iria perseverar e se viraria com tal
presente da melhor forma possível.
Ele perdeu o braço em uma prova infantil. Para ganhar respeito no grupo
de machões do bairro, pulou o muro de uma usina abandonada e foi até o centro
dela, passando por janelas quebradas e por estruturas de metal arruinadas e
incompreensíveis, afim de trazer a tampa da destiladora de cana-de-açúcar e
ficou com o braço preso na grade interna. Contou-me isso com um distanciamento
desapaixonado, como se tratasse de um ritual de passagem sem muito interesse,
como se um cerimonial de núpcias ou o dia em que abriu seu comércio equivalessem
em etapas naturais ao sofrimento que aquilo representou por toda a vida para
uma criança de 12 anos. Uma vez meu avô narrara no jantar uma pueril história
sobre um burro que ele tinha em sua fazenda em Lajes, que empacara num campo de
lama que levou seu esforço e de mais dois homens para demover a besta do lugar,
e isso me impressionou pela falta de sabor em como uma história poderia ser
narrada, a ausência de tramas, a pobreza total de reviravoltas no enredo.
Quando M. falou daquele evento esquecido, que
não dava sinais de fulminá-lo na intermitente volta da lembrança da dor, me
voltou o velho burro amuado com os quatro cascos desgastados enfiados na lama,
os olhos de azeviche não focando nada mergulhados em uma lamúria incompreendida
remoendo suas íntimas filosofias de Platero, e os dois homens e meu avô
salpicados até a alma do mesmo barro cuspindo esporadicamente os grossos e
rústico pelos que se lhe enfiavam pela boca dando solavancos nas patas e
enfiando as caras no traseiro e dizendo urra, vai maldito, e parando para
esfregar o suor das testas com a mãos e olharem uns aos outros se rendendo à
exaustão além de qualquer xingamento a ponto de um pouco da tristeza do animal
lhes contaminar dolentemente o raciocínio. Com a mesma quase proposital
intenção de expressar o acontecido mas sem dar-lhe relevância maior que a
comportaria uma notificação da trivialidade mais banal. M. me contou a história
de seu braço se gangrenando à medida que as horas passavam e ele tinha a
certeza de que aqueles garotos broncos, espinhentos, com exalantes odores de
excesso de hormônios, não iriam entrar na usina para saberem o que acontecera.
Não ouviram seus gritos lá de fora, ou ouviram e não se importaram um centavo.
Eu creio que ouviram, ele disse com um acento descendente, olhando para uma
lasca do piso e batendo simpaticamente a barra da calça para tirar uma poeira
imaginária, mas eles não iriam lá pra me salvar, não fazia parte da ética do
jogo. Eram uns ignorantes que só simulavam entender de putas e cerveja e o
jeito certo de cobiçar os carros que nunca iriam ter, eram almas inaptas para a
alteridade, Halp, seres construídos em uma forja cujo princípio do artesanato
em que foram idealizados comportavam pouca massa que não fosse carne, excesso
de carne exultante, fremente, sem cultivo, programadas para a explosão e a
flacidez no tempo certo.
Não iriam voltar. Dizia, sem sentimentalismos, sem a nostalgia vingativa
ou o recalque. Como eu disse, ele não se gastava em monólogos noturnos
debatendo sobre a compreensão inacessível dos propósitos de um deus em que
jamais acreditara. Desmaiou após uma hora de dor sem nome, uma dor tão premente
e inimaginável que seu cérebro recorrera a ferramentas profundas, enterradas em
zonas inacessíveis sedimentadas por séculos de memória armazenada de outras
dores perdidas na distância dos seus mais remotos antepassados, para
traduzir-lhe o que era aquilo, para que seu espírito não implodisse porque não
há mais espaço para novos traumas, todos os traumas já foram suficientemente
explorados e utilizados, todas as dores já foram desvendadas e não há como
inventar novas dores por mais que seja prolixa a imaginação do destino futuro
dessa espécie auto imoladora que é a espécie humana, Halp, de forma que eu
apaguei, só fui acordar quando senti alguns homens mexendo com meu corpo, me
revirando, perguntando se eu ainda estava vivo. Levaram-me para o hospital
público de São Clemente, mas o braço já estava negro igual a uma peça de
charque, eu não o sentia mais, havia partido em três lugares e a carne macerada
em feridas que ficaram tanto tempo privadas de sangue que estavam em um
vermelho pastoso e artificial, como se houvessem pintado e aquilo não fosse
admissível na realidade. Amputaram-lhe na altura do ombro e a história tinha terminado,
era isso. Aos 12 anos e sem um braço a tarefa não seria nada fácil. Meu pai era
carregador de caixas em uma cooperativa do centro, minha mãe cuidava de mim e
de meus três irmãos mais novos e às vezes cozinhava em um restaurante polonês
que havia no bairro, e eu, predeterminado por essa rígida hierarquia social não
tinha um destino melhor pela frente a não ser fazer parte dos honestos e viris
trabalhadores braçais, que sustentavam literalmente o peso do que iria
preencher as mesas de almoço do país por 12 horas diárias e depois voltava para
ser recolhido em hibernação suspensiva em sua casa de dois cômodos até que o
dia eternamente renascente o iria acionar novamente em toda sua plenipotência
muscular, não sem antes de deitar passar no boteco e beber duas doses
calibradas de trigo velho. E agora o prosseguidor dessa tradição se via sem o
braço, pela razão mais estúpida de querer impressionar uns descerebrados
marcados para serem tão infelizes em suas vidas obtusas e sem sentido quanto
ele. Meu pai me olhava com descrédito; suas instâncias de frustração estoica
que muitas vezes cambiavam para uma ira violenta não sabiam o que fazer com
aquele ornamento rescendido de peso inútil que substituíra seu saudável filho
na mesa de jantar; faltavam-lhe as palavras brutalizadas que usava com todos,
os xingamentos, as ferramentas virtuosas de machucar que eram seus verbos bem
pronunciados e escarrados pela moldura de seu rosto distorcido muito vermelho.
Eu o observava pelo canto dos olhos, parado ali imóvel na entrada da cozinha, a
boca semiaberta estupefata, reavaliando sua reação e não de todo excluindo a
suspeita de que aquilo poderia ser uma peça que a vida lhe pregava, uma espécie
de piada sofisticada demais para entender e que não tinha a mínima graça. Meus
dois irmãos juntavam lixo e mandava para as caminhonetas de reciclagem
particulares, e minha irmã era ainda nova demais para participar de alguma
forma de rotina pragmática que não fosse ficar quieta e deixar minha mãe com
suas panelas no fogão, e eu me transformara do dia para a noite em um objeto
ornamental não desejado. Isso me revoltava, me fazia ter crises compulsivas de
choro, M. me disse, sorrindo e soltando um muxoxo ríspido e curto contra alguma
rearrumação que por força da distração não se fazia conforme seu desejo em sua
mesa de escritório, o que eu não sei se esses movimentos esparsos faziam parte
de uma encenação muito convincente de que pouco estivesse aí para o que contava
ou se ele era mesmo insolvível a isso tudo, se o ele conseguira mesmo uma
privilegiada posição acima da estúpida degradação do tempo. Eu saía para chorar
nas escadas do bloco de apartamentos paupérrimo em que morávamos, com muito
medo de ser visto, aliás eu passei a ter uma vergonha colossal de que me vissem
em qualquer variação de humor, o aleijado, o maneta, o perdedor oficializado
sobre o qual já não havia apostas nem que fosse um médio auxiliar de
carregamento de cargas suficientemente pouco preguiçoso. Eu fugia de todo
mundo, dava a volta pelo quarteirão, a cabeça só não mais baixa porque se
sucumbisse à minha humilhação o corpo emborcava para o lado em que lhe faltava
aquela porção valiosa. Mas daí me dei conta de algo espantoso, verdadeiramente
revolucionário na minha vida: eu fazia de tudo para que não me vissem e as pessoas,
ao final das contas, não me viam! De uma hora pra outra, eu passei
a ser invisível. Não precisaria me esforçar tanto quanto eu fazia: meu objetivo
era alcançado mesmo se eu ficasse estacado em meu canto, apenas observando. Uma
vez, no auge da minha aflição por não ser visto, me flagraram chorando sentado
nos degraus do porão. Era o porteiro e uma faxineira que passavam por ali não
sei atrás de quais arranjos, e, quando se depararam comigo, simplesmente
seguiram em frente em seus afazeres, pegando o balde e o esfregão, e se
mandaram, apenas desviando-se de mim e fazendo com os olhos uma constatação da
minha ocupação física do espaço, uma espécie de cumprimento resquicial, sem dó,
sem acusações, sem constrangimento. Antes, quando meu corpo se compunha de todo
o porcentual lhe concedido legitimamente pela biologia, havia momentos em que
zombavam de meu modo de andar, de meu modo de falar, de minha extrema magreza,
mas agora, que tinham o que encarniçar, eles não o faziam. Com o tempo fui
alteando o porte, na medida em que me certificava do potencial desse meu súbito
poder, e passei a ser realmente feliz com essa minha condição.
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