É ousado dizer isso, pelos parâmetros do que eu acredito, mas eu sou cristão. Jesus Cristo, tendo existido ou não, foi o ser humano mais revolucionário da história. Toda a ortodoxia criada em torno dele usou de arquétipos das mais variadas religiões e crenças, mas não conseguiu tocar a originalidade inigualável de sua mensagem, expressa em sua maior parte no sermão da montanha. Coisas como "oferecer a outra face" e "perdoar seus inimigos" nunca tinham sido ditas antes: a primeira como a mais efetiva arma contra o mal, ou seja, uma reação que nada tem da passividade que sua leitura superficial atribui (mesmo Hannah Arendt cai nesse erro, em uma passagem belíssima sobre a bondade em "A condição humana"), e a segunda como o remédio espiritual mais pragmático. O Cristo em que acredito nada tem a ver com a monstruosidade que atende à egolatria de seus defensores, como o cristo dos macedos e dos olavos e dos barbudos propagadores do ódio da internet. O Cristo em que acredito prescinde da necessidade de ter existido. Eu acredito que um mendigo louco realmente apareceu e fez misérias na Galileia de 2000 anos atrás, mas isso é irrelevante. O que importa é sua palavra, é a busca que ele propõe. A busca entre os combalidos e os incompletos e mutilados. Eu acredito que, além dos evangelhos, e de maneira ainda muito mais profunda, sua palavra deixou outros evangelhos ao longo do tempo: o de Kazantzákis, o de Bulgákhov, por exemplo (como o Cristo de O mestre e Margarida é lindo, em toda sua singela e frágil loucura!, e como ele me fala de modo muito profundo e verdadeiro!), o de Dostoiévski. Passei anos sofrendo de depressão diante o que meu cérebro afirmava ser a passagereidade fútil de todas as coisas; e foi grande a luta para que eu aprendesse que essa descrença e esse desespero fazem parte da mensagem do Cristo. Assolava-me a brutalidade pascalina do silêncio desses espaços infinitos, até que eu compreendi_ ou, antes, senti sem compreender_ que a dúvida é tão inerente à mensagem que o ponto atingível é não se importar mais com a dúvida. Nós vivemos no inferno e, provavelmente, nós somos condenados pagando a pena em um matadouro a céu aberto, mas isso não descarta a maravilha de que somos também parte do cosmos e temos o mesmo direito à relevância que os buracos negros, as tempestades solares e a partenogênese. Por isso, esse livro de Tolstói é-me enormemente importante. Li-o em uma forma muito condensada no volume "Os últimos dias", da Companhia das letras, e depois o li em sua versão integral, traduzida do russo pelo Rubens Figueiredo e lançado pela editora MC. Eu senti tudo que Tolstói sentiu: o pensamento de suicídio perene, o olhar para as coisas e só ver um profundo vazio; a opressão comendo o peito e a certeza de que a alegria e a felicidade eram impossíveis. Lembro, perfeitamente, certa vez, quando eu tinha 17 anos, que me sentei em uma praça e, por longos 5 minutos_ mais do que isso seria fisiologicamente impossível suportar_, fui assolado por uma luz em negativo de que tudo era uma imensa gratuidade, de que tudo o que eu via já estava morto e extinto e tudo não passava de uma ilusão sem qualquer propósito. É uma comunhão adstringente saber que Tolstói pensou assim, e expressou de uma maneira crua e profunda nesse livro. Assim como o grande russo, eu achei o caminho da alegria da vida, ao descobrir_ ao sentir mais do que descobrir_ que o fato de estarmos vivos já é o mistério que nos foi dado. Isso nada tem a ver com agradecimento religioso, mas uma constatação cósmica salvadora.
domingo, 29 de outubro de 2017
Uma confissão, de Liev Tolstói
É ousado dizer isso, pelos parâmetros do que eu acredito, mas eu sou cristão. Jesus Cristo, tendo existido ou não, foi o ser humano mais revolucionário da história. Toda a ortodoxia criada em torno dele usou de arquétipos das mais variadas religiões e crenças, mas não conseguiu tocar a originalidade inigualável de sua mensagem, expressa em sua maior parte no sermão da montanha. Coisas como "oferecer a outra face" e "perdoar seus inimigos" nunca tinham sido ditas antes: a primeira como a mais efetiva arma contra o mal, ou seja, uma reação que nada tem da passividade que sua leitura superficial atribui (mesmo Hannah Arendt cai nesse erro, em uma passagem belíssima sobre a bondade em "A condição humana"), e a segunda como o remédio espiritual mais pragmático. O Cristo em que acredito nada tem a ver com a monstruosidade que atende à egolatria de seus defensores, como o cristo dos macedos e dos olavos e dos barbudos propagadores do ódio da internet. O Cristo em que acredito prescinde da necessidade de ter existido. Eu acredito que um mendigo louco realmente apareceu e fez misérias na Galileia de 2000 anos atrás, mas isso é irrelevante. O que importa é sua palavra, é a busca que ele propõe. A busca entre os combalidos e os incompletos e mutilados. Eu acredito que, além dos evangelhos, e de maneira ainda muito mais profunda, sua palavra deixou outros evangelhos ao longo do tempo: o de Kazantzákis, o de Bulgákhov, por exemplo (como o Cristo de O mestre e Margarida é lindo, em toda sua singela e frágil loucura!, e como ele me fala de modo muito profundo e verdadeiro!), o de Dostoiévski. Passei anos sofrendo de depressão diante o que meu cérebro afirmava ser a passagereidade fútil de todas as coisas; e foi grande a luta para que eu aprendesse que essa descrença e esse desespero fazem parte da mensagem do Cristo. Assolava-me a brutalidade pascalina do silêncio desses espaços infinitos, até que eu compreendi_ ou, antes, senti sem compreender_ que a dúvida é tão inerente à mensagem que o ponto atingível é não se importar mais com a dúvida. Nós vivemos no inferno e, provavelmente, nós somos condenados pagando a pena em um matadouro a céu aberto, mas isso não descarta a maravilha de que somos também parte do cosmos e temos o mesmo direito à relevância que os buracos negros, as tempestades solares e a partenogênese. Por isso, esse livro de Tolstói é-me enormemente importante. Li-o em uma forma muito condensada no volume "Os últimos dias", da Companhia das letras, e depois o li em sua versão integral, traduzida do russo pelo Rubens Figueiredo e lançado pela editora MC. Eu senti tudo que Tolstói sentiu: o pensamento de suicídio perene, o olhar para as coisas e só ver um profundo vazio; a opressão comendo o peito e a certeza de que a alegria e a felicidade eram impossíveis. Lembro, perfeitamente, certa vez, quando eu tinha 17 anos, que me sentei em uma praça e, por longos 5 minutos_ mais do que isso seria fisiologicamente impossível suportar_, fui assolado por uma luz em negativo de que tudo era uma imensa gratuidade, de que tudo o que eu via já estava morto e extinto e tudo não passava de uma ilusão sem qualquer propósito. É uma comunhão adstringente saber que Tolstói pensou assim, e expressou de uma maneira crua e profunda nesse livro. Assim como o grande russo, eu achei o caminho da alegria da vida, ao descobrir_ ao sentir mais do que descobrir_ que o fato de estarmos vivos já é o mistério que nos foi dado. Isso nada tem a ver com agradecimento religioso, mas uma constatação cósmica salvadora.
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Esse "livrinho" é muito forte. O romance "Ressurreição" segue uma linha moral relativamente semelhante a essa obra.
ResponderExcluirUm trechoque expressa a angústia e os anseios intelectuais do Tolstói:
"Muito bem, você será mais famoso que Gogol, Púchkin, Shakespeare, Molière, todos os escritores do mundo... mas e daí?"
Ele é um dos poucos humanos que tenho certeza que redimiram suas almas por completo, mesmo não alcançando a perfeição como homem. Não sigomnenhuma religião(mas sou Teísta), mas confesso simpatizar com o cristianismo metafísico do Tolstói.
Bom comentário sobre a obra, Charlles.