Minha mãe começava a passar mal pela manhã e assim seguia pelo dia todo. Tinha ânsias de vômito, tonturas, fraquezas debilitantes. Se dava dois de seus passinhos do quarto à cozinha, logo era acometida por uma bambeza das pernas que a fazia apoiar-se nas paredes e procurar o assento mais perto. Nem precisa falar a quantas andava o seu já dilacerado humor por causa disso. Eu evitava entrar em seu campo visual, o que afligia por no final me tornar evidente a ponto de poder fazer com que me chamasse aos corretivos, mas logo vi que ela sofria de tal maneira que me desconsiderava por completo.
Vivi esse período com alívio. Sei que é repreensivo dizer isso e na época talvez uma comichão moral me fizesse deter o olhar por certo tempo, antes que a felicidade pela liberdade suscitada pela supressão de seu julgamento me atinasse a não perder tempo com ruminações ridículas. Ela estava tão prostrada pelo sofrimento, tão removida de sua normalidade, que a coisa não lhe cedia espaço para se espantar; via-se que sua mente arguta, treinada a ver entre as complexidades mais intranscendentes do trivialesco, agora estava direcionada em tentar entender aquela nova configuração de seu organismo_ que para ela poder-se-ia usar talvez o mesmo sentido que se usa para “alma”, embora não lhe sobrasse tempo nesses esquemas de excesso de realismo para que ela adquirisse esses entendimentos esotéricos.
Havia algo mais que a irritava, além da dor em si. Algo que eu não ousava expressar em pensamentos, mas cuja intuição me oferecia meios de entendimento amplos para suspeitar o que era. Isso consistia, falando a grosso modo, em que ela se sentia ultrajada em seu direito de ser deixada em paz; ela sabia que estava no núcleo de uma família que não se poupava de especular entre si os detalhes sobre o sofrimento dos outros integrantes cujo alvo da má fortuna os faziam humilhados e enfraquecidos diante a maledicência. Minha mãe não era uma dessas faladeiras, se pararmos para analisar bem: talvez porque fosse ocupada demais, não porque tivesse um coração melhor que lhe incutisse uma moral inédita entre os seus consanguíneos; mas simplesmente porque suas labutas eram sérias demais, concentradas, demasiadamente humanas, para que ela tivesse tempo para alimentar tal luxo de leviandade. Mas, pelo contrário dela, os outros integrantes do apartamento se deixavam levar por qualquer coisa pela paixão dos estudos sobre a vida alheia. Eu os ouvia conversando fervorosamente sobre vários personagens do prédio que eu mesmo sequer conhecia, gente que aparecia em suas historietas e em seus julgamentos pormenorizados e de tom de voz acautelado que me fazia pensar no quanto era infinito a babelia daqueles blocos de concreto com janelas e escadas onde morávamos. Uma pessoa podia preencher toda sua vida com apenas essas ocupações e já teria um álibi espiritual suficiente para dizer de si mesma que levou uma existência produtiva, na qual fora usado com parcimônia o poder das faculdades cerebrais lhes dadas pela divina providência. Eu ficava pensando no quanto eu era prisioneiro de meu recolhimento mesquinho a ponto de me passar despercebido tantas entidades interessantes, tantas figuras carregadas de fulgurantes idiossincrasias, de maravilhosos pecadilhos e deliciosos estupores de estupidez e ódio. Eu ficava atocaiado em meu canto na cozinha ou na sala, fazendo-me de criança diligentemente ocupada com meu mundo apartado da realidade e idiotizado, às vezes com minha bola giroscópica na mão ou com meus indiozinhos americanos, mas o que ocupava toda minha atenção rigorosa não eram as imagens que vinham da bola nem das novas aventuras do índio, e sim aquelas conversas todas que aconteciam entre meus tios e tias e avó pentecostal, sobre a mulher do porteiro que estava se deitando com o Fancir, o faxineiro do bloco B, sobre a crise de cirrose do barbeiro cartaginês em que alguém havia tomado conhecimento que no laudo médico havia o prazo de apenas seis meses de vida; sobre a portuguesa do 208 que recebia moleques quando seu marido viajava para as entregas em seu caminhão, e por aí vai. Eles não se importavam comigo, sequer pareciam ter a menor ciência de que eu estivesse por perto, de modos que eu aos poucos me aproximava mais, ficava sentado aos pés deles no tapete, e no final já não precisava usar das desculpas da bola e do índio. Ouvia-os na cara, deixando escapar exclamações de surpresa e espanto, mas que nem meu tio Sólon, nem meu Tio Jétson e nem as tias satélites e a avó pentecostal tinham o potencial minimalista de captar uma filigrana daquela minha presença. Eu era invisível para eles, o que muito me satisfazia.
Mas voltemos a falar sobre minha mãezinha. Foi numa dessas sessões de estudos sobre a devassidão alheia que me veio pela primeira vez a palavra que atormentaria minhas faculdades de julgamento. Foi numa delas que minha tia Tércia proferiu pela primeira vez a palavra “enjoo”. Claro que eu não a ouvia pela primeira, primeiríssima vez; já a tinha escutado em inúmeras outras ocasiões, inclusive dirigida contra a minha pessoa. Mas agora o tom de voz em que ela era empregada é que fazia toda a diferença. Minhas tias tinham esse estranho talento, sobre o qual um dia eu terei que gastar bem mais que uma página para tentar cercear, anatomizar e procurar a fundo a razão de que simples palavras em suas bocas ganhassem tamanha dimensão com tantas evocações sufocantes de significado. Talvez porque elas fossem tão medianamente previsíveis, seus comportamentos pudessem ser deduzidos sem qualquer probabilidade de surpresa de uma tabela normativa de comportamento, em que a escala gradual partisse da solenidade à mesa até a externalização de uma visão de mundo absolutamente insossa e desinteressante, que fizesse com que tais palavras, ditas em suas vozes monocórdias e atonais, soassem inesperadamente oraculares. Era tão assustador para mim como achar em uma barriga de um sapo uma folhinha de papel não digerida em que viesse escrita em uma letra provençal uma lista de compra. A banalidade era o cerne da questão, mas a disparidade em que ela repousava em seu núcleo anacrônico a fazia aterrorizante.
Por isso eu não gostava que elas falassem sobre mim quando eu estivesse doente. Coisas como “febre” ou “dor” na boca delas ia além do que a gramática clássica dessas palavras guardava em suas centenas de anos de significados consolidados, e elas pronunciarem esses diagnósticos me fazia pensar que eu estava próximo não só da morte, mas de uma forma de morte recém inventada para a qual o horrível carecia de definição.
Dessa maneira, a palavra “enjoo” na boca delas, empregada para se referir ao estágio da minha mãe, trazia algo de fantasticamente melífluo e veladamente insultante. Nessas horas em que elas pronunciavam essa palavra, pela primeira vez, como em um sinal concordante que estivesse à superfície da descansada indiferença nutrida quanto a mim, todos pareciam sentir um frêmito de pesar e por um brevíssimo segundo voltavam suas cabeças e dedicavam-me um olhar apressado, o que aumentava o enigma. Eu, que não era bobo, apesar de há muito ter superado o artifício de fingir que brincava para não provocar suspeitas, conservava a bola e o índio nas mãos e, imediatamente, mas sem que ficasse evidente a descontinuidade dos atos, os remoía em murmúrios íntimos e concentradamente apartados da realidade, como se assim fosse eternamente e que em qualquer ocasião estava ali para comprovar que o menino não fazia parte desse mundinho de assuntos sérios e diligentes em que eles viviam. Mas isso já era algo tão aceito para eles_ o que deveria me encher de orgulho por ser tão convincente_, que eles só me lançavam aquela fagulha de nota sobre a minha existência não para me pouparem de ter minha ingenuidade ferida, mas como se para sublinharem com maior ênfase o teor do que estava sendo omitido.
Havia algo mais que a irritava, além da dor em si. Algo que eu não ousava expressar em pensamentos, mas cuja intuição me oferecia meios de entendimento amplos para suspeitar o que era. Isso consistia, falando a grosso modo, em que ela se sentia ultrajada em seu direito de ser deixada em paz; ela sabia que estava no núcleo de uma família que não se poupava de especular entre si os detalhes sobre o sofrimento dos outros integrantes cujo alvo da má fortuna os faziam humilhados e enfraquecidos diante a maledicência. Minha mãe não era uma dessas faladeiras, se pararmos para analisar bem: talvez porque fosse ocupada demais, não porque tivesse um coração melhor que lhe incutisse uma moral inédita entre os seus consanguíneos; mas simplesmente porque suas labutas eram sérias demais, concentradas, demasiadamente humanas, para que ela tivesse tempo para alimentar tal luxo de leviandade. Mas, pelo contrário dela, os outros integrantes do apartamento se deixavam levar por qualquer coisa pela paixão dos estudos sobre a vida alheia. Eu os ouvia conversando fervorosamente sobre vários personagens do prédio que eu mesmo sequer conhecia, gente que aparecia em suas historietas e em seus julgamentos pormenorizados e de tom de voz acautelado que me fazia pensar no quanto era infinito a babelia daqueles blocos de concreto com janelas e escadas onde morávamos. Uma pessoa podia preencher toda sua vida com apenas essas ocupações e já teria um álibi espiritual suficiente para dizer de si mesma que levou uma existência produtiva, na qual fora usado com parcimônia o poder das faculdades cerebrais lhes dadas pela divina providência. Eu ficava pensando no quanto eu era prisioneiro de meu recolhimento mesquinho a ponto de me passar despercebido tantas entidades interessantes, tantas figuras carregadas de fulgurantes idiossincrasias, de maravilhosos pecadilhos e deliciosos estupores de estupidez e ódio. Eu ficava atocaiado em meu canto na cozinha ou na sala, fazendo-me de criança diligentemente ocupada com meu mundo apartado da realidade e idiotizado, às vezes com minha bola giroscópica na mão ou com meus indiozinhos americanos, mas o que ocupava toda minha atenção rigorosa não eram as imagens que vinham da bola nem das novas aventuras do índio, e sim aquelas conversas todas que aconteciam entre meus tios e tias e avó pentecostal, sobre a mulher do porteiro que estava se deitando com o Fancir, o faxineiro do bloco B, sobre a crise de cirrose do barbeiro cartaginês em que alguém havia tomado conhecimento que no laudo médico havia o prazo de apenas seis meses de vida; sobre a portuguesa do 208 que recebia moleques quando seu marido viajava para as entregas em seu caminhão, e por aí vai. Eles não se importavam comigo, sequer pareciam ter a menor ciência de que eu estivesse por perto, de modos que eu aos poucos me aproximava mais, ficava sentado aos pés deles no tapete, e no final já não precisava usar das desculpas da bola e do índio. Ouvia-os na cara, deixando escapar exclamações de surpresa e espanto, mas que nem meu tio Sólon, nem meu Tio Jétson e nem as tias satélites e a avó pentecostal tinham o potencial minimalista de captar uma filigrana daquela minha presença. Eu era invisível para eles, o que muito me satisfazia.
Mas voltemos a falar sobre minha mãezinha. Foi numa dessas sessões de estudos sobre a devassidão alheia que me veio pela primeira vez a palavra que atormentaria minhas faculdades de julgamento. Foi numa delas que minha tia Tércia proferiu pela primeira vez a palavra “enjoo”. Claro que eu não a ouvia pela primeira, primeiríssima vez; já a tinha escutado em inúmeras outras ocasiões, inclusive dirigida contra a minha pessoa. Mas agora o tom de voz em que ela era empregada é que fazia toda a diferença. Minhas tias tinham esse estranho talento, sobre o qual um dia eu terei que gastar bem mais que uma página para tentar cercear, anatomizar e procurar a fundo a razão de que simples palavras em suas bocas ganhassem tamanha dimensão com tantas evocações sufocantes de significado. Talvez porque elas fossem tão medianamente previsíveis, seus comportamentos pudessem ser deduzidos sem qualquer probabilidade de surpresa de uma tabela normativa de comportamento, em que a escala gradual partisse da solenidade à mesa até a externalização de uma visão de mundo absolutamente insossa e desinteressante, que fizesse com que tais palavras, ditas em suas vozes monocórdias e atonais, soassem inesperadamente oraculares. Era tão assustador para mim como achar em uma barriga de um sapo uma folhinha de papel não digerida em que viesse escrita em uma letra provençal uma lista de compra. A banalidade era o cerne da questão, mas a disparidade em que ela repousava em seu núcleo anacrônico a fazia aterrorizante.
Por isso eu não gostava que elas falassem sobre mim quando eu estivesse doente. Coisas como “febre” ou “dor” na boca delas ia além do que a gramática clássica dessas palavras guardava em suas centenas de anos de significados consolidados, e elas pronunciarem esses diagnósticos me fazia pensar que eu estava próximo não só da morte, mas de uma forma de morte recém inventada para a qual o horrível carecia de definição.
Dessa maneira, a palavra “enjoo” na boca delas, empregada para se referir ao estágio da minha mãe, trazia algo de fantasticamente melífluo e veladamente insultante. Nessas horas em que elas pronunciavam essa palavra, pela primeira vez, como em um sinal concordante que estivesse à superfície da descansada indiferença nutrida quanto a mim, todos pareciam sentir um frêmito de pesar e por um brevíssimo segundo voltavam suas cabeças e dedicavam-me um olhar apressado, o que aumentava o enigma. Eu, que não era bobo, apesar de há muito ter superado o artifício de fingir que brincava para não provocar suspeitas, conservava a bola e o índio nas mãos e, imediatamente, mas sem que ficasse evidente a descontinuidade dos atos, os remoía em murmúrios íntimos e concentradamente apartados da realidade, como se assim fosse eternamente e que em qualquer ocasião estava ali para comprovar que o menino não fazia parte desse mundinho de assuntos sérios e diligentes em que eles viviam. Mas isso já era algo tão aceito para eles_ o que deveria me encher de orgulho por ser tão convincente_, que eles só me lançavam aquela fagulha de nota sobre a minha existência não para me pouparem de ter minha ingenuidade ferida, mas como se para sublinharem com maior ênfase o teor do que estava sendo omitido.
Não sei se o excerto virará a livro ou ficará perdido em textos arrumados ao estilo de "O livro do desassossego", mas que continuo a gostar a escrita que apresenta, mesmo sem se deduzir qual os antecedentes ou consequentes da estória.
ResponderExcluirNão conhecia o significado de atocaiar, mas curiosamente o português trabalhado do Brasil é bem mais semelhante ao luso do que aquele que parece em jornais.
Curiosidade que resultou do meu pedido de reclassificação deste blogue que no filtro se segurança da rede do meu computador do emprego estava bloqueado como "adult site".
ResponderExcluirAgora recebi a resposta com a minha proposta transcrita
"Submission Date: Thu, 20 Apr 2017 02:15:07 -0700
URL: http://charllescampos.blogspot.pt/
Suggested Category: Personal Websites and Blogs
Customer Comment: I know very well this blog
Updated Category: Personal Websites and Blogs
Update Date: Thu, 20 Apr 2017 07:10:57 -0700"
Já está desbloqueado e o comentário anterior testou mesmo isso.
Fico fascinado com as diferenças e assombros entre o português brasileiro e o de Portugal. Confesso que acho o daí muito mais bonito; os escritores que usam essa vertente do idioma, então, me parecem_ ou deve ser natural o estrangerismo aos ouvidos brasileiros_, que conservam algo de sagrado da língua, que a faz imediatamente clássica. Ler Saramago, Peixoto, Hugo Mãe, me enche de admiração e orgulho.
ResponderExcluirRecordo que eu li o primeiro volume de O senhor dos anéis em uma edição da nostálgica editora Europa-América, e demorei para saber que uma palavra lá significava "túmulos".
Esses detalhes técnicos do blogger parecem a mim, por sua vez, um idioma completamente desconhecido.
Ah, certa vez vi uma entrevista de um cantor luso que se apresentava no Brasil. Em seu repertório consta uma canção intitulada "Os putos, as putas", que ele começava a cantar nos palcos daqui e imediatamente despertava uma onda de gargalhadas. Até que alguém de detrás do palco lhe contou que o significado destas palavras era bem menos romântico por nossas terras do que em Portugal.
ExcluirPenso que deveria ser Carlos do Carmo com "Os putos", que significa miúdo de rua, mas também pode ser um termos carinhoso para criancas entre pessoas que se conhecem bem "Os putos não param de fazer barulho na festa de anos do meu mais velho" Mas putas tem o mesmo significado que no Brasil e só usamos em linguagem rude ou depreciativa... Miúdas com o significado de mulheres de convívio social de encontros fortuíto mas não putas dizemos "gajas".
ResponderExcluirEstou impressionado! Texto profundo e muito bem escrito! Diz aí porque vossa senhoria até hoje é anônimo?
ResponderExcluir