Eu
nasci bonito. Nas poucas fotos que mamãe conserva daqueles tempos de berço com
véu protetor em volta, eu apareço com toda minha silenciosa presença simétrica
no centro do plano. Olhos calmos fitando a câmera mambembe do alto da qual
deveria sair o passarinho anunciado pelo fotógrafo. Minha harmonia de
proporções era tamanha que esse meu bom comportamento provocava a interpretação
de que eu trazia algum prenúncio não revelado, alguma punição não passível mais
de ser adiada. As pessoas me olhavam uma vez e evitavam fazê-lo de novo,
incomodadas com a verdade inacessível estampada na aberração da minha beleza.
Minha mãe foi quem mais sofrera
com isso. Abandonada pelo homem que a havia embuchado, como ela insistia sempre
em dizer, ela que tinha que suportar sem nenhum lenitivo o peso dessa
realidade. De primeiro, sua astúcia de menina rejeitada a fazia simular toda
espécie de doenças para que não tivesse que me amamentar. Esfregava alho com urtiga
nos sovacos e arnica-do-campo nos mamilos, dormia calçada com meias apertando os pés cujos dedos entremeava com pedaços de folhas de coroa-de-cristo, de forma que a febre resultante dos
eczemas a fizesse ter delírios, o que convencia por certo tempo que haveria
algo de perigoso conceder-me à proteção de uma criatura de saúde tão instável.
O pai de minha mãe_ que vivia em um isolamento totêmico em que raras as vezes
se tinha a audácia de invoca-lo para assuntos comezinhos_ mandou baixar até a
casa uma ama-de-leite. A mulher não chegava aos 15 anos mas tinha aquele olhar
duro resultante da completa adaptação às atribulações naturais que a fazia
intocada à maledicência cotidiana, e que estendeu-me seus seios por algum tempo, pelo
tempo suficiente para que em minha mãe despertasse o instinto materno que antes recusava, depois que ela viu a inevitável correlação de santidade entre dois
seres angélicos, um sentado em serena entrega no leito e outro em um sono
saciado no centro dos seus braços. Reivindicou com a mesma obstinação furiosa
de antes que seu rebento lhe fosse devolvido. Por uma semana minha mãe
sustentou a farsa de que admitia com o coração ponderado que eu era um bebê
normal, cantando cantigas de ninar para embalar meus sonos, estendendo-me com
fartura o bico de seus peitos não mais salpicados de feridas de arnica, ainda
que fizesse de tudo para que seus olhos não confrontassem com os meus que,
impreterivelmente nessas ocasiões, se fincavam nos dela com infinita malícia.
Não sei a razão de abortar, mas que gostei muito do texto, lá isso gostei.
ResponderExcluirUma escrita muito agradável e bem ritmada que se lê pelo prazer da forma. O texto promete... mas daqui em diante compete-lhe continuar a gestação e o conteúdo.
Obrigado pela gentileza, Carlos.
ExcluirAutobiografia ou ficção?
ResponderExcluirVale uma corrigida nisso aqui: "ela quem tinha que suportar". Proponho "ele tinha que suportar". E quem tinha é um cacófato.
Realmente. Obrigado pela correção. Não é autobiografia, apesar de que eu também nasci bonito.
ExcluirOutra ficção.
ExcluirPô, tá bonito isso. Romance?
ResponderExcluirÉ. Eu escrevi uns 200 começos; a coisa tava uma obsessão.
ExcluirMuito bom.
ResponderExcluirInteressante. Ah, as gestações literárias...
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