quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Belos lápis triangulares e o tapete com o mundo



Vou tirar férias daqui dez dias e selecionei a companhia da Susan Sontag para passar comigo. Quando a fé nas ideias, no esclarecimento, e principalmente na literatura ameaça esmorecer, é ótimo ler Susan Sontag. Ela é uma fonte inesgotável de entusiasmo, de inteligência, de vivacidade. Aliás, já há uma semana estou com ela ao meu lado: li A vontade radical, grande parte do Diários, além de ensaios esparsos de Ao mesmo tempo. Junto a esses, planejei a releitura de Sobre fotografia. Não que minha fé nessas coisas mencionadas acima ande mal. Aliás é justo o contrário: jamais estive tão afinado à realidade de que essas coisas são essenciais. Ano passado fui na contramão das tendências dos círculos de leitores que conheço, virtuais ou não, e me recolhi em autores fora de moda. Ler autores medalhas do momento me deixam um tanto para baixo, invoca a lembrança de que minha formação como leitor e possível escritor está em gente que beira o aniversário de cem anos da data de suas produções relevantes. Alemães e russos, e norte-americanos. A leitura mais enternecedora do ano passado foi Um campo vasto, de Grass. Um livro que me prendeu em seu interior de tal forma que se inclui nessa categoria de evocação de objetos de cena, mobiliários, praças, e semblantes. Um livro que me trouxe de volta o vício de escrever à mão, não só à mão mas com o uso de lápis. É que o personagem principal da trama, um escritor da parte oriental da Alemanha dividida, recebe de seu amigo/algoz/irmão um conjunto de lápis, objeto raro vindo dos primeiros suspiros de abertura ao capitalismo ocidental. Esses lápis_ dos quais conservo a imagem precisa, inequívoca, por ter segurado-os nas mãos_, fazem a alegria infantil do velho escritor. Ele se imola em seu pequeno escritório caseiro e vai usando-os dia e noite, em total embriaguez com a escrita. Vai gastando a tinta emborrachada que os cobre por fora, vai transformando-os em tocos. Passa pela minha mente de que jamais me fora apresentado produtos tão desejáveis. Comprei lindos lápis da Faber-Castell de linhas triangulares, rosas e amarelos, com detalhes de pequenos pontos negros em alto relevo nas bases extremas às pontas. (Notei que conservo uma fidelidade à Faber-Castell desde que me reconheço como aluno e alfabetizado; a única coisa da qual bati o pé na compra dos materiais de escola da Júlia foi no tocante a que todos os lápis fossem dessa marca; compramos uma caixa de lápis de outra marca para deixarmos na escola, para uso nas tarefas de classe, contra a minha vontade, lápis que, apesar de muito bem recomendados, mostraram-se uma enganação reluzente, quebradiços, valendo-se talvez pela surpresa da descoberta tardia de que foram produzidos no Vietnã.) Hoje passei parte da tarde escrevendo com eles, em minha pequena biblioteca, ouvindo a chuva que começa a botar medo que não para de cair desde duas semanas. No livro de Grass, o escritor ganha um grande tapete, que ele coloca em seu gabinete caseiro onde escreve. Eu também tenho um grande carpete sujo e empoeirado, que pede para ser levado a um lava-jato (mas que meu amor aos livros, de certa forma impossível de descrever, principalmente em um espaço entre parênteses, o ama assim encardido, arrasado, com uma cumplicidade para sempre silenciosa e eloquente), em minha biblioteca-gabinete. O escritor de Grass anda pelo tapete antes e enquanto escreve, imagina todo o mapa do mundo nele, transita entre as fronteiras e pelo tempo, revisita livros na memória e a história, o tapete dele é muito mais eloquente, ainda, que o meu. Personagens são vistos nas reentrâncias de suas costuras, como um quadro em três dimensões de um Hieronymus ou Johannes. Grass o descreve em uma suave e exultante loucura, em uma dedicação infantil a si mesmo e à sua predisposição de entender solitariamente. É uma das mais profundas e revigorantes descrições da fé na literatura. A gente volta a ser criança e a alimentar sem vergonha a criança interior quando se depara com a possibilidade de imitar um exemplo destes.

Voltando à Susan. Daí ser direcionado pelo impulso sempre incognoscível mas fiel de meu leitor interior a ler Susan me mostra como a crença na literatura é algo sério e iluminado. Os diários dela são arrebatadores. Iniciam-se quando ela tinha 15 anos, e que mulher ela já era. Aqui eu gostaria de ter algum subterfúgio que pudesse substituir a diferença gramática de gêneros, e apontá-la sem os recursos aprisionantes de "ela" (sem utilizar o grafismo de péssimo gosto de se usar a arroba como substituição, empregado por algumas feministas). Mas... Uma menina de 15 anos que descreve suas intenções futuras, seus planos de rigor intelectual, sua enorme fome pelo conhecimento e instrução. E que escreve que o casamento é o mais bárbaro aprisionamento à mulher. E que deslinda com a coragem de quem sabe não ser lida seus desejos homossexuais. São páginas refrigeradas, com essa assinatura ímpar da Sontag de ser possuída por uma paixão pela vida, seu excesso de vida e felicidade. O prefácio de seu filho é comovente. Ele descreve que mesmo no último dia, sua mãe não acreditava que iria morrer. Ela tinha vários planos de livros de ensaios, de romances, de projetos culturais. Seu filho diz que, se tivesse tido oportunidade de falar com ela quando ela era jovem, pediria para não ter tanta soberba, para não ficar tão entristecida com as coisas naturais da idade. Mas a soberba da Sontag é a coisa mais fundamental e indispensável. (Em outra parte dos Diários ela, já adulta e escritora, afirma que não se acha uma grande pensadora, que se fez proeminente por ser sincera até o absoluto.) O filho escreve (uma parte por mim sublinhada com a régua do marca-página, usando um Faber-Castell):

Este é um diário no qual a arte é vista como uma questão de vida ou morte, no qual a ironia é tida como um vício, não uma virtude, e no qual a seriedade é o maior dos bens.

Que súmula precisa quanto ao caráter a o conteúdo da mãe! Sontag é exatamente assim. Não há muita, senão nenhuma, ironia nas coisas que ela escreve. Ela se leva matematicamente a sério. Ela sabe que o pensamento é transformador, é importante e fundamental, de forma que não deve negá-lo através da relativização meta-analítica da ironia. Em um ensaio maravilhoso sobre Emil Cioran (Pensar contra si mesmo, do volume A vontade radical), ela declara o impasse ao trabalho intelectual genuíno do século XX a fatal fixação ao historicismo. No ensaio antológico que encerra esse mesmo volume, de sua viagem a Hanói, ela aponta a parede de encenação e falsidade entre os vietnamitas que a recebem nos hotéis e eventos da cidade e a mesma falsidade e encenação que os ocidentais e americanos como ela tem que manter para o contato social. E como a realidade massacrante daquele povo, vilipendiado barbaramente pelos americanos (o povo do qual ela faz parte), é tão mais profunda e insondável pelas palavras. Ela admite o que seu amor à arte parece incapaz de admitir: que a arte falha diante as grandes injustiças e grandes catástrofes. E para isso, sua fé se mostra sobre-humana, ao conservar a vontade radical em buscar o aproximativo mais fiel que ombreie essa insolubilidade do real. E encaixa seu também antológico estudo sobre a pornografia:

"O que efetivamente está em jogo? Uma preocupação com os usos do próprio conhecimento. Há um sentido em que todo é perigoso: nem todas as pessoas estão na mesma condição como conhecedoras, ou como conhecedoras em potencial. Talvez a maioria das pessoas não necessite de "uma escala mais ampla de experiência". É possível que, sem uma preparação psíquica sutil e extensa, qualquer ampliação de experiência e de conhecimento seja destrutiva para a maior parte das pessoas."

Os temas encontram uma concordância e revelam uma pensadora coerente e simétrica. Graças à Sontag temos alguns dos melhores textos apreciadores de escritores de todas as ordens, origens e vertentes_ um outro elegíaco magnífico é Walter Benjamin. Ela aprecia com profundidade outros artistas e escritores, o que transfere a paixão para o leitor, sem o rancor e superficialidade mal humorada e estilista dos ensaios críticos de um Coetzee. Comprei Verão em Baden-Baden após ler seu belo ensaio sobre Leonid Tsípkin, Amando Dostoiévski, em Ao mesmo tempo. Impossível para mim não ser um ardoroso admirador de Sontag, e não pretender outra companhia entre meus honoráveis célebres para essas férias de fevereiro.

3 comentários:

  1. Uso o lápis para anotações, às vezes escrevo um conto curto, ou esboços de uma crônica ou artigo, mas não consigo ficar muito tempo escrevendo à mão, doem os dedos. E a minha letra jamais foi a mesma depois do computador.

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    1. A fluência da escrita com lápis (ou caneta) e a fluência da escrita no teclado é muito diferente. Penso que isso vem de alguma informação evolutiva dos tantos séculos de escrita cursiva, e o medo resquicial do julgamento da auto-crítica da palavra impressa. Com o lápis eu sinto que vou com bem maior facilidade, realmente eu vejo que escrevo para mim, sem interferências imediatas de que aquilo algum dia poderia cair em mãos alheias. É deliciosamente íntimo. Minha letra é uma catástrofe, mas eu a entendo perfeitamente, mesmo anos depois.

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    2. E já há quem escreva diretamente no celular.

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