O grande Thomas Bernhard, sempre bem humorado |
Perturbação é uma obra-prima. Tem a atmosfera medieval de Kafka, com castelos, aldeotas perdidas no fundo da floresta, e personagens ofensivos obcecados por suas próprias ignorâncias. Do ponto de vista de atender melhor às normas do gênero, Perturbação é o mais bem acabado dos romances de Bernhard, com a genial imersão progressiva dos dois personagens principais, o pai médico e o filho narrador, em um mundo abandonado à loucura. Se Hieronymus Bosch tivesse escrito um romance, teria sido este. As comparações com Kafka param por aqui, já que Bernhard tinha plena consciência que produzia algo genuíno no campo das letras, uma literatura da catarse, a escrita exorcizante, um mantra fundamentado na transposição da folha escrita em partitura em que todos os medos e ódios e indignações são revelados sem pudores e daí compensados pela sublimação do final da leitura. Todos os livros de Bernhard resolvem-se na sublimação, após a exposição sumária de todos os atrasos e violências. É sua maneira de compensação. Há dois outros escritores sublimes da catarse, Mikhail Bulgákov e Louis-Ferdinand Céline, mas nenhum deles se parecem entre si, além do fato de que eles escancaram o ódio na página afim de suprirem a adstringência efetiva para suportarem o mundo. Bernhard compõe um livro inigualável, com uma espécie de elegia ao classicismo em seu modo de criar personagens marcados pelo anacronismo e de construir um ensombreamento setecentista, e referenciando um final digno de O coração das trevas, com o magnífico e absolutamente lunático monólogo do príncipe Saurau. Como em todos os seus livros, o leitor fica com a impressão de que a humanidade é um projeto fracassado, mas o shamanismo bernhardiano leva toda a vanidade para a extinção e a morte, e, como todo grande escritor, planta na mente do leitor a intuição colateral e inconsciente de que, uma vez a miséria tendo sido extirpada no campo virtual, uma nova proposta possa ser trabalhada. Não se enganem os que sucumbem à falta de inteligência de uma leitura superficial: Bernhard foi um iluminista.
O sobrinho de Wittgenstein. Reluto em dizer que este é um livro menor na bibliografia de Bernhard. É um exercício bernhardiano enleivado de brincadeira e descomedimento, e um exemplo mais contundente que Perturbação da prosa exorcista e catártica do autor. Há páginas aqui amplamente musicais, com o jogo de repetição e variação de períodos que lembram em muito o minimalismo. Há um convite surpreendente para o coração terno de Bernhard, nas passagens em que ele descreve sem expô-lo o seu ser vital, a pessoa que manteve nele a aptidão pela agradabilidade da vida, apesar do período de internações para tratamento de sua doença dos pulmões. Bernhard nunca oferece uma só leitura para seus livros: há várias interpretações, várias nuances; há um metaforismo em sua nudez radical em que, apesar de se mostrar tanto, não mostra a verdade que está por detrás de suas intenções, fazendo do personagem de si mesmo uma fonte de antagonismos e pontos de vista contrários. O personagem do título serve como ácida crítica ao artista em inanição tão bem como o personagem de Humboldt serve para Saul Bellow. O narrador (Bernhard) assume que esse personagem escrevia melhor que ele, tinha um potencial filosófico superior, mas que se deixou sucumbir pela prisão sensual das armadilhas da sociedade ao ponto de se tornar uma espécie de mendigo, morrendo sozinho. O início do livro mostra os dois, o narrador e o Sobrinho, confinados cada qual em uma ala de uma clínica para doentes crônicos, o narrador na ala de pneumologia, o Sobrinho na ala de doentes mentais. São belas e simbólicas páginas em que Bernhard lembra da amizade fervorosa com esse amigo incomum, que se voltou contra a fortuna de sua família e se pôs em ataque ativo contra todas as imposturas da sociedade; e em que a solidão dos dois revela o quanto as condições eram propícias para o monastério da escrita, monastério esse favorecido pela doença mas que o amigo de Bernhard não consegue usufruir por não conter seu excesso de genialidade. Há um chocante contraste entre o amor que Bernhard mostra pelo amigo durante boa parte do romance, e sua indiferença mitigada com desprezo ao praticamente abandonar o amigo à morte nas páginas finais. Há nisso uma informação: a de que Bernhard, com seu desprezo à carcaça ambulante que mal se mantinha em pé a que seu grande amigo se deixara reduzir, oferece um genuíno respeito à grandeza abortada do amigo ao virar as costas pela traição que este fez consigo mesmo. Com a mesma perícia visionária, Bernhard reforça a motivação à vida através da descrição da degradação absoluta. Lembra a página final de sua obra máxima, Origem, em que ele abandona o sanatório e o pneumotórax, porque ele queria viver.
Adoro as inusitadas legendas de fotos. E tens razão sobre O Sobrinho. Não é livro menor não.
ResponderExcluirBernhard em quase todas as fotos aparece com uma cara simpática, quando não rindo. Era um cara e tanto!
ExcluirLi esse mês "extinção" e tudo o que você e o Milton já disseram sobre o autor é verdade, e que livro impactante, a forma como ele disseca a vida passada dele junto a família é incrível, e toda a crítica a política e sociedade austríaca, me deixou sem folego, agora bem que a cia das letra poderia pelo menos reeditar o náufrago e quem sabe esses dois citados por você e o "árvores abatidas", já que o preço de qualquer livro dele que esteja esgotado custa um absurdo, no sebo que eu frequento eu todo mês ligo perguntando zombeteiramente se eles já baixaram o preço dos volumes que eles tem por lá.
ResponderExcluirOs livros do cara são realmente muito caros. Fazia anos que eu paquerava os da Estante, até que comprei. Não tive a mesma sorte que o Ricardo Kober, que recentemente achou o Arco-íris da gravidade por 60 reais (mais o frete), de tanto persistir em visitas diárias e madrugadinas à Estante. E o número de livros ainda não traduzidos dele para o português é grande; nenhuma peça teatral, nenhum ensaio.
ExcluirEu acho que as peças foram traduzidas em Portugal, tem esse livro http://www.skoob.com.br/o-fazedor-de-teatro-160043ed178590.html, que eu sei que não foi editado aqui no Brasil.
ResponderExcluirTem esses também http://www.skoob.com.br/o-fazedor-de-teatro-160043ed178590.html e http://www.skoob.com.br/o-fazedor-de-teatro-160043ed178590.html. que eu não sei se é teatro.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
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ResponderExcluirCharlles,
ResponderExcluirDo Bernhard, gostei muito d'O Náufrago. Serei sempre grato ao Bernhard, pois por meio dele conheci a obra de Glenn Gould e graças a ele, juntamente com o Canetti, também cheguei a este blog, depois que os vi citados em uma ou duas listas de suas leituras preferidas. Ainda não li Origem tampouco Extinção.
Perturbação, em minha opinião, é um romance disforme e sem grandes atrativos: o pessimismo (ou niilismo?) do autor parece ter fôlego curto nesta obra. Contudo, ainda quero ler Origem e Extinção.
Do Canetti, li e reli o genial Massa e Poder e a Consciência das Palavras. O primeiro é uma obra basilar para compreender os mecanismos de alienação, manipulação e submissão de nossa sociedade. Li ainda Auto de Fé e achei um romance apenas razoável. Independentemente da temática, a escrita (deliberadamente ou não) é arrastada, os personagens-ideias são pouco originais e se repetem página após página. O ódio e a torpeza humanos, penso, nesse livro são representados sem aquela linguagem e formas sedutoras que, sobremaneira para mim, são a alma da boa Literatura. Jamais lançaria o livro à fogueira, mas tampouco queimaria minhas mãos para salvá-lo dela.
Em tempo: parabéns pela Lara! Sigo acompanhando seu Blog com deleite e gostei de forma especial do seu texto de grande sensibilidade em que faz menção ao ultrassom da pequena.
Abraços,
Marcos
Origem é o melhor do Bernhard. Alguns críticos o comparam ao Montanha Mágica.
ExcluirPenso o mesmo do Auto de fé. É chato falar isso do Canetti, mas é um romance com todos esses defeitos que você apontou. Tem um artificialismo que põe muito a perder o conjunto.
Obrigado por suas palavras, Marcos.