segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Dois Filmes sobre nosso Desarroado Modo de Vida

CAPITALISMO-UMA HISTÓRIA DE AMOR, de Michael Moore


Um tanto mais panfletário que antes, Michael Moore confirma em seu último filme, “Capitalismo-Uma História de Amor”, toda a sua fiel constituição de americano médio, ingênuo, satisfeito com sua obesidade não competidora, com seu boné de beisebol e seus moletons de adolescente tardio, sua perguntas diretas que querem abordar o assunto sem pompas; enfim, o legítimo cidadão dos Estados Unidos de hoje que, na generosa amplitude das possibilidades fornecidas pelas mídias daquele país, resolveu se tornar um cineasta documentarista.

Nesse filme sem muitas novidades, vemos os mesmos trejeitos explorados exaustivamente nos outros filmes do diretor: o confronto urbano com políticos e mega-empresários; a escolha de um tema (o capitalismo, nesse caso) e sua “explicação” didática superficial, com recortes emprestados de antigos filmes preto-e-branco do governo, e a trilha sonora do rocabilly dos anos 1950; a visão de uma América nos escombros, dominada por uma espécie de Protocolos dos Sábios do Sião formado por executivos e políticos gananciosos; e o mesmo humor de programa de televisão aos domingos e a costumeira malhação a George Bush.

Tudo isso seria constrangedor se Michael Moore tentasse ser um milímetro diferente do que é. O seu grande trunfo é ele ser bem resolvido com suas insuficiências e falta de sutileza. Com a cara de garoto cujo passatempo preferido é devorar enormes quantidades de comida industrializada de frente à TV, Moore não explora o que em mãos inábeis seria a sua natural pendência física ao cômico, não dá uma de intelectual, não se preza conscientemente ao papel de guru. Quando, nas cenas finais de “Capitalismo”, ele instiga o espectador a uma anacrônica e surrealística revolução socialista, o pieguismo é aplacado pela intimidade alcançada com o público de que seria exatamente isso que ele proporia se estivéssemos numa mesa de bar. A familiaridade inadvertidamente honesta de ser um americano padrão, que não foge de nenhum dos estereótipos, a nos mostrar os restolhos e as enormes falcatruas de sua antiga terra dos sonhos.

Ainda assim, o puro andamento documentarista reserva algumas surpresas. A maior delas é ver três congressistas americanos num flagrante estarrecedor para os políticos brasileiros, agindo conforme as crenças democráticas rezam que devam agir: a favor do povo. Da tribuna, uma congressista execra furiosamente o banco Goldman Sachs, negando-se a liberar um centavo sequer do dinheiro público para livrar essa instituição da bancarrota. Seria como vermos um dos nossos congressistas denunciando a roubalheira legalizada perpetrada pelo Banco Itaú!!

Outra surpresa é vermos uma voz do congresso ordenando, através de rede nacional, que as famílias informadas que tinham que deixar as suas casas para pagarem a dívida com os bancos, NÃO ABANDONASSEM SUAS CASAS, NÃO DEIXASSEM DESPEJAREM-SE SOBRE HIPÓTESE ALGUMA. Fez-me lembrar de John Updike, no limite a que conseguia ir a sua defesa ao país no qual nascera, dizendo que os EUA lhe pareciam o melhor lugar para se viver porque nunca tinha sido incomodado pelo Estado em nada do que fazia.


KOYAANISQATSI, de Godfrey Reggio


A música de Philip Glass nunca foi tão impactante quanto a que ele produziu para esse filme extraordinário. Depois que assisti a Koyaanisqatsi, me deixei levar pela crença pessoal de que toda a invenção do cinema culminava na justificativa da existência desse filme. Começa com uma série de cenas da natureza. A câmera sobe do fundo de uma caverna para captar no orifício acima na rocha uma família de morcegos, voejando num véu de luz solar. A dança das marés, a formação e movimentação das nuvens, a areia em constante mutação do deserto, o anoitecer no meio mais ignoto do Pacífico. E tudo numa plasticidade impecável, como se o diretor tivesse conseguido o feito inacreditável de amestrar forças selvagens da natureza para se comportarem condizentemente com o momento do filme. Cenas tão límpidas que vistas na tela grande do cinema provocam aquelas reações físicas despertadas pelo deslumbramento: uma leve contração das glândulas salivares, uma elevação dos pêlos da nuca.

O filme vai ganhando uma imponência assustadora à medida que passa a mostrar as cidades e o animal humano em seu habitat. E a trilha de Glass, ameaçadora e profética, alcança a vantagem invejável aos outros compositores contemporâneos de se adequar perfeitamente ao mecanismo visual requerido para dar a devida grandeza à música minimalista. Os detratores de Glass ao menos deviam reconhecer o importante favor que ele fez com essa trilha de converter muitos ouvintes ao minimalismo (eu incluso).

Enfim, um documentário fundamental para se entender como se pode fazer uma crítica contundente à forma de vida que, se a espécie que somos hoje sobreviver à contingência inacreditável da evolução pelos próximos milhares de anos e se transformar em algo melhor, vai ver como um suicídio global e uma prontificada disposição social à infelicidade.

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