quinta-feira, 19 de setembro de 2024

O salto




 Anselm voltou para sua mesa. Sentou-se, olhando a paisagem dos prédios de frente. Queria restaurar os movimentos alarmistas com que iniciara o dia anterior, mas seu corpo não achava justificativas.  Janete estava sentada na mesa ao lado e olhava pela janela, os olhos que sempre se pareciam com dois botões de uma flor exótica postados atrás dos óculos grandes para algum detalhe nos encaixes quadrangulares além. Anselm olhou caçando algo entusiasmante, sabendo que se houvesse qual seria a reação dela? Se houvesse um homem nu se enxugando displicentemente, o que o espírito feminista daquela renegada dos padrões da sociedade faria? Por um momento ele julgou que sua predição iria por uma sorte maluca se confirmar, pois resolvendo-se no ajuste de contração de sua pupila os reflexos de luz em uma janela se abriram para um rapaz parado olhando para baixo, no prédio de frente. Anselm se encolheu na cadeira, aceitando que aquele detalhe pueril viera para lhe manter por mais uns minutos ali, longe dos distúrbios sensoriais de Esvertina. Pos-se a olhar o homem, cruzando os braços e tossindo, como se estivesse em um cinema. Por uma degradação ligeira, que ainda mantinha o rapaz em foco, ele confirmava que Janete se ocupava com afinco com a cena.

  O rapaz, olhando bem, tinha traços médio orientais. Tinha uma barba muito incipiente, que se via mesmo daquela distância tracejando o alto de sua boca e o queixo com a falta de estilo de certas juventudes. Anselm pensou: não vai fazer diferença ele ter barba, com um rosto tão delicado e moreno. A biologia mesmo sem ser seu propósito acerta na estética. Os cabelos, pelo contrário, eram fartos e muito negros, como é típico às pessoas como ele. Estava tão concentrado em algum pensamento que parecia não ver nada a seu redor. Na certa, uma janela tão grande, recortada no centro de uma parede de outras janelas do mesmo porte, não poderia lhe passar despercebido. E dois rostos incomumente embrenhados na intromissão de repará-lo ao máximo seria mais que silhuetas em uma perspectiva reta que se finalizava onde o rapaz estava. Contudo, que distração sublime. Ou ele se negava a participar de um conluio anônimo que o tinha como alvo, que a perspicácia de ondas curtas das interações humanas já devia ter-lhe aventado que estava sendo visto, ou estava mesmo em uma estágio de alheamento tão profundo que se alguém pusesse a tocar um trompete a seu lado não interferiria. Anselm pensou que excelente oportunidade perdida para um fotógrafo registrar aquele enquadro de dor oriental segregada nas mediocrizações saudáveis da arquitetura proletária. Até o jogo de sombra e luz vinha de graça, perpetrada com generosa distração pela natureza daquelas paredes descascadas e aquela fremulação do ar que por mais que fosse flagrada pelo olhar estava sempre num passado de sépia, saudosista, de amplas sugestões esotéricas inapreensíveis. E aquele semblante de mil e uma noites, sherazadesco, transliterado para uma masculinidade delicada, não poderia ser mais condizentemente sensitivo com sua erraticidade e inadequação à crueza esbravejante daquilo tudo, daquelas janelas pobres, daqueles pombos canibais, daqueles dois rostos do outro lado, que deveriam parecer-lhe, se ele tivesse a mesquinharia sem sentido de se importar em vê-los, com os enfatuados rostos dos mortos em vida seguindo como todo mundo seu destino cegamente até o desaparecimento. Mas no jornal não havia fotógrafos, não profissionais, os registros do cotidiano sendo feitos para chamar a atenção nas bancas para as manchetes com os celulares comuns. Não cabia o uso de um instrumento tão estúpido para emplastrar aquele flagrante da eternidade, aquele momento desterrado do infinito, para parafrasear uma acertada expressão de Baudelaire.

  Então aconteceu. Anselm pensou por tanto tempo como iria descrever a abrupta e grosseiramente efêmera cena na coluna no jornal, e teve que se exigir um esforço sobrehumano para fugir à tautologia vazia dessa frase “então aconteceu”. Mas a frase retornava com todo seu poder de concisão em instigar o iminente anúncio de que algo realmente acontecera, porque é nisso, nessa pressuposição absurda que se ampara o significado da frase, de que algo novo possa acontecer na sensaboria previsível da existência, algo que vá abalar mesmo que nas mínimas instâncias essa coesão instransponível, essa rigidez dentro da qual o número medido de alternativas já está ajustado, mesmo que bilhões de combinações sejam possíveis, mas serão sempre só as que o cosmos estudou colocar no início dos tempos. Pois o que poderia acontecer? Ou o rapaz voltava para o interior daquela saleta incognoscível para cumprir os itinerários de seu dia, ou faria o que então ele fez. Diante os olhares cada vez mais aturdidos de Anselm e Janete, o rapaz saiu de sua imobilidade pictórica, de seu congelado instante eterno rembrandtiano. A mágica opalescente se quebrou, aqueles olhos enfunados no interior de si mesmo acordaram, não havia outra palavras menos fiel mas ao mesmo tempo mais cabível à situação. Se ele estava em um reino interior de sensações solipsistas, quem sabe trazidas da infância (que não muito o separava no tempo, talvez uns dez anos, visto ele ser bem jovem), sentado em inadmoestável solidão dentro da caverna onde dormia o urso hibernante de sua consciência, não seria acordar a expressão correta. Pois onde melhor se empregaria a vigília senão para essas idiossincrasias valiosas, para esses mundões seculares da personalidade contra a qual o sujo olhar alheio não tinha poder? Mas ao mesmo tempo, a atitude inédita daqueles olhos de uma renascença orientalista (e o historiador Anselm sabia que não era de todo um oximoro) terem retornado às evocações empobrecidas do seu entorno só seria descrito como um acordar, o que trouxe os aspectos pueris do rapaz. Dele evanesceu-se a postura sonhadora e viera um acúmulo de meneios empobrecidos de significados. Se via o interesse mais imediatista dele em abrir a janela, se fazer livre de uma vez daquela missão a qual se impunha. Seus olhos se reviravam ora para o encaixe da janela na linha cinética de baixo, empurrando a janela o mais fundo possível para que ela desse o devido espaço para o abismo de fora. Depois, com uma segurança técnica impressionante, como se o que o impulsionasse não fossem os resultados de sinapses musculares e o sistema ósseo de guindaste biológico, mas fios invisíveis que o erguiam do alto, com total convencimento por parte dos dois expectadores do outro lado de que nenhuma lei física estava sendo desrespeitada, ele subiu no peitoril da janela com um pulo conciso. Justiça seja feita em dizer que por um microssegundo seu corpo tombou para trás, para o interior do cômodo, mas ele se ajeitou com a mesma instantânea quantidade de tempo, ganhando enfim uma imobilidade com o corpo dobrado no quadrângulo que bem poderia compor um outro registro pictórico. (Dessa vez com os componentes de atenção já em suave início de alerta, piscando diante a cobrança racional do porquê um rapaz como ele estaria dobrado dentro de uma caixa aberta como se fosse um homem de borracha de um circo em duas dimensões.)

    Nisso, Janete deu um pulo e correu para a janela. Anselm já se punha a fazer o mesmo, movido mais pelo instinto de repetição diante uma abrupta quebra de imobilidade, quando, a meio caminho de se erguer, olhando fixamente a cena, o rapaz se lançou. Anselm iria repassar aquele momento durante meses, iria se silenciar e guardá-lo no núcleo de sua análise velada a título de crer que um enigma de tal porte só poderia se abrandar com aplicada seriedade introvertida, e depois iria descrevê-la por escrito. Lembraria, enquanto durasse sua vida, que acontecimentos assim tendem a ter uma simplicidade impossível, uma superfície diante a qual se tem que recuar para que os tentáculos do que nunca se conseguirá dizer puxem junto para a destruição. São atos que foram feitos na forja universal para ocorrerem sozinhos, sem testemunhas, e talvez sendo recorrentemente vistos por observadores intrometidos é que confere ao suicídio um tom sagrado. Pois como Anselm poderia explicar, por exemplo, o segundo inicial da queda, em que, estando o rapaz ao mesmo tempo ainda seguro no equilíbrio do limiar da janela, não o estava seguro, mas já em um estágio flutuante, naquela fugacidade enlouquecedoramente inepta de ser apreendida pela realidade em que parece que a gravidade se põe a ponderar: “Puxo-o, conforme faço por bilhões de anos, ou o poupo, o recolocando em segurança de volta?” Quem sabe o milagre existiria se não fossem Janete e ele estarem o presenciando, dando assim total liberdade para a potestade-caos refazer aquele lapso de vetores eventuais de modo que só sobraria o rapaz com sua mente para dobrá-la e fazê-la esquecer rapidamente que fora poupado, que todo o universo deteve por um momento só leis inexoráveis por meras questões morais que envolviam seu sofrimento insignificante. Se havia tanto poder nas mãos desse deus incriado, por que ele não poderia infligir alguma regras muito de vez em quando, para provar a si mesmo o gosto de sua onipotência? E o rapaz, nesse fugaz instante, olhou para Anselm. Foi um olhar direto, em que Anselm pode sentir com veemente força os vestígios da ternura que havia dentro do rapaz. E ele sorrira, era um sorriso. Claro que uma contração fagulhar, mas prenhe de um significado que não era outra coisa que uma disposição sincera para a possível alegria que lhe esperava. Ele subscrevia o momento de dor com o contato de toneladas da calçada, que as pesquisas que na certa havia feito mostrava que não teria um sofrimento significativo, e nutria a expectativa de um deleite final_ ou um deleite aduaneiro, da fronteira instalada na entrada de um país desconhecido.

    Janete dera um grito, tampando a boca logo em seguida. Anselm emitira um “Meu deus do céu” e recuara. Janete olhou pela pontinha dos pés lá embaixo, mas Anselm saíra para a cozinha, completamente abalado. Só então notara que estavam apenas os dois, Políbio e Afrânio haviam saído. Na mesma hora, uma buzina se fez ouvir disparada na rua, sem cessar. Talvez o incidente vitimara um carro, era uma nova gama de possibilidades que o leque fractal da vida com sua calma força imponderável produzia para contornar aquele elemento desistente e seguir adiante, como um regato cobrindo uma pedra atirada por alguém. Não se poderia interromper o fluxo por nada, e era por isso que não haviam milagres. Uma lei violada despenderia uma quantidade monstruosa de energia, e talvez já houvesse sido testado antes, há muitos anos, com resultados terríveis. Sons de vozes de todos os tipos e em todas as modulações subiam até os dois. No limiar havia como que por congruência crescente as vozes de mulheres que teciam calmos mas indistintos comentários, cheios de uma quase musical interjeição, e sons de crianças. Talvez fosse a alucinação técnica que todo acontecimento provoca, arregimentando as paletas da orquestra para o scherzo atonal. Janete chorava, e se voltou para ele, os óculos tortos por sobre o nariz embaçados.

  _ Anselm! Anselm.

 Anselm piscava, sua mente disparava pirotécnicos exames eruditos sem significado algum. Era a forma de sua mente se proteger dentro dos arquétipos sonoros de uma compreensão que ela mesma sabia terem apenas fins terapêuticos. Ele foi até Janete, abriu os braços e ela entrou dentro deles, encolhida.

  O último componente daquele cenário em proporções reais enfim apareceu: a sirene do carro de polícia nitidamente exigindo passagem com uma quase inapreensível delicadeza diante o que se reconhecia não ter o caráter emergencial de um crime comum.

 

 




quarta-feira, 18 de setembro de 2024

A Vítima



Era bem provável que aquela nuvem gigante que cobria a cidade viera do Polo Sul. O clima andava tão louco há tanto tempo que não se precisava ver a meteorologia para supor isso. Era fácil cogitar que também havia algo além, que dava uma atmosfera espiritual às pessoas andando atarefadas sob as sombras e o frio. Por um momento seus dramas megalomaníacos, as intuições de antigas memórias tribais, eram postos em suspensão para que elas observassem aquele manto cinza metálico, inflado de umidade elétrica, tomando toda a amplidão do céu.

   Foi em uma noite dessas que Anselm Dulabonde desceu do ônibus na avenida próxima duas quadras  ao prédio onde sua irmã morava. Havia apertado o botão para avisar o motorista, mas este pareceu querer avançar além do ponto. Como em uma sincronia urbana, ele apertou novamente com nova ênfase ao mesmo tempo que o motorista moveu o volante com impetuosidade e freou o veículo a poucos centímetros da calçada. Um movimento de outros freios e buzinas rascantes atrás denotou a falta de cuidados, o que Anselm acabou sendo receptor da ira do homem, representada pela violência com que a porta foi aberta.

  Pulando para fora, com a estimativa de acidentes provocados nessas circunstâncias na cabeça, Anselm não procurou conferir o que o sujeito lhe gritara. Nada lhe desgostava mais do que esses embates urbanos que estavam mais para clichês físicos. Movimentos de acondicionamento dos dentes das velhas engrenagens sociais. Talvez o homem lhe dirigisse apenas um olhar compungido se ele o enfrentasse, raramente ia além. As pessoas tinham muito medo de se enquadrarem às estatísticas. Uma educação vestigial à prova de tudo as mantinham longe das colunas policiais dos jornais. Anselm sabia disso pois trabalhava de dia em um jornal de imprensa marrom, como se dizia nos bons tempos. E era o responsável por dourar a pílula dos incidentes de crimes e morticínios da cidade. Tinha um “infiltrado” na polícia, que lhe passava com a voz ensonada o material colhido nos boletins de ocorrência. Quando Anselm entrava no serviço, às cinco da madrugada, o informante se preparava para sair. Quanto mais sua voz era extenuada, mais tinha coisas picantes para contar. Maridos bêbados, delinquentes juvenis, arrombadores de panificadoras. Uma vez ou outra um tema real, que ele tinha que digitalizar às pressas antes que a imprensa cibernética dos grandes portais de notícias as lançassem.

    Eram sete e meia da manhã e o movimento de pedestres era moroso ainda. A cidade estava representada por homens de semblantes sorumbáticos carregando garrafas térmicas e mulheres magras de uniforme. Só Anselm, em sua roupa de flaneur, com a gola levantada como fazia nos tempos da universidade, era um ponto desviante da curva. Não recebia olhares averiguadores. Havia um exército de gente como ele, subempregados sem definição certa, com sinais inarredáveis de uma juventude tardia.

  Misturando-se a elas ele desceu pela rua que levava ao apartamento de sua irmã. Ela lhe telefonara às seis e meia. Disse que o filho dela, Marcus, de seis meses, ardia em febre. Não havia muito o que fazer do que deixar tudo em suspenso e ir socorrê-la. Não havia ninguém menos preparado para isso do que Anselm, mas o fato é que não havia mais ninguém... O pai do garoto era o que se definia nos anais jurídicos como pai ausente.

  _ E onde está Edgar, Tina?_ ele perguntou à irmã pelo telefone.

  _ Ele está em uma tarefa do escritório na cidade de L. Por favor, venha rápido.

 Tina, Esvertina, sua irmã, sempre poupava Edgar. Ela tinha muita pena que o marido fosse o único provedor da casa, e o escritório de advocacia onde trabalhava o sugasse tanto. Era parte do arranjo que ela teve que aceitar para não virar uma solteirona. Tinha sido uma mulher linda até os trinta anos, e aos trinta e sete a hidrostática corporal era uma realidade incontornável. Fizera três namorados arrastarem a seus pés, mas agora tudo o que lhe restara para uma promessa conjugal moderada era Edgar, e ela não podia mais se dar ao luxo. Anselm se distraía imaginando a cara de desforra dos namorados desprezados ao saber que ela se rendera a um sujeito divorciado, com dois filhos. Ele nunca tinha suportado a prepotência aristocrática de sua irmã, mas aquele terror da solidão clássica o deixava compungido. Era como ver um ovo Fabergé consertado com peças de segunda mão por um artífice farsante. Ser um estepe insuficiente era o máximo que podia fazer pela irmã para atenuar a ação daquela sorte inadequada, francamente injusta.

  _ Por que você não levou Marcus para o hospital, Tina?

  _ Eu o estava medicando com dipirona e amoxilina, que foi o que o médico passou a última vez. É tudo muito difícil, Anselm. Estamos em um regime de contenção de despesas e sair à noite com o Marcus seria um custo que não tenho como arcar.

  Ele pensou em quanto teria no bolso e não lhe pareceu ser muito. Aqueles choques entre sua vivência com a da sua irmã lhe entregava aspectos desconcertantes de seu pouco caso com o dinheiro. Sacolejou algumas moedas que pelo peso indicavam dar pelo valor de uma passagem de ônibus e pegou seu casaco. Miguel, seu chefe, o olhou aturdido. Estava com a cara inchada, demonstrando que havia passado a noite em claro em seu artigo sobre as formas globais de dominação. Abaixo do olho esquerdo uma mancha líquida, que parecia se segurar imobilizada para não escorrer.

_ É a Tina. Volto depois do almoço.

Ele não disse nada. Quando colocou sua pasta abaixo de sua mesa, ao lado da cesta de lixo, ouviu ele conversando com Januário, o responsável pelas colunas sobre movimentos emancipacionistas.

_ A falta de compromisso está cada vez mais marcante. Para um jornal progressista isso é uma falta de fé tremenda.

   Anselm fingiu que não tinha ouvido, embora a acústica da pequena sala ventilada amarelecida pelo sol recortado da manhã espalhasse o som de maneira nítida. No corredor ele fechou a porta com o ar absorto, pensando nessas intermediações menores da realidade. Era quase um trabalho voluntário, que só lhe dava para pagar o aluguel e as despesas com a luz. Em plena época que estavam, falar sobre antigas ideias abortadas mantinha a mente afiada. Ele sabia que Miguel estava certo, a baixa expectativa de que aquele jornal aumentasse sua circularidade fazia a permanência ali um ato de fé. Mas o que ele poderia fazer diante um inconveniente de saúde? Ele se condoía de que um bom homem pensasse assim, e mesmo sabendo que havia muito de mimo nisso ele descera as escadas com pesar.

   Do lado de fora ele estacou de súbito diante aquele céu. Vagas de nuvens de chumbo. Tinha algo de segunda guerra mundial, de operações militares sobre cidades devastadas. E o frio corria num movimento contínuo cuja aplicação fanatizada tentava entrar pelas abas dos casacos dos transeuntes. Ele teve a impressão de que flagrava uma ação orquestrada por alguma força maléfica, como uma organização sideral de ladrões de carteira.

  Faria o possível para voltar antes do almoço, talvez convencendo Tina a chamar uma ambulância. Tinha que ver com cuidado a situação do menino, que justificasse uma ambulância. Pensando assim, parecia um milagre preservado que numa cidade tão grande houvesse possibilidade de que um assistencialismo hospitalar tomasse conta de uma simples criança. Viver longe da região visível fazia Anselm pensar na grandiosidade que eram os poderes da instituição social. Se ele ficasse doente, o que raramente acontecia, ele nunca cogitava no recolhimento dessa ortodoxia. Da última vez que teve um ataque estomacal, ingeriu dois comprimidos e se encolheu em posição fetal, até que a fagulha dourada de dor sumisse. Talvez essa ideia tomasse conta de Tina, e ela achasse que um aparato não poderia ser tão intrincado a ponto de seu filho merecer atenção.

   O prédio de Tina tinha cinco andares e ela morava no terceiro. Era um bairro popular, de renda média. Usualmente acolhidos por casais jovens que acreditavam ainda que tudo era positivamente transitável. Tinham uma autocritica estética de não colocarem roupas em varais e serem adeptos do silêncio. As forças se estabeleciam na capacidade de contratarem serviços de limpeza doméstica, o que muito servia para darem uma dimensão das coisas. Anselm achava que o advento da revolução virtual havia trazido um grande alívio para aqueles casais, pois as distrações ficaram mais baratas do que irem a museus, ou jantarem fora, ou em parques com as crianças. E enquanto tivessem aquele pequeno arremedo de feudo particular com seus serviçais pagos por hora, o próximo passo necessário ficaria sempre protelado. Mas era interessante, pois nunca ficara sabendo de permanências exageradas nesse estágio. O que ele pensava que só poderia se resolver mesmo pela ascensão. Era um dos efeitos da persistência intuitiva ao senso comum que desbaratava todas as críticas filosóficas sofisticadas.

  A porta estava entreaberta, deixando ver o amarelo do corredor estreito das escadas. A tranca estava quebrada, e Anselm olhou para o painel de chamada afixado à parede. Leu o nome do terceiro andar, Edgar, o que o fez soltar um muxoxo de ironia. A placa de metal estava enferrujada, o que denotava ter décadas de idade. Subiu os degraus procurando não se segurar nas paredes. Do alto veio um eco vazio de significados, como se fosse um ar represado que ele liberara com a descompressão da porta. Uma luz automática acendia a cada andar. No terceiro, ele empurrou a porta de metal pesada. Entrando no corredor que dava acesso aos quatro apartamentos, ele se posicionou diante a porta da irmã. Apurou os ouvidos, na expectativa de que os dramas espirituais condensados lá dentro fossem ouvidos, talvez algum sinal de melhora. Mas o silêncio era total, como se fosse uma das ilustrações típicas dos romances russos clássicos. Tocou a campainha. Ela funcionou, com uma limpeza que mudava por um curto segundo as apreensões metais.

   O filho mais velho de Edgar abriu a porta. Anselm nunca sabia qual era o nome dele, se ele era o Victor ou o Tomas. Eram uma espécie peculiar de gêmeos de idades diferentes para ele, sendo muito parecidos. Apenas que o mais velho não tinha o vestígio de doçura infantil do outro, tendo as feições irritantemente pragmáticas para um menino de 12 anos. Era como se ele já estivesse se acondicionando para sua vida ativa, como se antecipasse a cara do burocrata que estava destinado a ser. Anselm procurava não nutrir nenhuma tipo de sentimento crítico em relação a ele. Não era seu problema.

  _ Posso entrar..._ ele perguntou, se lembrando de súbito que ele se chamava Victor_ ...Victor?

 _ O, é você! Entre.

Ele deu um passo cauteloso, olhando para o interior escuro. Fechou a porta atrás de si, pensando se não era pouco preventivo não girar a chave, e ficou parado. O menino o olhou de volta, com um ar interrogativo, mas não disse nada. Estava entranhado o suficiente no ambiente para achar todas as formas de desconexão lógicas corriqueiras.

 _ Chame sua mãe, Victor._ ele disse.

    Falara baixinho sem entender muito bem por quê. O apartamento era tão minúsculo que mesmo esse tom deveria ter sido apreendido por sua irmã lá de dentro. Só poderia estar no quarto, com Marcos. O menino entrou pelo corredor escuro e tudo voltou ao silêncio tirânico e aflitivo que aliás não chegara a ser interrompido.

   Havia uma poltrona velha ao lado da janela, e um saco de imitação de couro que ele não sabia o nome, mas que servia para se sentar. Em uma cesta no chão, haviam muitas revistas sobre assuntos triviais. Os assuntos triviais que o horizonte espiritual sempre limitado de sua irmã comportava. Moda, conselhos adolescentes, a vida das subcelebridades da internet e da música. Olhando por aquela perspectiva da doença, eram temas francamente encerrados, afasicamente obsoletos. Provocava certo constrangimento nele por a irmã conservar aquelas coisas. Qual o propósito? Apostava em algum tipo de esperança nelas? Como se algo pudesse ser reavido através daquelas folhas amarfanhadas e sebosas?

  Esvertina apareceu. Viera a passo comedido, como se devesse aquela mínima polidez a ele. No meio do corredor ela tropeçou em algum objeto que estava no chão, talvez um brinquedo de Marcos.

_ Oi, Anselm. A febre dele passou e ele está finalmente dormindo. Eu dei um banho em água fria nele, na bacia de metal.

 Ela tinha marcas profundas no rosto. Seu cabelo era um misto de cores baças das tantas tinturas que se sobrepunham, um filete ralo dele caindo-lhe para a frente por sobre a testa. Usava uma camisola branca encardida, e seus pés grandes e protuberantes mal haviam se ajustados a uma chinela. Estava dormindo também, o que deveria ter conseguido em uma batalha conjunta com o menino. Vai ver aquele comedimento era para disfarçar sua má escolha precipitada de trazê-lo ali justo quando enfim poderia descansar. A comunicação entre os dois sempre tivera esse mérito irritante de se fazer de forma imediata, sem subterfúgios, deixando os dois perdidos na impossibilidade seguinte de perpetrarem outra palavra. Seria impossível para os dois desfazerem o engano, com ele se retirando do apartamento. Iria se desenvolver para um problema inóspito e imprevisível, e por isso eles sabiam que teriam que tolerar.

  _ Que bom! Lembro da mamãe me dando banhos gelados quando eu tinha febre. Uma vez ela me estendeu na banheira e eu achava espetacular não sentir o frio dos tantos cubos de gelo que ela havia colocado sobre mim _ ele disse.

 Ela saiu de sua imobilidade e foi até uma cômoda pequena ao lado da estante onde estava a tv e alguns livros de autoajuda. Anselm imaginou que ela iria pegar um cigarro, mas se lembrou que ela tinha dito ter parado de fumar já fazia dois anos. Mas a coreografia do movimento era o mesmo e ele apostaria que se a abstinência não estivesse de todo resolvida havia acendido alguns sinais na cabeça dela. Ela vasculhou em um pequeno pote de cerâmica barato, que servia para guardar moedas e chaves, e retirou uma nota de dez. Entregou para Victor, que estava um pouco atrás, e mandou que ele descesse e fosse até a padaria trazer uma cerveja.

  _ Vá e volte rápido, Victor.

 Daí retirou um livro didático infantil de sobre a poltrona e mandou que ele se sentasse. Ele enfiou a mão por um momento no bolso traseiro do jeans e avançou. Em sua mente surgiu de forma repentina o texto que teria de escrever sobre os efeitos climáticos provocados pelo capitalismo que acometiam as regiões do nordeste do país. Sentiu uma vontade louca de ir para o escritório.

  _ Ainda acho que deveria levar Marcos ao médico, Tina. Essa febre pode voltar, as febres sempre voltam se a causa delas não for tratadas.

_ Eu vou leva-lo hoje. Eu não consigo falar com o Edgar. Ele esta em uma cidade interiorana e o sinal é péssimo. Vive caíndo. E dessa vez não há sinal algum.

  Anselm não queria entrar nessa parte da história. A situação da irmã era terrível, ele sabia. Os dois filhos de Edgar passando aqueles dias sozinho com ela e o Marcos deveria tornar tudo mais difícil. Era até um prodígio de autocontrole que ela aceitasse eles ali, o Edgar não estando. A mãe deles, a primeira mulher de Edgar, era um assunto proibido. Ninguém nunca falava o nome dela, quando os dois oficializaram o namoro ninguém nunca poderia fazer perguntas sobre o passado. Mas havia o arranjo dos dois meninos ficarem com eles aos finais de semana, e isso deveria ter sido uma das abdicações que Esvertina tivera que fazer. Era impensável tamanha paciência quando estava no completo controle dos seus poderes. Crianças para ela eram animais perturbadores que para suas seguranças deveriam manter a distância dela. Ele sempre tinha o receio de que ela falasse algo além da legalidade em restaurantes com meninos turbulentos, e uma vez viu uma mãe em um parque envergar a nuca em uma posição florestal de ataque e retroagir diante a razão restabelecida. E ele não sabia onde estaria o outro menino, o gêmeo cindo anos mais novo.

 _ Se precisar eu tiro o resto do dia de folga. Eu prometi finalizar algumas pautas para o Osmar hoje, mas eu poderia dar um jeito.

 Ela o olhou com antigas arestas de cogitações misantrópicas e então seu olhar desanuviou. Ele entendia bem o que queria dizer aquilo. No momento ele sentiu uma aversão pálida, desinflada, pela irmã, que antes era poderosa a ponto de manter a distância recíproca entre os dois. Ela nunca aceitara o que ele fazia como uma profissão, como um trabalho digno. Escrever abobrinhas para um jornal sobre anacrônicas causas perdidas não era nem de longe algo que justificava o martírio da sobrevivência cotidiana como eram suas sessões de fisioterapia. Mas isso ficara no passado, antes do fracasso, quando ela pesava dez quilos a menos e tomava banho todos os dias. O cheiro que ela expelia agora, junto com as profundas rugas que lhe apareceram no rosto, não lhe davam mais a segurança dos preconceitos de pertencer a um nicho. O repúdio ainda estava lá, como uma reação pavloviana. Bastava ele invocar as mesas palavras e a ridicularia se manifestava em um grau bem menor dentro dela Equilibrado pelo que o senso comum adepto a desforras morais dizia ser a lucidez do sofrimento, mas havia apenas a desistência. Para ela agora tudo se nivelava por baixo, nada tinha ganho uma natureza redentora de admiração. O máximo que se poderia dizer sobre um caráter de justiça era que ela fora trazida para a mesma zona rebaixada dele, aceitava com a mesma resignação o que achava que cabia como distinção de baixa classe a todos nesse estágio da derrota.

  _ Não é preciso, Anselm. Eu não quero prejudicar você. E a Marta veio aqui e disse que me ajuda a levar o Marcos. O hospital fica perto daqui.

  Ela disse isso olhando para baixo, compungida. Essas facilitações todas lhe davam a consciência de que seu atraso em levar Marcos ao médico era cada vez mais injustificável. Ela ergueu os olhos e neles havia um pedido claro para que ele não a julgasse por isso.

 _ A vida anda muito difícil, Anselm. Eu não pensava que seria desse jeito. O dinheiro parece não entrar, o tempo parece parar e tudo ficar enrolado em um âmbar_ ela não sorria. Sua boca tremera nitidamente, como se a expressão de todo esse pensamento em palavras lhe revelasse uma dor inconveniente.

  Ela sempre se limitou confortavelmente às áreas pragmáticas do discurso. Ao contrário dele, ela nunca fora dado aos livros. Via a propensão do irmão à leitura como uma espécie de aberração que explicava algumas coisas. Essa pobreza metafísica voluntária a salvava de uma interpretação mais sofisticada do sofrimento. Os homens cultos poderiam achar bonito dizer que essa imolação lhes causam inveja, mas para ele era aterrorizante purgar todo aquele inferno ainda mais subdimensionando-o. Havia um grau de conforto em reconhecer a extensão da desesperança que sua irmã sempre seria mutilada para perceber.

 _ Onde você disse que está Edgar mesmo?_ ele perguntou.

 _ Ele está viajando para recolher assinaturas em alguns processos de aposentadoria. Tem que cobrir várias aldeias que não chegam a ter cinco mil habitantes. Você sabe como é, todos aqueles doces casais de senhorzinhos dependendo da ação do escritório o mais imediatamente possível para terem do que viver.

  Aquela era a diferença entre os dois. Se ele tivesse gasto seu tutano de devorador de livros com aquela frase o tom seria outro, cheio de sarcasmo e crítica à extorsão da advocacia. Mas tendo sido dito por Tina, representava um retrato absolutamente oposto, com um humor fremindo de uma leve tensão que no final se resolvia pela descrição carinhosa de “senhorzinhos”. Havia o reflexo da rançosa ternura filistina das revistas adolescentes da cesta no chão.

 _ Bom..._ ele espaçou as mãos como se fosse brincar de cama de gato, sem ter o que dizer. Se fosse falar as cansativas coisas que lhe vinham à mente seria uma vaidade fútil, mostrar acidez para uma mulher que já estava derrotada.

 A porta se abriu e Victor entrou, empurrando-a com o corpo como se a garrafa de cerveja média que levava lhe reduzisse a automaticidade. Entregou a cerveja à Esvertina, que a pegou sem agradecer. Havia uma certa intimidade entre os dois, dura, sem necessidade de carinho, que dispensava esses atos sociais. O menino deveria ter algum senso de obrigação que lhe garantia a permanência ali. Não se podia mais chamá-lo de criança, tendo a infância sido excisada dele minuciosamente como uma unha encravada retirada de um organismo que agora tinha a liberdade de exercer sua plena eficiência. Tina passou a cerveja para Anselm, com a naturalidade concisa de algo essencial, como se estivesse lhe entregando um guardanapo para limpar o sangue do nariz. Um dos indicativos do quanto eram irmãos mutuamente desatentos era ela não saber que ele odiava cervejas. Em um programa de perguntas intimas entre candidatos eles fariam uma dupla destinada a uma derrota fatal, quando o apresentador lhes passasse a questionar sobre suas comidas preferidas e seus hobbies favoritos. O que sua irmã gostava mais de fazer nos tempos livres? Ele só conseguiria responder que ficava parada esperando o tempo passar. Mesmo que ela atravessasse dez quilômetros a pé, o fundamento de sua vida era apenas o de esperar o tempo passar.

   Ele não levou a garrafa à boca. Talvez ela assistisse demais a séries da tv patrocinadas por marcas de cerveja, que fazia os personagens tomarem aquela agua choça a cada virada de cena. Quem na vida real tomava aquilo àquela hora? Num gradiente menos responsável pela digestão de tanta sinestesia acumulada, aquilo seria de uma comicidade terna. Mas só havia o cansaço e a desesperança.

 _ Victor, volte para o quarto e fique com Marcos_ ela disse.

O menino demorou alguns segundos, talvez de propósito para marcar que só ia quando lhe desse vontade, e fez o que ela mandou. As coisas talvez fossem bem mais fluídas do que ele imaginava, e tudo não passasse de impressões de sua mente extenuada.

 _ Quando você volta à rotina normal na clínica, Tina?_ ele perguntou sem nenhum interesse.

_ Talvez nunca. Venho fazendo o possível para manter a clínica, mas a taxa de aluguel me parece agora muito grande. Eu venho realugando para uma outra fisioterapeuta e quase não me sobra nada. E olhe para mim.

  Ela estendeu os braços e por um momento algo na linha do corpo dela a fez semelhante à adolescente de outrora, uma certa graça e leveza que se dissipou rapidamente. Anselm acentuou sua curiosidade a olhando detidamente para tentar apreender aquilo, mas os contornos oblongos suscitados pelo excesso de peso destituiu de uma vez a insinuação. Havia um descompasso que não oferecia muita esperança de um dia vir a ser consertado entre aquele corpo carregado de morosidade e o rosto de Tina, que estava chupado, cadavérico. Era como se ele, o rosto, tentasse afirmar algo à marra, de forma violentamente maníaca. Como a presciência de uma verdade que era um ato absurdo atestar nas condições materiais que o apreendiam à frente daquele organismo.

 _ Eu estou dez quilos mais gorda. O Marcos não para de mamar em meu peito, que está deteriorado. Um peito caído e murcho. Meu peito se estendeu de maneira brutal, como se minha pele tivesse virado uma borracha extremamente flexível. Ele não vai voltar para o que era antes, nunca mais. E o mais ridículo é que esse inchaço todo é em vão, pois não produzo leite nem a metade do requerido. Se Marcos fosse um bebê normal a metade já seria muito baixo, mas ele sendo um mastodonte insaciável, a metade é um estado de fome perpétuo. Daí que eu tenho de comprar um leite em pó rico em proteínas e vitaminas, destinado a esses casos, mas cada lata custa o olho da cara. A que eu comprei há três dias está por duas colheres.

  Ela parou de simular o riso que a fazia supor ser um atenuante para a revolta daquelas deliberações todas. À medida que falava, sua voz ia ficando pastosa, seu rosto ia se desfazendo. Ela encolheu os braços e olhava em uma parte do círculo de meia luz que constelava aquele cosmos caseiro que era a escura sala de estar, como se a falta de um alívio cômico àquela prisão fosse de uma crueldade pesada demais.

  Anselm conteve um suspiro, mas foi movido por uma inconformidade insuportável a se inclinar para a frente. Colocou a garrafa por sobre a mesinha de centro, sobre a qual estava um brinquedo de montar pueril_ um campo de férias com árvores de plástico e bonecos de pinguins, algo que se eviscerava de um atestado de bugiganga barata. Olhou aquele brinquedo por um momento, julgando que os significados foram organizados ali com uma feroz intenção de desmotivar, algo que a aleatoriedade se mostrava soberanamente virtuosa em fazer em ambientes como aqueles. Ele teve um daqueles pensamentos incapazes de se verbalizar, fulminantes de realidade, de que a cerveja era a única tentativa de transcendência que Estertina fazia quanto a ele, a única maneira sem sucesso dela em trazer algo de dignidade alheia para aquele seu mundo hermético.

  _ Tina, o que Edgar diz disso tudo? Digo, eu tento não interferir em nada em seus projetos familiares, e quem seria eu para fazer isso. Eu não sou casado e tão pouco tenho filhos. Mas como irmão, como tio, eu talvez tenha a liberdade de perguntar isso. O que Edgar acha disso tudo?

Ela o olhava fixamente, com uma atenção intensa. Ele associava aquele olhar a digressões que ela usava antigamente, quando eram jovens, para ou fugir de um assunto espinhoso ou para contra-atacá-lo. Quando ele executou o primeiro laboratório de suas experiências de opiniões que poderiam dizer a ela, sobre a nova roupagem adulta que ela usava na adolescência, essas palavras eram sempre ásperas. Ásperas a um ponto que chegavam a ser ingênuas, mostrando que ela superdimensionava sua capacidade solitária de lidar com seus namorados. Ela nunca aceitou que ele desse um pitaco sequer, e a primeira frase tinha sido que ele não era pai dela. Isso o abalou, sem saber como se comportar diante pequenos crimes sexuais contra uma moral fantasmagórica que ele mesmo tinha cumprido seu papel biológico etário em cometer, e depois se calou, aliviado. Foi muito fácil. Ele vinha levando os anos que a via crescer, deixando as bonecas e passando para as maquiagens, eliminando automaticamente todo o vestígio de cumplicidade que eles tiveram um dia, pensando como lidaria com isso. Se teria o grau de severidade deslocadamente paterna para usar com aquela menina desassistida na hora certa. E a hora certa chegara e ela resolvera tudo dizendo que ele não tinha nada para se intrometer na vida dela. Ele seguiu seu caminho, prenhe de uma plenitude rara da isenção consentida, da indiferença requisitada. E lá estava aquele olhar de novo, renascido depois de tantas modificações em que ele nunca mais fora reclamado, colocado no rosto dela como uma peça de quebra cabeça indevida, não encaixável. Suspenso num aparato temático já escoado de toda autenticidade, ele paradoxalmente parecia mendigar o contrário do que havia exigido de liberdade e não intromissão, cheio do saudosismo de um direcionamento afrontoso que agora considerava como uma perda valiosa. Naquele apartamento frio, rescendendo a odores de exsudações corporais de todos os tipos, de roupas não lavadas, da poltrona que tudo indicava aquelas manchas eram de vômito e urina, com as almofadas marrons rasgadas e afundadas em formas eternas de posições de glúteos avolumados e engordurados, naquele silêncio tumular irredimível e absoluto, havia acontecido tudo o que um irmão zeloso da concepção clássica tivera o dever de alertar e empurrá-la mesmo contra sua vontade para o caminho oposto.

  _ Ele trabalha demais, Anselm, e é para nosso bem, o meu e do Marcos e dos dois outros meninos.

  Aí ela desabou. Levou as mãos para o rosto e, na posição em pé em que estava, se pôs a chorar. Por um instante ele ficou imóvel, averiguando se aquilo consistia no que estava evidente que era, se não era uma tramoia não da irmã mas de outros movimentos condicionados que haviam vicejado naquele lugar vicioso como fungos. Alguma sistemática contração do corpo que só se parecia ao choro mas era algo mais solene no sentido de uma segurança postural de não recair em maneirismos sentimentais. O choro foi se alteando, até que o fiapo que era a nascente calma se tornou em uma explosão mucal no centro dos braços dela. Foi aumentando ainda mais até que Esvertina deu um grito e seu corpo tremeu, como se fosse desabar para o lado.

  _ Por favor..., por favor... Anselm...

 Ele se levantou com um movimento lento, comedido. Não saberia como abordar uma figura emblemática como sua irmã naquele estágio em que a via desalojada de tudo que a fazia peculiar. Naquele vão em que se suspendia por um momento todas as compulsões de sua personalidade. Se aproximou dela e colocou uma mão em seu ombro. Isso pareceu explicitamente insuficiente para os dois, a ponto de se não fizesse nada mais veemente, mais caloroso e humano, iria agravar a coisa. Então ele a abraçou e ela deitou a cabeça no ombro dele. Eram ambos altos, a estatura sendo uma característica estética que sempre favorecera ela em seu domínio feminil sobre as circunstâncias do cotidiano, mas ele era dez centímetros mais alto. O topo dos cabelos dela ficaram rente à sua boca e ele sentiu fragmentos brancos das células mortas do couro cabeludo nos lábios. Tinha um cheiro amorfo, em negativo, o nível mais elevado da decantação natural a que podia chegar aquela minuciosa química fisiológica, algo próximo à assepsia. Ele se lembrou das cascas de ferida do joelho dela, quando os dois ainda eram ligados um ao outro, antes que a mãe os tivessem distanciados pelo medo doentio do incesto. De como elas surgiam em decorrência das quedas que a exultação diante a fluidez sem limites da infância e sua pouca apetência técnica com a vida lhe causava. Anselm sentiu no fundo de si algo, não chegava a ser amor, uma condolência de uma ternura em estado primitivo pela irmã. Havia uma quantidade perniciosa de registros memorialísticos sobre ela em sua mente para que ele pudesse considerar apenas aquela garota imaculadamente sem erros que ela fora. No fim daquelas lágrimas, ele sabia que ela voltaria a ser a mesma mulher cheia de reservas e compulsões peculiares com a qual dividia muitas reservas.

     Ele nunca culpara a mãe por essa desconfiança fanatizada, aceitava as ações retaliativas que vinham dela sem cerimônia, como as leis da natureza aceitam sem drama o repúdio e o morticínio. A mãe tinha sofrido muito mais do que qualquer um dos dois, e Estertina estava em um segundo lugar vantajoso. De certa forma elas tinham uma recriminação rancorosa incrustrada numa região oclusa de suas feminilidades por ele ter tido a sorte de nascer homem. Ele cogitara em segredo que essa inveja, essa consciência resignada de que fora deixada em um plano inferior de benefícios pela potestade embriogênica que lhe fizera ter uma fenda entre as pernas e uma porção de hormônios que especificavam o crescimento de glândulas com o pueril objetivo de atrair o macho incubador ególatra, tinha revertido nela em uma condição homossexual. O excesso de ódio que ela sentira por aqueles dois namorados, a exultação que ela sentia ao ver que tinha o poder de fazê-los rastejar e se sujeitarem, que aquelas efusivas protuberâncias, ridículas curvaturas, abjetas umidades atrativas que expediam daquele corpo que ela habitava, poderia ser usadas como armas, evidenciava que ela assumira um projeto esotérico vingativo.

  _ Lembra da mamãe dizendo que a infância é o laboratório de todas as doenças, e que é por causa disso que as crianças passam tanto tempo febris? É o corpo depurando as mazelas, incubando em si mesmo os vírus e bactérias para criar uma memória imunológica. É bom olharmos a doença de Marcos com calma_ ele disse.

 _ É que é tudo muito difícil. Se pelo menos Marcos voltasse a ser o monstrinho sugador que costumava ser. Ele não está se alimentando desde dois dias atrás.

_ Talvez seja a economia natural do corpo, Tina.

_ Eu fico pensando nisso. Ele treme de febre mas há algo nele que não é de todo debilitante. Me vem à cabeça exemplos extremos, que são inconvenientes usar. Como de prisioneiros. Um homem famélico em um campo de concentração. E observo se Marcos está adquirindo aquela aparência mumificada.

_ E o que você acha?

_ Talvez seja minha visão de mãe, mas ele não está de todo mal.

_ Quando Marta virá para te ajudar a leva-lo ao hospital?

_ Ela veio aqui em casa mais cedo. Está de licença desemprego e marcamos de ir após o almoço. Ela já trabalhou na faxina do pronto socorro e sabe que a parta da tarde é menos movimentada. Ela diz que as pessoas não imaginam o quanto que existem doentes sofrendo nas madrugadas, o que resulta em internações urgentes pela manhã.

  Ela já tinha se afastado dele à medida que falava, de modo que pareceu a ambos natural. Por estranho que parecesse, não ficara nenhuma sensação de embaraço neles, como se o gesto abrupto de carinho fosse sublimado pela manifestação maior do choro. O rosto dela ficou iluminado pela lâmina das lágrimas. À medida que ia se evaporando ou sendo reabsorvida pela pele, um rubor se firmava junto à sombra da sala e as marcas da idade retornavam com uma fidelidade tranquila. Ela era dessas pessoas que não choram sozinhas, que o choro é associado em suas convicções a uma explosão catártica que necessitada a ter alguém como testemunha. Tinha servido para deixa-la inequivocamente mais tranquila.

 _ Você quer vê-lo?

  Se deixou levar pela repentina surpresa de que poderia muito bem prescindir de ver o sobrinho, que fazia parte da sua tenaz economia de sentimentos não se submeter a isso. Concordou em silêncio e ela se virou e seguiu pelo corredor. Como ela havia se desabafado_ aquela pobre consumação de dias e noites de desespero, que se agrupava também à sua política de baixas expectativas_, até o seu andar era novo, podendo ser definido como mais centrado. Com um movimento do pé, ela afastou para o canto o brinquedo no qual havia tropeçado. Andava de seu jeito largado, que a Anselm sempre era um traço marcante de sua personalidade, um tanto masculino. Um jeito de andar que nunca trabalhava no realçamento de seus glúteos bem torneados e sua cintura fina na juventude.

   Ela abriu a porta com delicadeza, para não acordar o menino. Ele entrou, com a sensação herdada de um senso comum inercial de que um quarto de criança, no mais vestigial e distante que seja, sempre exala uma áurea de pureza, de exclusividade indômita. Por mais que os objetos de cena sejam pobres, a pintura desgastada do berço, a pequenez opressiva das dimensões, a impressão de obsolescência dos brinquedos resgatados do baú de antigas infâncias, sempre havia uma afirmação incognoscível, impossível de exprimir, de soberania. Como se a criança ocupando o centro dessa terrenidade pesadamente intrascendente tivesse sempre o sinal distintivo do poder emanante do reino de onde provinha.

  Viu Marcos deitado de bruços, a cabeça voltada por sobre o travesseiro fino. Uma chupeta que pareceu de tamanho desproporcional estava bem fixa à boca, insinuando que fora parte do exercício de certa forma violento empregado para fazê-lo de abstrair-se da vigília. Usava um macacão todo fechado, que envolvia os pés como se fosse uma espécie de inteiriça armadura de algodão típica, que veio à cabeça de Anselm automaticamente o nome estranho, body. Uma dessas peças do vestiário infantil que para alguém estranho ao meio soavam como os nomes que os torturados medievais davam para seus utensílios artesanais. No silêncio do quarto, se notava aos poucos, como uma leve deflação de luz que exige que as vistas se acondicionem para ser perceptível, o rumorejar da respiração dele, um contínuo índice tonal de uma curta nota espichada de exploração a regiões profundas, um sonar trabalhando em volume baixo.

  Um traço de preocupação passou por Esvertina, que saiu de sua imobilidade contemplativa para tocar o bebê na testa. Por um instante de pausa que tinha tanta intensidade quanto um pássaro avaliando as contrainformações invocadas pelo seu pio, ela estudou a temperatura do filho, passando por estágios de ponderação progressivos. Retirou a mão com um alívio confiante, ainda com a cabeça inclinada para a frente como uma especialista.

  _ Ele está crescendo!_ ele falou, apostando que dentro de qualquer lógica não era uma observação que lhe desmentia.

 _ Foi uma noite terrível, das piores que passei.

   Ela alisou os antebraços com as mãos cruzadas e pareceu se criticar por ter recaído naquela lamúria. Era mais uma acusação por isso se voltar contra uma obrigação de agradecimento supersticioso de sua parte do que a consciência de não se mostrar tão pessimista a Anselm.

_ Mas graças a Deus ele está melhorando_ se corrigiu.

  Anselm pensou que poderia aceitar aquela técnica da mente tão comum à formação católica da irmã em se amparar a escapes esotéricos. Viver naquele apartamento desculpava qualquer amortecimento racional como aquele, e tornava até uma exigência sanitária.

 _ Pode me chamar quando quiser, pode ligar para o jornal à tarde, eu estarei lá.

 Ela o acompanhou até a porta. Passando em frente ao outro quarto, ele viu Victor sentado em uma poltrona diante um abajur, mexendo no celular. Estava jogando, num momento raro de flagra dos restos de sua infância. Na cama de casal ao lado, envolto em cobertores, estava o outro filho de Edgar, o mais novo, Filipe. Anselm não pode ver seu rosto, mas distinguiu o peito envolto em uma camisa que mesmo as sombras se percebia ser de um time de futebol. Edgar tinha o sintoma clássico do pai ausente em querer ludibriar a falta de experiências reais da paternidade com seus rituais fetichistas mais comuns. O máximo que deveria dividir com os filhos daquela exultação falangista da batalha contra o time adversário no campo seria os comentários pós-jogo, cada um tendo assistido em separado. Lembrou que Esvertina lhe contara certa vez que ele tinha comprado varas de pescas que nunca tinha usado realmente com os meninos. Anselm se perguntava se de alguma maneira isso se revertia positivamente como um dos atributos de caráter que fazia um bom advogado, o que então a situação teria suas compensações.

  _ O Filipe está doente também?_ ele perguntou.

  Ela ficou surpresa com a pergunta. O tom mais claro, um grau acima, que usara para responder, mostrava que aquilo, os outros meninos, eram apenas o mobiliário inevitável de uma zona menor de sua atenção.

 _ Ah, sim. Eu pedi que eles arranjassem o que fazer no térreo do prédio, para não se envolverem tanto com o clima carregado que estava, e eles voltaram muito cansados. Eles tem grupos de futebol ou o que seja com os outros garotos do bairro.

  Era o tom que usava para desfazer-se rapidamente de alguma pergunta retórica, o que se percebia nuances de uma irritação sublimada ao fundo.

  Ele se virou no corredor para ela, para se despedir. Esses momentos sempre eram desconcertantes, por mais que os dois tivessem crescido e com isso estarem aptos a desconsiderarem o constrangimento reminiscente desses atos. Anselm se sentia em desvantagem, pois a irmã tinha o tino prático que a fazia bem sucedida em comunicados simpáticos com empregados da limpeza e bilhetes de geladeira. Já ele ou era insuficiente ou tendente a uma exagero autodenunciador. Não iriam voltar a se abraçarem, se aquilo havia mesmo sido um abraço, e então ele ergueu a mão e deu um tchau deslocado. Era o mínimo ridículo que sua contenção poderia fazer, e ela respondeu com um balançar de cabeça.

 _ Volte a dormir.

  

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Catástase

 


Eu sempre fui um metafísico. Minha mãe me disse no princípio: "Deus existe, deixe de ser bobo". Vendo o mundo destruído e já indo para a falta de eufemismos consoladores, essa foi a melhor herança. E o pai nosso, que virou um mantra no silêncio amplo do quarto escuro. Não vejo recursos terrenos, mas rezar me restitui algo inverbalizável. No fundo, e na superfície, toda minha ânsia por cultura é a ânsia pelo significado. Eu acho todo livro tolo demais. Alguma nuance do não dito deve ter, e por isso os anos gastos destrinchando por milhares de páginas a busca de uma palavra. Meu filho na praça foi chamado por um garotinho que vive lá à solta para lhe acompanhar no celular. Meu filho se levantou sem entender e deixou o menino, e foi cuidar dos seus afazeres majestosos com galhos e bugigangas. Eu não me arrependo de ter meus filhos. Seria como me arrepender do ar. O que concebo, em segredo, é a opção de ter mudado de ideia se hoje fosse cogitar ser pai. Esse é o mundo, essa é a franca estupidez, essa é a opacidade a que chegamos. Eu sinto muita vergonha de mim quando vejo meu filho brincando. Vergonha por me condoer de tanta esperança nele. Eu ter a audácia de suspeitar que ele é que está errado mostra o quanto eu mesmo me rendi. E eu volto à minha mãe, que sempre teve esperança, mesmo em seu último suspiro, a esperança plena. E ela me revelou que Deus existe. E eu, por ser filho, por ser parte ineludível e indissociável de sua carne, aceitei sem questionar. Que fim terrível eu teria tido se ela fosse maculada pelo academicismo e pela sofisticação intelectual, e me tivesse retirado deus. Eu não teria parado de beber. Eu teria ensinado meu filho a seguir o garoto com seu celular. Quem sabe os dois infantes sozinhos na praça, abandonados até a hora do jantar. Nesse mundo, o que resta? Duas formas de loucura, e me foi dada a mais insensata.

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Conhecer uma mulher



Sua mãe havia sido uma defensora pública. Quando morreu, foram prestadas homenagem a ela pelo estado. Escritórios de advocatícia mandaram coroas de flores com os sobrenomes dos sócios escritos. Olhando-a no caixão, o rosto maquiado para atenuar o inchaço dos antiflamatórios, não era para qualquer um a insinuação do quanto foram inglórios seus últimos anos de vida. O seu segundo marido, César, o pai de Esvertina, havia requisitado uma perícia médica para suas atitudes estranhas. De modos que enquanto vasculharam em todos os setores da sua vida, ela mesma se rendeu. Diante César, aceitou que algo não estava bem. Sua forma de ser desrespeitosa com os clientes, que gerara um processo de maus tratos por uma viúva, suas birras, até mesmo seu modo de suspirar acintosamente mostrando sua incompatibilidade com os colegas, só poderiam ser uma afecção mental. Anselm tinha certeza que não era preciso ir muito fundo para saber que ela mentia. Mas por mais que tentasse achar uma lógica, o arranjo de colocá-la em um manicômio não se coadunava com uma reviravolta em que ela pudesse sair vitoriosa. A única explicação é que quando ela era uma simples advogada, ganhando três vezes menos, ela se sentia autorizada a aprontar seus pequenos teatrinhos, a erguer a estrutura piedosa de seus escândalos. Os outros advogados apenas a olhavam, com o nível de assombro despencando a cada renovada encenação, e deixavam para lá. Queriam saber de seus salários e voltarem para suas famílias. E talvez a questão fosse essa. Para qual família a mãe deles iria voltar? Não era questão do abandono parental que ela havia sofrido desde muito pequena, mas os indícios mostravam que ela não tinha sorte nesse quesito. Esvertina era uma adolescente rebelde, com a cabeça cheia de nada. A mãe encontrara anotações em uma agenda sobre dois abortos feitos em uma clínica clandestina. E ele mesmo, o que havia oferecido a ela? O álibi de uma omissão diante as tentações da juventude não se sustentava quando se considerava que de uma forma ainda pior ele abalara o coração da mãe. Ao menos haviam momentos em que as duas se desarmavam, um hormônio de harmonização feminina escorria dentro delas, mas quanto a ele, era só silêncio e uma opressiva solidão. Uma vez fizera a mãe gritar do nada, um grito animal, cheio do fermento do câncer que deveria já estar iniciando nela anos antecipados.

  A mãe nunca gostara dele e nunca disfarçara isso. Quando Cesar percebeu esse fato político no cerne da família, os dois conversaram. Era um homem que na época lhe parecera gigante_ Anselm tinha 17 anos_,  lhe dizendo que ele era um peso demais para a mãe. “Valéria não merece nessa instância da vida sustentar um filho já entrando na idade de sair de casa”, ele disse. Cesar tinha os olhos azuis, o rosto balofo, os braços recurvos e grossos evidenciando uma dinastia de embuchadores médio europeus cuja genética procurava ansiosa por pragmáticos melhoramentos cerebrais sem abrir mão de seu caráter étnico de vassalagem a raças imperiais dominantes. Sempre arvorava que seus pais eram descendentes diretos de alemães, aqueles caipiras obtusos com a  impressão sagrada de superioridade como se fossem os detentores de uma imagem santa achada num ribeirinho. Cultivavam palavras pequenas, consonantais, que defendiam ser denominações usadas por defloradores de olhares bonachões em idílicas aldeias cheias de vacas leiteiras. Era uma atração poderosa essa que sua mãe sentia por homens caricaturescos. O pai de Anselm era um protótipo do estancieiro moreno elegantemente selvagem. Anselm respondeu que precisava de um tempo, que assim que entrasse na faculdade iria dar o fora. Não pensava que ele lhe repassava uma sugestão da mãe, achava que ela conservava alguma reserva de calor que não lhe permitia aquilo. Mas Cesar aceitou, de forma mesmo considerável. Perguntou que curso ele se preparava para entrar, se fosse medicina os anos de espera por um aprovação no vestibular poderiam ser estendidos indevidamente, o que não seria o mais certo a fazer com a Valéria. Anselm disse que faria história, o que não se exigia muito para passar. E assim fora. No final do ano ele obteve uma nota média para ser aceito pela federal, e no meio do semestre seguinte arranjou emprego em uma distribuidora de bebidas, Foi morar em uma quarto em frente à praça universitária. O que para muitos seria um ritual de passagem traumático, para ele era um grande impulsor de felicidade. Na primeira semana ele se deitava no chão, colocando dois livros pegos com seu cartão de biblioteca como escoro da cabeça, e tinha sonhos esfuziantes. Nos finais de semana, que não tinha para onde ir, ele ficava ali, olhando os losangos impraticáveis que a luz vinda pelo canto da janela brincava ser possível no teto, pelo menos naquele seu reduto onde o absurdo era uma cláusula contratual que fizera com a sua divindade. Foi um prosseguimento para um nível de alta proficiência de sua paz interna, que sempre lhe havia acompanhado, e que agora ele tinha suficientes motivos para saber que era o componente mais poderoso de seu caráter. Nos primeiros meses a mãe seguia uma cartilha de emancipação progressiva, ligando para o telefone fixo do corredor entre os quartos, falando com uma voz forçadamente chorosa que ele tinha que voltar “para sua casa”. Uma vez recebera uma cesta de bolachas. Encaixado como um gesto de humor incompreensível entre os pacotes havia um pênis de chocolate em volta de uma camisa de um time de futebol. Dera as bolachas para a faxineira que vinha limpar os corredores toda semana e o chocolate ele comera, mordendo a cabeça tão empreendedoramente exagerada para parecer obscena que no final parecia um elmo de história em quadrinhos. Um legionário romano de Asterix que despejou uma gosma de leite condensado demasiadamente doce em sua língua. Por final ela parou de ligar, e ficaram sem contatos por dois anos. Foram anos de uma liberdade que ele achara de uma plenitude meritória para ter-se atrasado tanto em obtê-la. De certa forma deveria agradecer a César, por aquele ultimato viril, que um garoto desprovido da figura autoritária de um pai precisaria ter para ativar sua testosterona adormecida pela inércia doentia do tom materno.

   Mas voltando à mãe, quando então surgiu a oportunidade dela pegar a vaga recém criada de defensora pública, oferecida a ela por ela ser a mais velha da sala de advogados, ela aceitou. Não parecia em nada uma vantagem, pois teria que tratar com os seres mais degradados da esfera criminal e os acréscimos salariais que distinguiriam a nobreza da função não era uma expectativa certa. O governador sobre o qual caiu a obrigação judicial de montar a defensoria era um notório corrupto envolvido com as máfias de licitações mais perigosas do estado, de forma que todos sabiam que era uma furada. Seus colegas, os mesmos que fugiam de seus chiliques e fúrias intermitentes, consideraram que seria uma boa compensação cósmica ela quebrar a cara dessa maneira didática, e não lhe aconselharam sobre o que parecia o cumprimento de um carma evidente. Mas aconteceu algo inesperado. Em dois anos ela foi efetivada como primeira defensora pública do estado, com o estado abrindo concurso público e formalizando toda a ortodoxia do cargo. Em um mês sua mãe se tornou tão distinta quanto juízes, e o termo “doutora”, normalmente usado para ela com um leve tom de desprezo crítico, passou a ser uma nomenclatura cheia do temor sagrado que se tem diante um alto representante da corte. Seus colegas ficaram em uma pane conjunta em que repetiram em um quadro epidêmico circunscrito as caras de incredulidade ofendida. A louca iria ganhar três vezes mais que eles, mais os penduricalhos que vem com abonos salariais e horas extras. Esvertina contara a Anselm que quando a mãe, já vestida com um terno feminino com corte especial feito em uma alfaiataria de magnatas jurídicos, fora até sua antiga sala pegar seus pertences, seus cinco ou seis companheiros de anos de regime concêntrico ficaram estacados, como se uma esfinge improvável estivesse andando em fulgor lumínico entre eles. Calados, olhavam-na com o estarrecimento que no mais profundo âmago de suas memórias remetia a seres condenados à subserviência daquela geografia. A certeza da vitória da tolice espalhafatosa sobre a impressão de seus grandes e indescobertos méritos próprios diluída no sorrisinho de ódio aquiescente. E sua mãe se despedira deles usando um tom inédito de comedimento, um comedimento irritante, que deveria destruí-los continuamente toda noite diante a pobre mesa de jantar, o comedimento que era o propulsor das brigas com suas esposas e maridos, que levara eles a serem paus no cu nos trânsitos. Falara com uma voz na qual surgira do nada, de regiões ignotas do caráter, uma doçura de aristocrata falando com seus serviçais. Esvertina ria alto ao contar que a mãe passara de mesa em mesa dando-lhes um abraço, para o qual aqueles seres profundamente derrotados tinham que se levantar, cônscios de suas silhuetas paquidérmicas sedentárias, obrigando-os a emularem o mesmo tom um nível só acima do falsete descarado. Anselm se compadeceu daqueles seres, sentiu uma comunhão profunda com eles. Sentiu que era uma injustiça descomunal, inumana, que o destino fazia com eles, e tanto era mais dolorosa por ter sido uma chance extraordinária oferecida a todos e que eles abriram mão por suspeita de que só uma tola estúpida teria caído nela. E naquela altura de suas carreiras, um enredo de suspense compensatório e de redenção do patinho feio feito de maneira tão inesperadamente tardia, era de deixar qualquer um enlouquecido. Aqueles seres haviam sofrido de maneira sem igual o horror que era viver com alguém como sua mãe que nem ele e nem Esvertina haviam experimentado.

  Mas a história, obviamente, não havia acabado aí. Houve uma continuação. Houve espaço para um segundo volume das  aventuras extraordinárias de Valéria Dulabonde, seu “Vinte anos depois”, após suas proezas sem igual de Dartagnan eleita de forma gloriosamente bastarda para fazer parte da comitiva do rei. Anselm reconhecia os traços da comédia que a mãe estava acostumada a infligir quando era mais uma do rebanho apascentado do baixo funcionarismo público, acrescido da novidade do que ela jamais intuíra dos tons sombrios de tragédia quando ascendeu-se para sua posição de patinho feio. Se tivesse sido inteligente o suficiente para se acomodar a essa imagem, se tivesse lido algum manual de conduta do guerreiro da luz ou do sábio conselheiro bélico dos tempos do Japão imperial, que aliás não era uma literatura estranha para a classe de jovens defensores públicos que se atribuíam uma predestinação celestial por terem passado no concurso, estes teriam a visto como uma excentricidade obsoleta mas tolerável. Teriam mesmo uma reverência típica a que se destina a uma mascote levemente cômica por sua doidivanice semiletrada. Veriam o seu descompasso de instrução técnica e seus momentos em que trancava os músculos do pescoço ao lado de seus clientes, não conseguindo soltar a voz, de frente às altas cortes, como algo de certa forma natural que aquele estado da federação que tinha muitos atributos das atrasadas leis da metade do século XX lhes colocava pelo caminho da modernidade. Era um empecilho que, olhando da posição correta do alto de seus narizes esnobes (que uma dia a mãe chorou de angústia ressaltando para Anselm como eles eram prepotentes e esnobes!), era algo que até devotava o mérito às suas capacidades éticas de convivência com a obsolescência a ser varrida. Sua mãe lhe dizia sobre o que eles sussurravam nas primeiras semanas pelas suas costas, sobre sua idade, sobre sua tartamudez, sobre sua ignorância à princípios básicos das leis, até mesmo sobre seu modo excessivamente plebeu de conversar. Na festa de confraternização de fim de ano, a defensora pública colega dela que saiu com o seu nome no amigo secreto, no ato de descrição antes que o nome seja anunciado típico dessas brincadeiras_ em que os demais tem que decifrar e anunciar em voz alta assim que todos os aspectos do retrato estejam suficientemente pintados_, descreveu sua mãe com termos incisivos a tal ponto que a simpatia subjacente ao humor foi destruído na maneira como todos riam com uma chacota sarcástica. A moça falara coisas como “meu amigo um tanto tontinho”, no momento inicial onde não tinha limitado a questão para o gênero feminino, ao que, depois, usou termos de uma prolixidade tal que a mãe disse que lhe doíam mais por saber que ela exagerava o efeito da bebida para justificar sua falta de reservas. “Minha amiga confunde mandado de injunção com mandado de busca e  apreensão”, e no final, quando já estava claro há muito com quem ela saíra, quem entre todos aqueles distintos profissionais com taças na mão e o riso eximido de freios civilizados para a crueldade era a única que cabia dentro da descrição jocosa, a colega de sua mãe deu a estocada genial, o passo de esgrima covarde sobre a adversária já caída no chão que ficaria na memorial glorioso da categoria a ser lembrado para sempre. Ela disse: “minha amiga vem com roupas tão exuberantes e vitorianas que muitas vezes parece a rainha mãe de uma corte de Maria Joaquina”. E todos gritaram: “Valéria Dulabonde!”. Com os sorrisos lupinos incendiados da juventude de peles com a resplandecente camada subcutânea de gordura dos bem nascidos, dos que nunca sofreram na vida, dos que tinham todo o tempo do mundo para se enfiarem debaixo dos cobertores em suas camas continentais e estudarem dezoito horas por dia para o concurso. Enquanto sua mãe, que se formara em direito com muito custo quando Anselm era ainda criança, trabalhando meio período como escriturária em um cartório, em uma universidade de quinta categoria, teve que traçar seu caminho para a investidura no cargo pelas portas do fundo. Ela se levantou, encolhida de ódio e vergonha, e foi até o núcleo das mesas onde a moça estava com os braços estendidos e com uma expressão cênica simulando ternura para com aquela espécime de serviçal estrangeira de baixo nível que algum erro piedoso do estado instalara entre eles, os vencedores, os cultos, os poderosos e endinheirados. A moça era alta, de uma beleza protocolar fria que em outras circunstancias a mãe dissera a Anselm que nem seria vista na multidão, com suas bochechas demasiado infladas disfarçadas pela diminuição de peso que a função lhe fizera se impor com uma dieta, o corpo silhuetal metamorfoseado em fêmea sexualmente seletiva que despertava o perigo congratulatório nos homens em serem destruídos por aquela comunhão de mulher e divindade sob a qual recaía a decisão na balança de várias vidas e vários destinos. Ela lhe entregara o pacote floreado com um laço dourado caro, dando no rosto da mãe o toque sutil de face com face em que simulava um beijo de intimidade, e todos riam e transformavam os gestos em suas caras progressivamente em elegantes contrações contidas de asco e incredulidade. Tinham a ciência exata de aspergirem as quantidades certas de emoções de repúdio e solércia nas sinapses daquelas fibras nervosas ultracalibradas de seus músculos faciais. Tudo em nome da sofisticação de seus nomes de doutores, a mãe disse a Anselm. Ela não era nada tola, ao contrário do que eles achavam. Ela aliás tinha um jogo de cintura de descobrir a melhor solução para casos complicados de defesa que os livros não cobriam, mas sua experiência de trinta anos como auxiliar de promotoria sim. E esses mesmos colegas tinham o distanciamento de admitirem isso, se não fosse a soberba faraônica que cresciam dentro deles pela fusão nada autoelucidatória de hormônios da juventude e ego exacerbado. Quando sua mãe abrira o presente, na frente de todos, caiu-lhe no colo uma blusa branca de mangas compridas, ofensivamente amorfa, que não adiantava um espírito de boa vontade procurar nos mais estapafúrdios catálogos de moda que não encontraria um nicho social que a visse de outra maneira que não uma camisa de força. Nisso ninguém riu, como se todos tivessem combinado que a mensagem seria melhor difundida se impusessem caras sérias, averiguativas, como se fizessem uma metalinguagem para aumentar o efeito catártico de um humor elevado, como os grandes humoristas fazem ao conseguirem contar uma piada extremamente engraçada sem contraírem uma ruga de riso de suas bocas desproporcionalmente severas.

  “Uma camisa de força, Anselm”, a mãe lhe dissera, em uma tarde em que estavam no apartamento dela, ele, Helena, Esvertina, Luiz e os dois filhos do Luiz. Era aniversário de 65 anos dela, e ela lhe mostrara a peça ganha no amigo secreto, a retirando de um plástico barato, que Anselm não soube se era um envoltório que a mãe substituíra o original para dar maior figuração à crueza da ofensa, ou se a roupa é que era absurdo o suficiente para retirar qualquer possibilidade de atenuantes. A mãe a desdobrara, estendendo uma manga em comprido pelo forro da cama e logo em seguida a outra, como se estivesse desembrulhando um componente de alguma formulação culinária secreta e mágica, ao que seria até mesmo lógico que no centro do pano branco levemente já encardido houvesse uma caixinha enferrujada, contendo um pedaço de noz moscada. Eles não podiam ter feito isso com ela, Anselm se lembrou de ter pensado. Aquilo era mesmo uma camisa de força. Eles tinham tripudiado de maneira violenta para cima de sua mãe. Cesar apareceu no quarto, olhou para a roupa na cama com os olhos cheios de seu treinado poder de achar uma síntese libertadora para tudo, e riu, dizendo que tinha sido uma ótima piada. “Para uma advogada com altos índices de fiança conquistada para seus clientes, era uma boa metáfora associá-la à uma louca”, ele disse.

   Anselm admirara tamanha capacidade de inventar uma metafísica para atos materialmente mesquinhos por parte de César. Era óbvio que os colegas da mãe não estavam querendo dizer isso, não era mesmo um elogio. Mas não fazia mais parte de sua vida. Ele desceu os olhos para onde estava a mãe, sentada, e viu com a nitidez exclusiva dos filhos, que só o embrião reformulado e desenvolvido dentro das esferas biológicas de um progênie masculino seria capaz, que ela sofria, que ela sorria procurando seguir a solução civilizada do marido mas cujo sorriso não conseguia mais conter tanto inferno que havia dentro dela. Naquele instante Anselm soube que teria notícias sobre o que ela vinha fazendo naquele meio de abastados, pois era inevitável que o ambiente não havia favorecido nenhuma possível tentativa de mudança, de calma transfiguração, que ela tivesse se disciplinado a realizar. Anselm teve a nítida certeza de que ela havia aprontado das suas, que as loucuras que fazia entre os vira-latas encardidos iguais a ela no antigo gabinete da promotoria onde ela era tolerada por uma comunhão motivada pela economia de energia, haviam se promulgadas naquele olimpo judicial.

   As duas notícias ruins tinham vindo juntas. Foi na mesma semana que Helena perdeu espontaneamente o bebê que Esvertina lhe ligara dizendo que Valéria havia solicitado oficialmente tratamento psiquiátrico. Tinha-se passado seis meses do aniversário da mãe, quando ela lhe contara sobre a “camisa de força”, e Anselm teve a impressão de que o roteirista que estava escrevendo aqueles enredos secundários de sua vida havia acionado um ponto morto no quesito imaginação. Parecia uma trama de algum romancista francês oitocentistas que bebesse de forma enviesada influências das reviravoltas balzaquianas, colocando rimas pobres de eventos narrativos. Falar de camisa de força e logo em seguida ser enredado por uma era uma solução bastante preguiçosa. Anselm jamais esperava que sua mãe estivesse de alguma forma associada a doenças mentais, o que analisando posteriormente era quase uma ingenuidade seletiva do modo como ele a enxergava. Ele apostava que era um estratagema de sua mãe, aquela astuciosa atriz que usava com tremenda eficiência as instâncias mais piedosas de seu papel de coitadinha intelectualmente limitada. Lembrava de um filme em que Al Pacino, encenando Satanás, vaticinava que os verdadeiros detentores do poder requerem para si os disfarces de aleijados. Ele mesmo, o Pacino-diabo, entortando seu frágil corpo pequeno todo para um lado, para assim exercer sua maldade na invisibilidade que o manquejamento lhe outorgava ao sair do metrô. E era com essa mesma paleta manipuladora que a mãe se materializava para o mundo. Mas depois Anselm pôs-se a finalmente limpar sua visão para ver com lucidez sua mãe. Quando Esvertina lhe contara, pelo telefone, que Cesar havia internado Valéria sob a concordância dela em uma clínica psiquiátrica cara, ele estava em volta com a conclusão da outra ponta da tragédia, em que Helena estava passando por uma curetagem em um hospital público.

    Enquanto a mãe era colocada em um quarto privado, com ar condicionado, com cortinas beges que adensavam a textura da sombra envolvente de maneira rumorejante e confortável, com um aparato de especialistas e enfermeiras para lhe atender, Helena fora se livrar dos tantos vestígios que o feto lhe deixara ao escapulir de seu útero na ala de enfermaria do Hospital Municipal. Enfiaram-lhe espátulas de aço galvanizado pela vagina e o giraram de um lado para o outro, enquanto uma cânula de plástico sugava o material biológico que o menino desprendera em seu ato de fuga da existência: natas de sangue coagulados, tecidos amnióticos, grumos de células de um vermelho denso que não parecia de natureza humana, ao mesmo tempo que diante o olhar espantado de Helena eram as coisas mais profundamente humanas que ela já vira por virem com um traço de podridão inerente que mostrava algo do destino final daquilo tudo, de toda a carne e da vida. Era evidente que quando Helena lhe descrevera essas coisas, em uma carta que lhe enviara seis meses depois que o relacionamento deles acabara de vez, ela estava sob o direcionamento de uma depressão profunda, não se poupando desses termos niilistas. Um filho nunca fizera parte dos programas dos dois, mas em um moto contínum para salvarem a união eles passaram a desconsiderar os métodos profiláticos de impedir uma gravidez. Helena tinha o costume de brincar que Anselm era a última esperança num cronograma de relacionamentos terríveis de ter um casamento. Ele não deixava essas indiretas disfarçadas de leveza escoarem pelo ralo dos ouvidos e concebia em seu profundo inconsciente os arranjos para que aquela mulher tão destruída pelo restolho de homens ignóbeis e estúpidos não saísse de mãos abanando. Helena era deslumbrante de linda. Tinha olhos azuis esotéricos, era impossível se olhar para eles sem sentir um afluxo de correntes elétricas metafisicas atravessando o corpo. Era alta, morena, magra como uma guerreira egípcia, o que a fantasiação dessa figura absurda compensava pela sua inexistência histórica, pelo que tinha de correção pelo poder do verbo. Se alguma vez uma guerreira feminina egípcia tivesse existido, seria esplêndida de elevados atributos físicos manifestados nela. Não era uma mulher difícil de se sentir elogiado por ela trapacear em um jogo de conivência mútua para se engravidar dele. Que ariana de pele oliva, saída das fontes vigorosas do princípio da genética, haveria de querer levar no ventre senão de um homem que tivesse passado por algum critério de escolha? Ela encenava uma peça de Pinter no teatro, fazendo o papel de uma estoica social superior, com aquela impiedade implacável e santificadamente violenta típicas de Pinter, e vê-la no palco havia debilitado toda concepção estrutural da paixão de Anselm. Ele passara a ir assisti-la todas as noites de sexta e sábado, chegando mais cedo para se sentar na fileira da frente. Sua rendição a toda salvaguarda diante aquela cada vez mais clara armadilha do desejo que ele estava construindo para si atingia níveis tão sérios que ele delirava ao pensar que sentia as gotas de saliva caindo-lhe no rosto, cada vez que a personagem passava numa contenção de fúria a poucos centímetros dele. Apresentou-se ao diretor da peça, um sujeito tão arquetípico em sua fremência dispersa em não conseguir prestar atenção em nada por mais de poucos segundos que de longe qualquer um poderia sentir sua áurea de visionário anarquista imune ao envelhecimento, alegando que estava escrevendo um texto para seu jornal sobre feminismo libertário e crime. O sujeito não se entusiasmou nem um pouco pela eficiência promovedora que um jornal inexpressivo do qual ele nunca tinha ouvido falar teria para a peça, e nem essa tinha sido a impressão pretendida por Anselm, mas deixou que ele entrasse no camarim quando a encenação terminara para entrevistar a artista principal. Anselm então pode ver Helena pela primeira vez, desfeita da encarnação de frieza maquinal repetitiva cujas frases lacônicas ele já estava por decorar de tanto as ouvir em sua posição próxima ao palco, com os cabelos curtos se mostrando surpreendentemente enevolados e crespos sem os aparatos da personagem, e falando com os funcionários do teatro com tanta desenvoltura que por um momento acreditou que era uma espécie de mediunidade dessas em que o agente físico costuma ser escolhido pelo espíritos por ser o mais simplório possível, como se o fator de baixa sofisticação do hospedeiro fosse determinante para não macular a pureza do transe. Ela ria alto, em uma voz surpreendentemente masculinizada, e usava expressões debochadas que revelavam uma consciência exacerbada de sua sexualidade franca, não policiada, não competitiva. Talvez por Anselm estar no extremo oposto dessa consciência, vendo-a com o poder do fetiche renascido por uma mulher que faziam anos que ele se achava imune de retornar a sentir, que ele achou aquilo desamparadamente ofensivo, como se essa espontaneidade fluídica estivesse dizendo que ele não tinha nenhuma chance de vir a ser visto da maneira como desejaria por ela, que ela não iria voltar a se armar dos arsenais do antigo jogo entre macho e fêmea apenas por causa dele, armas que ela havia deliberadamente desprovida do uso por uma série de experiências elucidativas quanto à estultice dessas tolas dispostas e dessas abjetas danças de acasalamento.

    Não foi uma boa conversa. Pinter não fazia parte de suas leituras preferidas, o que ele lamentou pelas tantas opções que poderiam ter surgido para conduzir aquela atmosfera ilibada para alguma zona filosófica suburbana que lhe desse as diretrizes de como adentrar aquela muralha de prosaísmo. Talvez um memorial de duas leituras bem aplicado tivesse poupado a total impotência de como voltar a se aproximar dela nos próximos dias. Ela foi muito protocolar com ele, respondendo às perguntas com atenta educação. Ele viu que as unhas dos pés dela estavam com restos de antigo esmalte, e lhe impressionou que a cor fosse azul. Talvez fosse uma concordância não destituída de nonsense entre as partes mais equidistantes de seu corpo, os pés e os olhos, ou fosse mais um indício do pouco caso que ela fazia naquela época à etiqueta sexual. Os dedos dos pés logo acima das unhas eram tortos, sofridos, expressando uma rusticidade de árvore de deserto ao mesmo tempo que um utensílio técnico cujo sentido não estivesse imediatamente explícito. Pés pictóricos, vangohgianos. Ela havia posto um vestido de algodão negro, com as alças enlarguecidas pelo uso, mostrando a parte de cima dos seis, que eram concisos, atléticos, de uma maneira atrativamente insípido, como se estivessem restritos a um adendo de somenos importância ao resto suntuoso de beleza do rosto e do corpo. Como alguém como ela estivesse sozinho em um camarote à meia noite, conversando com um estranho jornalista como ele, enquanto umas cinco pessoas, a maioria homens, que fechavam o teatro,  não eram passíveis de serem destruídos pelos seus encantos, é que era um mistério? Sem nenhum pretendente ou noivo ou esposo ou namorado a esperando do lado de fora, com os olhos averiguadores da batalha contra eventuais usurpadores daquele tesouro.

   Encerrando a entrevista, ela se despediu e ambos saíram mudos, um pouco constrangidos, pela porta de trás do teatro, onde o zelador os esperava para trancar a fechadura. Ela não tinha carro e ele se ofereceu para pagar-lhe um taxi, sem antes perguntar onde ela morava. Ela acenou, os olhos pesquisando mais um objeto interior que tinha o destino de permanecer alheio ao mérito de interesse de Anselm. Resultou que a casa dela ficava em um subúrbio próximo ao centro, enquanto o apartamento em que Anselm morava ficava seguindo por uma das vias principais quilômetros abaixo. Ela desceu do carro dizendo um tchau que era a própria metáfora das condições climáticas da noite sem vento, sem frio, amorfa e atonal, uma despedida que não tinha a capacidade de se impregnar do menor grau de dramaticidade que os envolvesse nem distantemente da condição de futuros amantes. Anselm voltou para casa olhando as ruas desertas, as luminárias de um depósito de bebidas gigantesco, a concessionária de carros alemã, catalogando aqueles pontos de fixação que lhe ocuparam a vida inteira sem significado algum e que agora transiam de uma aura metafísica que prometia ceder a alguma espécie de síntese se fossem pressionados.

   Não teve tempo de dar ouvidos à sua voz interna de que estava sendo ridículo. Comprou em uma livraria do centro, que foi na tarde do dia seguinte, dois livros contendo quatro peças de Pinter. Leu-as no mesmo dia, sentindo como se em vez de em celebração com a sinestesia de um autor de percepção superior ele estivesse prolongando em uma realidade alternativa interminável a conversa com ela. Arrancou sorrisos que seu conhecimento cênico sabia só serem possíveis depois que muito decantados por conversas direcionadamente tolas, sorrisos que soavam a voz incomumente barítona para uma mulher tão bela. E então ele voltou à casa dela, de madrugada, e se sentou na esquina, debaixo de um cajueiro mirim cujas frondes tombadas sobre um muro baixo com uma cerca artesanal de ferro o obscurecia, sentindo-se um Cyrano de Bergerac. Não tinha o sonho disparatado de que ela fosse aparecer, apenas queria nutrir aquela redução de maturidade e de razão que aquele sentimento súbito por um mulher o fazia sentir. Talvez tivesse ficado muito tempo na seara do intelecto e o que se passava consigo fosse um mecanismo de compensação psíquico que exigia controle, e ele estava receoso por desconhecer o quanto ele mantinha de áreas confiáveis de si que permitiria frear na hora certa.

   Ele voltou para casa andando a pé. Demorou para que encontrasse os sem tetos, deitados dois quarteirões à frente da concessionárias, sob a marquise de um grande shopping de produtos importados. Subiu para seu apartamento, disposto a esquecer. No elevador, olhou-se no espelho, desprezando a câmera pela qual o sonolento porteiro com cara de capanga menor da Cosa Nostra, com sua afilada mandíbula não confiável, deveria estar lhe olhando, com um deboche satisfeito pelos atributos distintos da baixa classe comunal que aquela moradia barata exsudava. Entrou no apartamento, que ainda estava no espectro etário do desmazelo do final de sua vida de solteiranice, antes que o aprendizado sobre os benefícios da economia da organização sistemática pessoal lhe fosse herdado de seu casamento, e se deitou no colchão fino estendido por sobre o piso liso da sala. Coçou a barba, pensando se não era ela, a barba, que tinha posto tudo a perder, não tendo mais a suficiente ancoragem em seu distanciado auto-escrutínio para ficar imune a esse tipo de conjecturas imaturas. Que se danassem Pinter e suas mulheres impiedosas, partícipes agraciadas da escumalha masculina. Era um poço de atração irresistível, ele pensava, que mexia com todos os entulhos traumáticos e tribais que ele levava dentro do seu torturado coração juvenil. Que ele exortasse de si todo coração juvenil, toda juventude, toda necessidade efervescentemente deleitosa de destruição por uma nêmeses. Tudo o que importava para ele era aquele apartamento suburbano, aquela comunhão de pessoas pobres que andavam com seus ressaibos de orgulho cívico pelos cantos, se olhando de esguelha com sorrisos intimamente pedindo misericórdia. Ele era um daqueles leões castrados, ornamentos do circo falido e mambembe da sociedade a qual tinha sido uma piedade imensa ter-lhes aceito se integrarem nela com esse disfarce. Ele queria a invisibilidade e havia trabalhado herculeamente por ela a vida toda, e não seria uma recaída ignóbil a um fetiche mal digerido, aparecido do nada, com a fulgurância do lixo dessensibilizante que a sexualidade extrema da mentalidade midiática impunha, que o faria perder tudo aquilo. Com isso em mente, Anselm passou a esquecer de Helena, com a mesma isenção de drama que acondicionara todo o imobiliário de seu mundo particular. E teria ficado assim, tudo tendo sido evitado, se ele, dois meses depois, por pura afasia, pura falta do que fazer, não tivesse voltado ao teatro da praça, onde uma outra peça de Pinter estava sendo encenada, sentando-se dessa vez na última poltrona, e quando as luzes se apagaram e o público ralo composto em sua maioria por universitários provavelmente sem outra coisa melhor para fazer do que usarem suas meia-entradas foi embora, ele foi sem pedir a ninguém ao camarim e bateu à porta. Ele percebeu sons de pessoas detrás das outras portas, falando com uma euforia de fim de expediente. Não havia dessa vez nem o zelador do prédio, o que lhe pareceu de uma estranha solidão pictórica que ela estivesse sob a convergência daquelas obrigações regulamentares, ao vê-la sentada na cadeira em frente ao espelho, ao lhe dizer de lá de dentro um “pode entrar”, como se aquela mesma solidão fosse a garantia compensatória de que num limbo como aquele seria impraticável que quem estivesse a lhe bater à porta fosse um perigo de qualquer natureza. E Anselm foi até ela, procurou algum outro assento que pudesse usar para dirimir o súbito aspecto desagradável surgido de um homem inesperado como ele se interpondo com sua estatura ao lado de uma figura feminina quase servilmente sentada, mas não achou. Haviam cadeiras dispostas ao longo da parede com outros espelhos, mas todas estavam ocupadas com peças de roupas coloridas, fustons, cachecóis, bonés de imigrantes sicilianos, echarpes, uma peruca loira bastante artificial que ele não lembrava ter sido utilizada no palco, e mesmo um gato, que transparecia sobre a insistência espantada de um segundo olhar averiguativo os olhos espectrais que pareciam mantidos em Anselm até que Anselm o notasse, como se fosse essa a única culminância aceitável da brincadeira, podendo ele então retornar à observância secreta de outras realidades inapreensíveis através dele.

   Helena se endireitou na cadeira, sentando-se com os dois lados dos glúteos, e antes que se virasse de todo para vê-lo com a opulência daqueles olhos azuis que tinham tanto cabalismo arrebatador que talvez fosse pela competição injusta que o gato se mostrasse tão borocoxô, ela esfregou com força enfática um lenço umedecido no rosto. Ela parou um instante, o observando, vai ver o localizando na memória, reconhecendo de alguma noite ligeira e inofensiva aqueles olhos arregalados, cheios de um temor incrustrado na aquisição da experiência que ela pela primeira vez constatou, com a antena sensitiva da boa estudante das nuances humanas, que eram investidos de maneira astuciosa de um pouco convincente aspecto de intrepidez.

  _ Olá, eu conheço você!_ ela disse.

 Aquele jeito de populacho, aquele espírito de ralé pinteriano, sempre deixava Anselm desconcertado. Exprimia um poder espontâneo com tanto direito de proficiência que seria inútil lhe causar inveja. Ele se sentia descompensado diante aquele modo de falar, que na verdade era mais do que isso, um posicionamento filosófico. Por mais que ele se violentasse em seus textos para retirar uma fístula daquele traquejo indolente do mais fundo de si, diante aquele desleixo satisfeito diante o que a vida tinha de mais perverso e incontrolável ele se sentia uma criança. Fascinava-o e o incomodava ao mesmo tempo, fazendo nascer nele uma espécie de melindre reacionário. Por que ela não se comportava como uma mulher decente se comporta?, ele pensava, com truculência defensiva.

   Ele respondeu o que tinha na língua, e não na mente esvaziada de artifícios diante a artimanha distribuída hipotenusicamente entre ela e o gato. Disse que havia vindo para vê-la e perguntar se ele poderia mais uma vez acompanhá-la em casa. Talvez evitassem alguma eventualidade indesejada do destino, ele juntou sem o menor sentido, pensando, nem ele mesmo sabia, que uma insinuação dos velhos modelos clássicos de proteção feminil pelo macho lhe diminuísse o temor que sentia diante a independência dela. Ela lhe olhou séria, pensando de modo calculado sobre a oferta, o flerte, ou o simples pedido de companhia em um universo que para um homem com o aspecto desamparado dele devia parecer inamistoso e solitário, e colocou o papel umedecido por sobre o balcão em frente ao espelho. Estudava as inconveniências dessa proposta, sem nenhum traço de medo, apenas pelo prisma de causas e efeitos. Anselm por um momento pensou se não poderia violar aquela irritante segurança dela, aquela empáfia de um exclusivismo de intangibilidade, segurando-a pelos braços, erguendo-a da cadeira e a atirando em cima de uma das pilhas de tecidos disformes do chão. Talvez ela fosse uma dessas mulheres, que eram de certa raridade afinal de contas, essas que são soberbas até um ponto em que o homem adequado restituam-lhes a ordem natural administrando-lhes uma dose bem dada de truculência. Seria algo do tipo que os fins justificam os meios, e toda a brutalidade resultaria à força de alguns minutos em quebrar o gelo em um nível conquistado de entendimento amplo. Se ele partisse para cima dela e desferisse-lhe  um soco no rosto, não seria uma economia gigantesca de energia para chegaram logo a uma ternura incontestável? Nisso ele ouviu um rumorejar de alerta, uma interjeição feita com uma desenvoltura profissional na garganta, vindo do canto esquerdo de onde ele estava. Com espanto nos olhos, Anselm viu sentado por detrás de uma mini parede levantada ali sem propósito algum a não algum obscuro atendimento a treinos cênicos particulares antes que os atores entrassem no palco, um homem careca, rotundo, de porte mediano que em vez de diminuir acentuava sua musculatura, bem munido de braços que de tão hiperatrofiados deixavam as mangas da camisa de sarja bege a ponto de explodirem. Ele olhava Anselm com uma malícia veemente, fixando-lhe diretamente a alma, como dizem, o que fez Anselm ter ciência de que lera-lhe aquele pensamento bárbaro cheio de incorreção e rancor, e por isso o brilho assassino de cão de guarda feroz nos cantos das pupilas, como se falasse através dele “tente”, “ouse tentar dar um murro na cara dela”. A cabeça dele era incomumente cheia de arestas, como se algum arquiteto não muito certo da cabeça tivesse-lhe esculpida e firmado arcobotantes como base de alguma peça maior, incongruente e incompreensível, que nunca fora concluída. Anselm pensou em Aleister Crowley, uma figura que despertara-lhe medo em algum momento da infância e que nunca se lhe apresentara meritório de levar a sério de tal modo que a falta de digestão desse sentimento resultara em uma sombra de insinuante ameaça toda vez que se confrontava com analogias.

  _ Esse é Ernesto, meu segurança_ ela disse, notando o desconforto.

  Ernesto não moveu um braço, nem mesmo quando Anselm fez um gesto de cumprimento. Em resposta seu olhar ficou ainda mais malicioso, como se a solução lógica fosse ele denunciar as intenções da imaginação alternativa impraticável de Anselm. Ela se levantou, pegou o casaco que estava pendurado em um suporta na parede, e disse “vamos”. Se movimentava como um lince. Sua cintura era incomumente fina, a ponto de se não fosse a iconografia libidinosa da fera poderia parecer um defeito.

   Lá fora, andando ainda sem programação certa, ela lhe disse que Ernesto era gay. “Mas duvido que você faça seu tipo”, ajuntou, sorrindo alto e escorando a cabeça no ombro de Anselm, em um gesto cuja fugacidade acentuava seu coloquialismo. Talvez ela estivesse mais predisposta a fazer os ritos sociais com aquele sujeito tão travado. Mais tarde ele saberia que ela o vira como um estudo clínico, como parte de uma atitude altruísta em evitar suicídios, ou colorir com tons menos lúgubres um filtro de depressão. Os dentes dela eram muito amarelados e ligeiramente tortos, não tão ligeiramente a ponto de ser a única coisa que lhe tirava aquela soltura toda. Era seu calcanhar de Aquiles. Ela havia tido um acidente no laboratório de química do curso de enfermagem e aspirado brometo de selênio, ela lhe disse. Ela era formada em enfermagem mas nunca exercera.

   _ Ele também é telecinético_ Anselm disse, enquanto cortavam pela praça do General, onde o Mendigo do Inverno estava sentado no mesmo local inadmoestável de sempre.

   Anselm o via sempre que passava pela praça. Um templário de casaco amarfanhado, bem fechado no pescoço e punhos, com uma barba samarcanda à altura do pomo-de-adão. Tinha olhos de quem reza segurando uma cimitarra por debaixo do pano grosso que o protegia da chuva e do sol. Naquela cidade em que se fazia campanhas com pequenos cartazes afixados ao lado dos semáforos, onde se lia “não deem esmolas aos mendigos”, a secreta proteção divina que atendia à sua fidelidade o mantinha invisível.  Talvez só Anselm o visse, fosse uma espécie de djin que se materializava toda vez que ele cruzava por ali. Helena, porém, deveria ser partícipe da mensagem que um dia ele estava destinado a revelar, pois ela também o viu. Olhou-o com genuíno interesse, como se tivesse uma sinestesia reversa de identificação. Talvez fosse um Aleph, um portal para um ponto futuro. Talvez depois de tudo, depois que o drama que se iniciava ali fosse concluído com todos os purgativos morais da compreensão, Anselm fosse descobrir que era um espelho temporal, que não estava vendo nada mais do que a si mesmo.

   _ Ele parece ter uma áurea espiritual_ ela disse, o homem não a ouvindo dentro da bolha de concentração em que estava._ Parece entender alguma coisa que está alheia a nosso nível de frequência.

   Mas Anselm disse que falava de Ernesto.

 _ Ele leu meus pensamentos e viu um momento em que minha imaginação traçou um rumo muito ruim para essa noite.

 _ Humm_ ela soltou-lhe o braço, que vinha segurando para poder andar por sobre as pedras desencaixadas sob a sombra da praça.

  Foi o momento em que ela se mostrou mais objetiva. Seria fácil descartá-lo se aquilo se mostrasse de alguma maneira inconveniente. Umas duas palavras em sua linguagem interseccionante com o submundo e a ausência efetiva de ponderação e aquilo tudo seria subtraído de seu horizonte de eventos. Seria uma brincadeira de mal gosto salientar um humor impossível por detrás de um ato de violência.

 _ Ernesto é leão de chácara. Trabalha em estâncias e boates da alta sociedade. Não é por ser gay que ele não teria lhe dado uma chave de braço que te enviaria para o hospital. Ser gay na verdade aumenta o potencial deletério dele.

   Ele esperou se era uma frase de efeito que teria uma explicação, mas ela se calou, olhando o chão com os olhos bem abertos. Calçava uma sandália de salto alto que em qualquer outra confluência de razões seria um erro terrível à sua incolumidade física. Para ela não interessava o mínimo, mas para alguma vertente incognoscível de presciência cósmica, aqueles sapatos eram como o jarrete de uma força divinatória, que transformava aqueles bloquetes desconjuntados e lombadas de raízes das grandes ceibas em uma barreira sobre a qual ela flutuava em um equilíbrio infalível. Um passo em falso foi possível em todo essa estrutura sincronizada, mas que resultou apenas em um salto que as longas pernas dela se firmaram em um espaço de terra antes da calçada. Como se precisasse de um instante para computar aquele erro solucionado no improviso de sua memória corporal, ela parou e se virou para ele, de olhos baixos. Seria a despedida, era o que estava escrito naquela silhueta de uma gazela salomônica, que voltava a negar qualquer tipo de direito a Anselm.

  _É claro que eu não sou esse tipo de homem. Jamais machuquei nenhuma mulher na minha vida_ ele disse.

   Ela sorriu diante o tom juvenil dele e por um breve instante deixou ver que toda sua zanga era uma trapaça.

 _ Nem em situações em que um certo machucar fosse bem-vindo?_ ela perguntou, recolhendo o sorriso para que o arrulhar que o sorriso fazia no espaço fechado da boca estivesse à altura de expressão de um certo erotismo.

   Se ela esperava algum constrangimento por parte dele como seguimento à sua timidez juvenil, a sinceridade com que ele respondeu a desarmou.

 _ Não. Nem isso. Para todos os fins eu sou um macho alfa fracassado.

 Ela então, para tentar restituir algo de sua superior indiferença controlada, resolveu arriscar.

 _ E se aparecesse alguém agora, nessa hora da noite, um homem que transpirasse masculinidade de forma irresistível, um trânsfuga, um bandido, e se mostrasse uma ameaça que iria me subtrair de sua companhia. O que você faria?

  Anselm olhou o céu, povoado de estrelas, e suspirou profundamente, em silêncio. Pela primeira vez ela abaixou os ombros e se tornou natural, de uma forma que Anselm pôde ver como ela deveria ser na verdade. A naturalidade de mulher desleixada, sexualmente liberada, de ideias de gênero radicais, era uma última carapaça que ela usava. Ele pensou quantas máscaras ela havia posto em prática e desistido, em sua atuação política na existência, para chegar até aquela, inamistosamente solitária e polida. Naquele momento os dois nutriram, em um intervalo que não deve ter durado um minuto, uma intensa admiração mútua, como dois jogadores de xadrez que reconhecem de súbito após uma série de disputas imperturbavelmente consensuais os atributos verdadeiros debaixo das técnicas aprimoradas e dos embustes posturais.

  _ Bom, eu iria me esfolar todo e sairia com muitos ossos quebrados, dependendo de se você quisesse ou não ser levada por esse bandoleiro.

  Ela caminhava lentamente, somente agora ele percebeu isso, que estavam caminhando já não prestando atenção nos passos, e ela emitiu um sorriso que Anselm computou como finalmente o primeiro sorriso dela para ele. As pontas dos lábios se estenderam, mostrando o traçado dos dentes dela, e os olhos ficaram cheios de uma alacridade simpática. Daí em diante, por alguns meses, oito ao todo para ser exato, eles então se conheceram e se entregaram um ao outro, e seis desses meses foram incomumente felizes, cheios da sensação levitacional do amor. Seis meses entre oito, para qualquer perspectiva matemática, era uma boa estatística, mas o inferno dos outros dois meses fora tão devastador que toda a memória ficara comprometida pela mácula deles advinda.