quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

O anticristo

 


Entro no facebook hoje. Vídeos que eu não quero ver são jogados na minha cara. Não quero ver um avião planando. Não quero ver um cara pendurado numa montanha. Não quero ver um vídeo caseiro de uma mulher de bermudas pegando um vaso na estante. Etc, etc, etc. Tudo de páginas que eu não sigo. E vem mais uma enxurrada de propaganda, as mais estúpidas possíveis. Não suporto e largo o celular. Creio que a depressão crônica que me toma todos os dias vem disso, dessa plenipotência da imbecilidade e do péssimo gosto. Me passa pela cabeça a impressão de que é assim que os poderosos sempre nos viram, os czares, césares, ditadores, colonizadores, presidentes, e as redes sociais agora nos mostra o segredo. A grande maioria da humanidade consiste de futilidade e ausência de espírito. Me lembro de Gurdjieff dizendo que só uma minúscula porcentagem de nós conseguiria a conquista da imortalidade. E Simone Weil dizendo que só poucos conseguem saber que existem, que vivem. Tudo o mais vai se apagar pela própria inanição do espírito, pela própria rarefação da consciência. Eu ainda fico aterrorizado de ver como nos deixamos chegar a isso. Minha avó me contava, quando eu era muito criança, sobre o anticristo. Que o anticristo iria marcar cada um dos habitantes da terra, e todos esses marcados iriam sucumbir e perecer. E eu, com oito anos e já muito cético, ria da ingenuidade pentecostal dessa senhora tão devota, pensando que quem seria burro pra se deixar marcar pelo anticristo. E hoje eu penso, quem me dera se houvessem elevadas entidades cósmicas, como um demônio, como um anticristo, para validar uma possível importância de nossas almas. Seres espirituais não tem interesse por nós. A realidade, se eu pudesse voltar no tempo e contar para minha avó, seria tão imbecil que ela jamais acreditaria. "Vó", eu lhe contaria, "o esplendor de Lúcifer não aconteceu, a senhora está errada. Quem nos dera! Aconteceu algo muito, muito, muito pior. Toda a humanidade, que está explodindo, oito bilhões, aceitou voluntariamente viver na mente de um adolescente. Toda a humanidade desistiu de planos maiores e se resignou pelo mais pobre, o mais abjeto, o mais feio, o mais perverso, e fica 24 horas só trabalhando feito um verme, feito uma mula, e vendo vídeos estúpidos. Sorrindo com carinhas estúpidas para mascarar a enorme tristeza. Não houve a glória do Mal, vó. Não houve a dignidade excruciante do inferno de Jó. Não houve fogo nem nenhum de nós teve a honra de ser transformado em uma estátua da sal. Houve só a abissal e brega burrice. Só as cores da miopia e os sons das dancinhas." Eliot disse que o fim viria não com um estrondo, mas com um lamento. E mesmo ele estava errado. O fim está vindo com um meme de um peido, e todos nós símios rindo do alto das árvores jogando bosta e se masturbando um nos outros. Até que tudo seja passado no rodo e não sobre nem uma fagulha de luz para testemunhar que seres como nós um dia existimos.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

O Mapa e o Território, de Michel Houellebecq

 



A leitura desse fenômeno de vendas, chamado Michel Houellebecq, suscita muitas cogitações sobre o que vem a ser carisma na literatura contemporânea. Houellebecq é retorcido com certa insistência, pelos seus leitores bem intencionados, para caber no molde de um Jonathan Swift e de um Albert Camus, e mesmo em suas primeiras obras ele tendo demonstrado não ter nenhum propósito de se equivaler a esses modelos, já em seus romances mais recentes vem reagindo passivamente a essa necessidade de entendimento, talvez de forma inconsciente. Em seu romance Plataforma, quando a temática das novas investiduras da dominação global através do turismo sexual dos antigos dominadores nas ex-colônias se junta à repercussão de um polêmica criada e exagerada pelos jornais, o carisma com muitas lacunas do autor sofre uma espécie de eufemização na tentativa de ver sarcasmo sofisticado no que aparentemente é apenas um niilismo grosseiro e uma astuta adequação ao que o público ávido por comprar livros requer. Tudo não passa de uma estratégia mercantil: o mercado encontra um escritor que polemiza dentro do gosto do freguês, e a mídia se apressa a potencializar o escândalo de uma elegante má reputação também ela com olhos raposinos nos lucros. É o par com sintonia perfeita para alimentar a fama e a glória para ambos os lados_ quantos jornalistas e formadores de opinião não passaram a se beneficiar largamente com documentários, reportagens e livros sobre Houellebecq?_: Houellebecq escreve Plataforma, um romance que só com muita credulidade poderia matizar delicadezas pontuais da política moderna como o turismo sexual e o islamismo, e a mídia ecoa com uma sensibilidade simuladamente ultrajada que realmente o autor brutaliza tanto o turismo sexual quanto o islamismo. Talvez o que satisfaz em primeiro plano o leitor nem seja a controversia, mas os mobiliários de cena os quais Houellebecq é pródigo em oferecer_ como paisagens, o tédio dos aeroportos e os apartamentos aquecidos de Paris_, mas a premissa sustentada pela propaganda feita para que as sublimidades de sua escrita passe a dar a impressão ao leitor de que ele está ganhando algo mais profundo do que um simples hedonismo de viagem: há ali uma sarcasmo político, um humanismo às avessas, uma fina experiência filosófica. Quando Houellebecq escreve todo um romance sobre turismo sexual, que qualquer um levemente bem informado sabe ser uma característica de todos os países, algo notório e incapaz de provocar surpresas, o imaginário criado como áurea à sua mensagem secreta é que quando ele aparenta defender a exploração de meninas em países subdesenvolvidos ele está, na verdade, emulando Swift quando este satiriza que a solução para conter a desigualdade social da Irlanda é comer os filhos dos irlandeses pobres. E no seguimento dessa colaboração entre escritor e mídia publicitária, Houellebecq encerra Plataforma com um massacre provocado por islamitas, o que dá à obra uma segunda vertente de incorreção. Se o leitor tiver ânimo para uma segunda leitura de Plataforma, verá que sua primeira impressão é a certa, de que tal romance tem 400 páginas dedicadas a descrições sexuais de uma insensibilização fisiológica (com uma repetição da frase, que é uma assinatura do autor em todos os seus livros: "ejaculei violentamente"), e uma longa e morosa catalogação sobre a burocracia de como funciona uma agencia de turismo internacional. Não que Houellebecq seja mal escritor, mas a questão é que ele parece ter perdido a mão, parece que seu excepcional talento demonstrado nesta que é sua única grande obra, Partículas elementares, se limita agora apenas a um bom cenógrafo. 

Uma recente pesquisa apontou que as crianças mais bem educadas do mundo são as francesas. Elas não fazem bagunça em aviões, elas não gritam, elas não pulam, elas não atravessam os assuntos dos adultos, elas não dão birra: uma criança francesa, pelo que enalteceu as revistas que ensinam as etiquetas do bom comportamento para famílias abastadas, para todos os efeitos do bem público, simplesmente não existe. Elas estão lá como composição do ambiente, mas são esvaziadas desde muito pequenas de qualquer potencial de perturbação. O segredo para se obter uma criança destas, reproduz por nossa terras virtuais o site da revista Veja, é porque os franceses não as tratam como crianças, os franceses deixam bem claro que as vidas dos pais estão desvinculadas das vidas de seus filhos, no tocante a tudo que esteja externo à manutenção financeira de seus estudos, alimentação e saúde. O carinho é algo protocolar, biológico, como deve ser entre bons conviventes de idades diametralmente opostas e que só por um acaso envolve detalhes escatológicos triviais como a gravidez e amamentação. Eu sempre achei que a excepcional assepsia da educação parental dos franceses determinou toda a literatura francesa. Determinou que seja algo impossível para a literatura francesa gerar um escritor como Kafka, por exemplo; e determinou que a atmosfera de abandono cósmico pretendido por Beckett para seus romances tenha levado Beckett a optar escrevê-los em francês. Nenhum escritor francês jamais teria a capacidade idiossincrática de centrar a figura do pai em sua obra, como fez Kafka, nem nas complexas identificações deístas do pai como em O processo e O castelo, nem mesmo no mais pungente debate com a tirania caseira do pai em Carta ao pai. Para um escritor francês, a figura do pai é meramente um assombro muito bem estancado em eras passadas a ponto de se tornar um reminiscente sem nenhum apelo filosófico em seus genes; o pai na literatura francesa tem um peso bovino, de animal associado a ilesas características reprodutoras, de uma figura que aparece nas fotos com uma seca intranscendência que é visto pelo seu filho com a falta de qualquer necessidade de esgotamento racional; o pai poupou o filho de especulações esotéricas, de nostalgias emocionalmente pouco econômicas e desgastantes; o pai oferece ao filho o dever de devolver no final da vida do pai a mesma polidez de ausência de toques desnecessários que este outorgou ao filho, na infância. Mesmo Camus, o menos francês dos escritores em francês, fracassou diante o abismo de tentar escrever uma elegia mais ocidental a seu pai, em O primeiro homem, quando todas as suas pretendidas observações sobre o túmulo do pai se transformam no mesmo ruído proximal e sem fôlego, expirado com pressa. E por isso o mais próximo do afeto paternal que se encontra na expressão francesa seja o da eutanásia do pai: seja no filme As invasões bárbaras, ou no romance de Houellebecq, O mapa e o território. Mas algo tão reativo para a arte como a figura do pai não é extirpado sem sérias consequências estéticas e significantes: a literatura francesa moderna é incapaz de se beneficiar da riqueza do tema da paternidade (temos aqui a mais gritante das exceções à regra na figura de Proust, principalmente na tocante e belíssima relação de paternidade entre o sr. Vinteuil e sua filha, que se acentua e perde todos os atenuantes regidos na educação da filha somente após a morte do pai, e na relação peculiar e terna do narrador com sua mãe).

Isso é amplamente visto nos romances de Houellebecq. Para nós, leitores sul-americanos, a assepsia da importância do pai é ainda mais implacável, nós que sempre fomos muito mau criados em nossos mimos de compensações supersticiosas e nossas balanças de afeto católicas, o que para o leitor francês de Houellebcq não passa de pedantismo circunstancial. Essa ausência de esoterismo afeta muito a qualidade da mais ambiciosa obra de Houellebecq, O mapa e o território. Esse romance é a prova de força do que sobra do carisma do autor quando ele tenta dar-se autonomia de escritor relevante negando-se a manter um contrato tão evidente de recíprocas garantias com a mídia polemista. Neste romance Houllebecq abre mão do sexo (há poucas cenas, e a usual frase "ejaculou violentamente"), não o colocando como um dos pés da obra; e aqui ele não recorre ao escândalo ou à maledicência. Sua tentativa de autonomia é respeitável, mas o que ele pretende ser a aproximação ao patamar sério de um Camus, acaba mostrando vários defeitos na obra. O defeito recorrente é o unidimensionalismo dos personagens: o herói da trama é bonzinho demais, racional demais, se permitindo um arroubo de violência moderada no final para ganhar legitimidade. As mulheres ainda são as sacerdotisas agradecidas dos desejos dos machos, que muito tem colaborado para as feministas verem no autor a encarnação do demônio, mas com menos disposição ao sacerdócio do que aparecem nos outros romances: elas arvoram uma inédita independência, sendo que a namorada do herói o deixa pela carreira profissional_ aqui, pela primeira vez, Houllebecq permite que uma de suas mulheres tenha humor, na figura da promotora de exposições do herói. O segundo e mais grave erro foi a técnica mal sucedida do próprio autor se pôr como um personagem no livo: na verdade é o que o livro tem de melhor, um Houellebecq pouco higiênico e com abstrusões de humor, mas o sentido da coisa fica incompreensível e a brutalidade da resolução dada ao artifício dá a impressão de uma mera comicidade gratuita.

A parte genuína da obra, a que parece capaz de alçar Houellebecq para um novo patamar, é a relação entre o pintor e herói da narrativa, Jed Martin, com seu pai. Martin é um recente milionário das artes, e seu pai é um profissional do ramo da arquitetura que está prestes a enfrentar o vazio de uma aposentadoria sem os vícios urbanos do excesso benemérito de trabalho. A convivência entre os dois, como não haveria de deixar de ser, é fria, distanciada, monologal, mecânica. Todo o peso da excepcional educação pragmática é visto na vida de Martin: seu determinismo ao sucesso, seu apartamento de alto luxo sem mobília em que ele dorme em um colchonete suportando o ronco do aquecedor sempre estragado, seus meses em que fica trancado em casa pintando, sem falar com ninguém, ao ponto de um simples pedido em uma padaria ser um esforço de desatrofiamento das cordas vocais. Martin vive a angústia de sua mãe ter suicidado antes que sua memória infantil pudesse perpetuar uma imagem dela. Martin é muito francês em seu polimento e suas reservas, em seu humanismo embutido aquém da racionalização. É o mais humano dos personagens de Houllebecq, em uma bibliografia recheada de personagens que estão situados além do bem e do mal, o mais próximo a um desentronamento de seu casulo para ser aquecido por uma impressão de alteridade. Uma vez, sem motivo algum, ele desce de seu apartamento e vai até o escritório do pai, apenas para estar diante dele, sabendo que a mesma inexorável falta de assunto vai abater sobre eles. O pai o recebe esbaforido, em pleno meio de um dia hipertensivo, e o repreende por assustá-lo e pelo nonsense da visita. Tempos depois, o próprio pai o visita, e eles bebem junto, num clima de intimidade desconcertante de uma primeira vez, e com o laconismo de sempre o pai lhe diz que vai recorrer à eutanásia em uma clínica suíça, porque se nega suportar o tratamento de um câncer de reto. É a última vez que se veem. Martin, em um novo arroubo, parte para procurar a clínica suíça para saber sobre os últimos momentos do pai, e encontra um prédio branco límpido e com a pureza sem exaltação dos muito ricos e muito civilizados. Lá, ele é atendido por uma mulher insípida e crua, avessa sem a mínima paciência a atender à vontade de Martin de saber o que seu pai viu e falou em seus momentos finais. Ele a soca e a espanca violentamente, a deixando atirada em evidente coma no chão, e sai diligentemente até o aeroporto, contando ser preso a qualquer hora. Neste momento, se fosse um filme, a plateia do cinema com certeza teria se regozijado em gritos e batido palmas. Martin vê que uma clínica destinada a multi-milionários jamais iria procurar os noticiários com uma denúncia de espancamento, e ele chega de volta a Paris. Quando ele estava procurando a clínica, um erro de interpretação idiomática faz com que o taxista o leve a um bordel de luxo. Houellebcq faz um novo esforço em adstringir o peso da vida com comparações do quanto seria melhor se o pai de Martin tivesse recorrido ao hedonismo do braço daquelas moças, no final da vida, em vez da solução da clínica. Inconscientemente ele acabou transformando todo o bem engendrado mobiliário de cena apto para reflexões mais profundas no mesmo clichê dessa vez sexualmente ponderado de seus outros livros. O único alcance obtido foi esse: a figura do pai fracassa em produzir algo substancial e vira uma decantada comédia. O que é revelado como mais diagnóstico desse fracasso é que o pai de Martin, na juventude, sonhou ser também um artista.

O vazio da paternidade é o tema de O mapa e o território. O personagem mais interessante, um chefe de polícia que é lamentavelmente aposentado da narrativa sem qualquer explicação próximo ao término do romance, é um pai fracassado por causa de sua oligoespermia, a quase nula produção de esperma. Isso que ele considera a maior dor da sua vida é contornada com o lenitivo da criação de um cachorrinho e de uma vida de atenções sanitárias recíprocas com a sua esposa. O próprio Houellebecq que aparece no livro é um órfão sedimentado, um órfão insofismável. O órfão padrão francês, com selo de qualidade. E tudo passa. A vida deles todos passa e é descrita até o fim a decomposição rumo à velhice e à morte de Martin. E o romance termina com a tristeza cada vez mais plástica e vazia de Houellebecq, que o conclui com o carisma típico de um escritor famoso que se sustenta pelo comedimento chique e pela competência de mobiliar bem a narrativa. Há uma tentativa de criticar a sociedade de consumo num novo coisismo em que Houllebecq faz de seu livro uma repetição da obra consumida, descrevendo manuais de funcionamento de carros e outros utensílios do desejo do homem moderno comum.

É impossível não se questionar por que Houellebecq é um dos escritores que mais se vendem no panorama atual das letras. Seus leitores são como ele? Ele fala o que pensa? Ele é uma forma ultra-moderna de sátiro? O que eu acho é que Houellebecq expressa muito mais sobre o que realmente é em seus livros, e o fato de ser brutalmente assassinado em O mapa e o território revela uma catarse auto-crítica que talvez aponta para uma nova exploração pessoal nas próximas obras. Ele se fez morrer talvez como forma de mea culpa. O que eu acho é que sua intranscendência é um espelho da mesma característica do homem consumidor de cultura do alto desse século XXI, bem localizado em sua falta de necessidade do autêntico e refestelado com o que a bijuteria fina da aparência do autêntico lhe dá de garantias de sofisticação e conteúdo. Uma leitura rarefeita e dentro de certos parâmetros válida, com a precisão de oferecer a matéria hercúlea de 400 páginas com a fluidez de leituras de revista. Uma leitura, no final das contas, inofensiva em toda sua comburência de coisa perigosa, fechada em seu círculo de validade ao ter como polo receptor um consumidor exatamente igual a ela.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Emmanuel Carrère 2



Emmanuel Carrère está no calor sufocante da ilha grega de Leros, hospedado na casa de uma amiga. A amiga oferece o chuveiro para que ele tome um banho, mas ele recusa. Está há uns bons dias sem tomar banho, e sente um "prazer sombrio em marinar no meu suor nervoso e nas minhas roupas rançosas". Eles saem à noite para beber. Carrère toma incontáveis garrafas de vinho. Volta para a casa da amiga, dança com ela ao som da Polonaise "heróica" de Chopin, tocada por Vladimir Horowitz. Depois, ele e a amiga não fazem amor, o que ele não se lembra "graças a quem de nós dois esse erro foi evitado", o que fica a suspeita que para o sensualista exacerbado e dedicado cultor erótico que ele é, na certa a recusa foi da mulher. O que não é de se espantar, visto a sua roupa que há dias não troca, a sua cueca que há dias não troca. Essa cena é narrada em Ioga, depois de Carrère tratar dos jovens médio orientais refugiados num abrigo grego, numa tentativa desaforada de ser um escritor com preocupações sociais e senso histórico. É desconcertante para o leitor ver na recusa de Carrère em tomar banho o limite clínico real de sua capacidade em ser altruísta, em pensar fora de si, em realmente ser "um grande escritor". E o mais desconcertante é que o nojo que eu, pelo menos, senti, ao imaginar o odor que um corpo europeu masculino de sessenta anos despende privado da mínima higienização por dias, aumenta por saber que Carrère mesmo não percebeu isso ao escrever o texto. Ele não dá dicas morais ou metafóricas a serem retiradas dessa porquidão, ele escreve isso sem a mínima autocrítica, desmerecendo todo esforço anterior empregado na obra por ser uma pessoa melhor, menos egoísta.

Cavalgada pela Masúria



"Cavalgada pela Masúria", um dos capítulos de "Minha infância na Prússia", entra fácil na minha lista de melhores contos. Trata-se de uma parte do diário da condessa Marion Dönhoff. Com uma prosa que lembra Hemingway, mas de forma superior_ sem nenhuma necessidade tão tipicamente masculina de dizer "olha como escrevo maravilhosamente bem"_, o texto narra uma viagem que a escritora, quando jovem, faz pelo interior rural da Alemanha, a cavalo, e acompanhada por uma amiga. É uma obra idílica, pastoral, cheia de sol, florestas e a densidade humana de povoados com camponeses laconicamente gentis. Só que o ano é 1941, e a presença da guerra é um incômodo generalizado. Marion cita os prisioneiros pelos campos de forma pictórica, um detalhe indispensável que se tem de colocar no quadro mas que teria sido muito bom se pudesse desconsiderá-lo. Só que a autora não é uma poeta, mas uma jornalista ativista, o que torna impossível qualquer grau voluntário de alienação. Ao mesmo tempo que fala da exuberante simplicidade daquela vida, em que nem sempre encontram estábulos para pernoitar os animais e uma só vez, depois de muitos dias, tem a chance de tomar um banho quente, perfaz pelas páginas o exército de jovens se arregimentando pelas estradas, as sopas de leite na mesa carente dos camponeses à noite e a desnutrição da onipresença da batata. É um texto que rescende uma dolorosa saudade, uma saudade de tudo, da paz, da harmonia, da modéstia. Como são belas as mulheres escritoras, em sua modéstia sábia, cientes de sua superioridade sobre seus pares masculinos; enquanto minha outra leitura, o Emmanuel Carrère, fala apenas "eu", "eu! eu! eu!", a "minha dor", o "meu desespero", a condessa quase não se coloca em cena, uma impessoalidade transparente para mostrar a história e a impermanência fruto da ganância do "eu". E quando essas reminiscências terminam, vem aquela lucidez que só a literatura mais elevada provoca, uma espécie de amplitude iletrada paradoxalmente feita pelas letras, uma fagulha de consciência universal que não é para menos que um outro escritor tenha conceituado como "esotérica". Sabemos que essa educada e serena senhora que escreve essas palavras é a mesma que fez parte de um complô fracassado para matar Hitler, foi presa e libertada, enquanto outros de seu grupo receberam a pena de morte. De forma que esse conto é auto-explicativo em última instância. É uma nostalgia por uma época e uma disposição de espírito que foram varridas pela história, mas não vinda de uma intelectual isenta, não vinda de alguém que se deleita ao som lisergiado por drogas pesadas do "eu", como é Carrère. Debaixo desse tom ameno dessa mulher de oitenta anos há a adaga escondida de quem lutou para salvar esse mundo da estupidez e da veneração por idiotas sanguinários. E é só uma ilusão achar que ela saiu de todo derrotada. A possibilidade de que seja lida por longos e longos anos atesta que sua força verdadeira está acima da violência, está na restituição da comunhão do entendimento. Como diz Sêneca, que pego de uma lembrança do Carrère em O Reino, os maus não vencem, os que praticam a injustiça não levam a melhor. É um engano se entregar a essa resignação derrotista. "Pensas que quero dizer: um ingrato será infeliz. Mas não falo no futuro: ele já é".

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Emmanuel Carrère

 


Emmanuel Carrère é ótimo. Mas quando fala o quanto é o fodão, com suas mulheres que transou, e com a grana que tem, que é rico e inteligentíssimo, a gente percebe o quanto a futilidade moderna impregnou a literatura. Não se vê isso, seria um absurdo inenarrável, nos russos pré-revolução, nem nos norte-americanos do século XX (nestes últimos eles não alardeavam seu classemediaaltismo, mas a usavam para a crítica profunda da perda da alma). Carrère faz como Seinfeld e outros alicerces da anedota elevada (porque, por mais que seja brilhante, o que ele escreve não passa disso): o culto da discriminação elegante, da condolência burguesa pelos desassistidos, desde que se mantenha sempre à vista o fato deles estarem por cima, com suas preocupações espirituais cosméticas e suas angústias metafísicas de vitrine. Mas há nisso uma grandeza. Não quero renegar o imenso deleite e aprendizado que um livro como O Reino me provocou. E o poder de Carrère está em reconhecer isso, de que ele é um escritor que atende à metamorfose do que hoje pode ser conceituado como "um grande escritor". Alguém que escreve algo que exorbita o cânone, que traz para o proscênio a tralha que antes era repudiada e hoje se adequa aos novos interesses de uma classe abastada de leitores: a auto ajuda refinada, temperada com filosofia e conhecimento social, o anseio pela redenção, pelo esclarecimento. Os russos o faziam se retirando para mosteiros, no exílio, ou de dentro de prisões, ou abraçando o campesinato; eles não, Carrère não. Carrère diz que não tem a amplitude moral de uma montanha, mas a mornidão dos que só tangenciam os grandes temas. Ele mesmo se define como "morno". Ele é uma "colina". Ele escreve em sua casa luxuosa na ilha de Patmos, a mesma onde o suposto evangelista escreveu o Apocalipse. É esse fetiche da coisa autêntica vendável que motiva Carrère, estar onde aconteceu o milagre, mas não se imiscuir nele. A aquisição do gostinho espiritual apenas, e não do Espírito. Sem sofrimento, tomando seu café com nome chique em um barzinho cool numa cidade de altíssimo custo de vida num lugar idílico na Europa. Mas ele é um escritor honesto e verdadeiro, não escondendo esses detalhes significativos de sua mornidão, de ser reflexo firmado no fetiche da sua impressão de profundidade. Seinfeld em um episódio pergunta ao George o que pode ter na América do Sul. Carrère, assim como todos os intelectuais franceses, deixa transparecer nitidamente seu prazer em ser europeu, intocável, em volta com suas marcas empresariais poderosas, suas grifes (em Ioga ele fala da maciez de seus sapatos finos), sua cultura restrita a seu direito de sangue. Em O reino ele abruptamente interrompe o tema do livro para falar sobre um vídeo pornô chamado "Brunette mourant de plaisir et jouissant deux fois", que ele achou pelo Google, e descreve a tristeza contemplativa da morena do título com todo o potencial de suas tintas superiormente reflexivas, pintando-a de maneira rembrandtiana, descrevendo sua entrega às duas explosões de orgasmos com a máxima sutileza insinuante à imolação interior dos primeiros cristãos, ou algo assim que ecoe elegantes dissociações perceptivas. Ele, Carrère, chega a mandar esse seu texto sobre o vídeo para sua esposa, pedindo que ela lhe traga mais informações sobre a morena. E a esposa dele, com o sorriso descolado da cônjuge culta, pergunta se ele entende as possibilidades terríveis que se escondem nesse vídeo, que pode muito bem ter sido postado de forma não autorizada por um ex-namorado vingativo, ou a própria mulher o publicou por uma situação de necessidade econômica, etc. E a única coisa que o morno Carrère escreve, em conclusão a essa aula sobre as torpes motivações políticas por detrás da mídia pornográfica, é como ele tem sorte em ter uma esposa assim. O que não impediu que Carrère fizesse a mesma coisa que o ex-namorado do vídeo, falando em seu livro Ioga sobre detalhes depreciativos não consentidos sobre seu casamento que levou essa sua ex-esposa a lhe processar. Mas essa cena não é um deslize autodepreciativo de Carrère, ele a descreve para, como Montagne (muito citado por ele), ressaltar que o assunto de seus livros é pura e simplesmente ele mesmo, com todos seus pecados, suas indiferenças, seus filistinismos, hipocrisia, carnalidade, preconceitos. Essa alfinetada gentil que sua esposa lhe dá para que ele se cientize um pouco ao menos sobre sua leviandade é um fato corrente de tantas outras partes em que a verdade lhe é mostrada por quem está de fora, dando pequenas marteladas em sua casca de proteção. Talvez toda obra de Carrère consista em suas respostas a essas marteladas. Seu amigo Hervé Clerc, como outro exemplo, é o homem espiritual, despojado, que vê a existência como uma luta da alma por sair das sombras e alcançar a consciência libertadora, enquanto ele mesmo se regala satisfeito de ser sua oposição, o homem feliz com sua riqueza, com suas bebedeiras diárias, sua sexualidade, sua agradecida limitação hedonista na carne. Carrère se descreve como uma repaginação moderna de Sêneca, esse filósofo best-seller mesmo em sua época que pregava o estoicismo da simplicidade mas que era um milionário banqueiro enfunado em seus palácios de prazer. E Carrère é ardiloso: ele conhece como ninguém seus leitores e o mercado do que sobrou do livro. Para uma geração de símiles globais dele, Carrère é uma amostra ainda bastante elevada do que a literatura vestigial pode oferecer.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Não intrometa!


Um dos efeitos da diminuição global da inteligência é essa ingenuidade vazia, algo satânica, dos vídeos feitos pela IA de velhinhos marinheiros salvando baleias árticas. É de um artificialismo tão flagrante que só uma percepção profundamente corrompida pelo sentimentalismo tolo e pela depravação mental julga verdadeiro. O animal cibernético adiposo em toda sua preguiça simula se encher de ternura por algo que não está só além do real como além do definhamento de sua sensibilidade. O próximo passo cotidiano é enxugar as lágrimas pelo salvamento do filhote da baleia e entrar no vídeo do sexo sadomasoquista, para calibrar as outras cordas de seus nervos viciados. E qualquer sinal de dissidência da opinião religiosamente corrente das redes sociais, o alarme é acionado: o que esse estúpido está criticando no facebook? o que esse esnobe arrogante está querendo reivindicar fora das regras? ou se adapte ao meme, à corrente de julgamentos da semana, à adoração ou ao cancelamento, ou caia fora. Ou faça o self do seu rabo, ou vá ser a estranha aberração que é na solidão. Não intrometa!

domingo, 8 de dezembro de 2024

Abrigo

Dos 17 até os trinta eu tinha só dois livros. Lord Jim, do Joseph Conrad, e O jogo da amarelinha, do Júlio Cortázar. Claro que eu lia como um louco, mas eu comprava, trocava, ou simplesmente me desfazia dos livros sem a menor consideração. Meu primeiro emprego era de veterinário em uma cooperativa, que eu exerci por cinco anos. Eu chegava exausto do campo à minúscula pensão na minúscula e esquecida cidade onde eu morava, tomava um banho, jantava, e me lançava à releitura infinita dos meus dois livros. Eu ainda hoje sei um capítulo de cor de Amarelinha, e trechos inteiros do Lord Jim. Tirei deste último o título da minha monografia de história, "As encarnações imprevistas". Daí conheci a Dani, e ela me deu os dois primeiros livros que eu iria guardar pra sempre, além das eternidades condensadas pelo outro argentino e pelo polaco que eu levava no alforje, os volumes três e quatro da obra completa de Borges. Nesse astucioso presente, veio decretado meu duplo destino, que era o de ter propósito para constituir um lar e formar uma biblioteca. (Lembro do espanto absoluto na cara da senhora minha vizinha, quando viu aquela moça e o bebê de colo_ a Dani e a Júlia_ entrando pela primeira vez na casa onde ela julgava morar apenas o triste psicopata solitário e inofensivo com o seu cão.) Daí a Dani me disse, quando eu lia a dedicatória em completo maravilhamento que ela escreveu naquele presente perfeito que em trinta anos ninguém jamais havia tido a sensibilidade ou o interesse em me dar: "Nós podemos reservar um dos quartos da casa e começarmos a montar uma biblioteca, o que você acha?". E hoje aqui estão, os meus primeiros livros de homem assentado, enquanto as crianças correm pela casa, elas mesmas se regalando por horas com a biblioteca. E a Dani, como sempre, com sua humildade política, por detrás de tudo.