segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Conhecer uma mulher



Sua mãe havia sido uma defensora pública. Quando morreu, foram prestadas homenagem a ela pelo estado. Escritórios de advocatícia mandaram coroas de flores com os sobrenomes dos sócios escritos. Olhando-a no caixão, o rosto maquiado para atenuar o inchaço dos antiflamatórios, não era para qualquer um a insinuação do quanto foram inglórios seus últimos anos de vida. O seu segundo marido, César, o pai de Esvertina, havia requisitado uma perícia médica para suas atitudes estranhas. De modos que enquanto vasculharam em todos os setores da sua vida, ela mesma se rendeu. Diante César, aceitou que algo não estava bem. Sua forma de ser desrespeitosa com os clientes, que gerara um processo de maus tratos por uma viúva, suas birras, até mesmo seu modo de suspirar acintosamente mostrando sua incompatibilidade com os colegas, só poderiam ser uma afecção mental. Anselm tinha certeza que não era preciso ir muito fundo para saber que ela mentia. Mas por mais que tentasse achar uma lógica, o arranjo de colocá-la em um manicômio não se coadunava com uma reviravolta em que ela pudesse sair vitoriosa. A única explicação é que quando ela era uma simples advogada, ganhando três vezes menos, ela se sentia autorizada a aprontar seus pequenos teatrinhos, a erguer a estrutura piedosa de seus escândalos. Os outros advogados apenas a olhavam, com o nível de assombro despencando a cada renovada encenação, e deixavam para lá. Queriam saber de seus salários e voltarem para suas famílias. E talvez a questão fosse essa. Para qual família a mãe deles iria voltar? Não era questão do abandono parental que ela havia sofrido desde muito pequena, mas os indícios mostravam que ela não tinha sorte nesse quesito. Esvertina era uma adolescente rebelde, com a cabeça cheia de nada. A mãe encontrara anotações em uma agenda sobre dois abortos feitos em uma clínica clandestina. E ele mesmo, o que havia oferecido a ela? O álibi de uma omissão diante as tentações da juventude não se sustentava quando se considerava que de uma forma ainda pior ele abalara o coração da mãe. Ao menos haviam momentos em que as duas se desarmavam, um hormônio de harmonização feminina escorria dentro delas, mas quanto a ele, era só silêncio e uma opressiva solidão. Uma vez fizera a mãe gritar do nada, um grito animal, cheio do fermento do câncer que deveria já estar iniciando nela anos antecipados.

  A mãe nunca gostara dele e nunca disfarçara isso. Quando Cesar percebeu esse fato político no cerne da família, os dois conversaram. Era um homem que na época lhe parecera gigante_ Anselm tinha 17 anos_,  lhe dizendo que ele era um peso demais para a mãe. “Valéria não merece nessa instância da vida sustentar um filho já entrando na idade de sair de casa”, ele disse. Cesar tinha os olhos azuis, o rosto balofo, os braços recurvos e grossos evidenciando uma dinastia de embuchadores médio europeus cuja genética procurava ansiosa por pragmáticos melhoramentos cerebrais sem abrir mão de seu caráter étnico de vassalagem a raças imperiais dominantes. Sempre arvorava que seus pais eram descendentes diretos de alemães, aqueles caipiras obtusos com a  impressão sagrada de superioridade como se fossem os detentores de uma imagem santa achada num ribeirinho. Cultivavam palavras pequenas, consonantais, que defendiam ser denominações usadas por defloradores de olhares bonachões em idílicas aldeias cheias de vacas leiteiras. Era uma atração poderosa essa que sua mãe sentia por homens caricaturescos. O pai de Anselm era um protótipo do estancieiro moreno elegantemente selvagem. Anselm respondeu que precisava de um tempo, que assim que entrasse na faculdade iria dar o fora. Não pensava que ele lhe repassava uma sugestão da mãe, achava que ela conservava alguma reserva de calor que não lhe permitia aquilo. Mas Cesar aceitou, de forma mesmo considerável. Perguntou que curso ele se preparava para entrar, se fosse medicina os anos de espera por um aprovação no vestibular poderiam ser estendidos indevidamente, o que não seria o mais certo a fazer com a Valéria. Anselm disse que faria história, o que não se exigia muito para passar. E assim fora. No final do ano ele obteve uma nota média para ser aceito pela federal, e no meio do semestre seguinte arranjou emprego em uma distribuidora de bebidas, Foi morar em uma quarto em frente à praça universitária. O que para muitos seria um ritual de passagem traumático, para ele era um grande impulsor de felicidade. Na primeira semana ele se deitava no chão, colocando dois livros pegos com seu cartão de biblioteca como escoro da cabeça, e tinha sonhos esfuziantes. Nos finais de semana, que não tinha para onde ir, ele ficava ali, olhando os losangos impraticáveis que a luz vinda pelo canto da janela brincava ser possível no teto, pelo menos naquele seu reduto onde o absurdo era uma cláusula contratual que fizera com a sua divindade. Foi um prosseguimento para um nível de alta proficiência de sua paz interna, que sempre lhe havia acompanhado, e que agora ele tinha suficientes motivos para saber que era o componente mais poderoso de seu caráter. Nos primeiros meses a mãe seguia uma cartilha de emancipação progressiva, ligando para o telefone fixo do corredor entre os quartos, falando com uma voz forçadamente chorosa que ele tinha que voltar “para sua casa”. Uma vez recebera uma cesta de bolachas. Encaixado como um gesto de humor incompreensível entre os pacotes havia um pênis de chocolate em volta de uma camisa de um time de futebol. Dera as bolachas para a faxineira que vinha limpar os corredores toda semana e o chocolate ele comera, mordendo a cabeça tão empreendedoramente exagerada para parecer obscena que no final parecia um elmo de história em quadrinhos. Um legionário romano de Asterix que despejou uma gosma de leite condensado demasiadamente doce em sua língua. Por final ela parou de ligar, e ficaram sem contatos por dois anos. Foram anos de uma liberdade que ele achara de uma plenitude meritória para ter-se atrasado tanto em obtê-la. De certa forma deveria agradecer a César, por aquele ultimato viril, que um garoto desprovido da figura autoritária de um pai precisaria ter para ativar sua testosterona adormecida pela inércia doentia do tom materno.

   Mas voltando à mãe, quando então surgiu a oportunidade dela pegar a vaga recém criada de defensora pública, oferecida a ela por ela ser a mais velha da sala de advogados, ela aceitou. Não parecia em nada uma vantagem, pois teria que tratar com os seres mais degradados da esfera criminal e os acréscimos salariais que distinguiriam a nobreza da função não era uma expectativa certa. O governador sobre o qual caiu a obrigação judicial de montar a defensoria era um notório corrupto envolvido com as máfias de licitações mais perigosas do estado, de forma que todos sabiam que era uma furada. Seus colegas, os mesmos que fugiam de seus chiliques e fúrias intermitentes, consideraram que seria uma boa compensação cósmica ela quebrar a cara dessa maneira didática, e não lhe aconselharam sobre o que parecia o cumprimento de um carma evidente. Mas aconteceu algo inesperado. Em dois anos ela foi efetivada como primeira defensora pública do estado, com o estado abrindo concurso público e formalizando toda a ortodoxia do cargo. Em um mês sua mãe se tornou tão distinta quanto juízes, e o termo “doutora”, normalmente usado para ela com um leve tom de desprezo crítico, passou a ser uma nomenclatura cheia do temor sagrado que se tem diante um alto representante da corte. Seus colegas ficaram em uma pane conjunta em que repetiram em um quadro epidêmico circunscrito as caras de incredulidade ofendida. A louca iria ganhar três vezes mais que eles, mais os penduricalhos que vem com abonos salariais e horas extras. Esvertina contara a Anselm que quando a mãe, já vestida com um terno feminino com corte especial feito em uma alfaiataria de magnatas jurídicos, fora até sua antiga sala pegar seus pertences, seus cinco ou seis companheiros de anos de regime concêntrico ficaram estacados, como se uma esfinge improvável estivesse andando em fulgor lumínico entre eles. Calados, olhavam-na com o estarrecimento que no mais profundo âmago de suas memórias remetia a seres condenados à subserviência daquela geografia. A certeza da vitória da tolice espalhafatosa sobre a impressão de seus grandes e indescobertos méritos próprios diluída no sorrisinho de ódio aquiescente. E sua mãe se despedira deles usando um tom inédito de comedimento, um comedimento irritante, que deveria destruí-los continuamente toda noite diante a pobre mesa de jantar, o comedimento que era o propulsor das brigas com suas esposas e maridos, que levara eles a serem paus no cu nos trânsitos. Falara com uma voz na qual surgira do nada, de regiões ignotas do caráter, uma doçura de aristocrata falando com seus serviçais. Esvertina ria alto ao contar que a mãe passara de mesa em mesa dando-lhes um abraço, para o qual aqueles seres profundamente derrotados tinham que se levantar, cônscios de suas silhuetas paquidérmicas sedentárias, obrigando-os a emularem o mesmo tom um nível só acima do falsete descarado. Anselm se compadeceu daqueles seres, sentiu uma comunhão profunda com eles. Sentiu que era uma injustiça descomunal, inumana, que o destino fazia com eles, e tanto era mais dolorosa por ter sido uma chance extraordinária oferecida a todos e que eles abriram mão por suspeita de que só uma tola estúpida teria caído nela. E naquela altura de suas carreiras, um enredo de suspense compensatório e de redenção do patinho feio feito de maneira tão inesperadamente tardia, era de deixar qualquer um enlouquecido. Aqueles seres haviam sofrido de maneira sem igual o horror que era viver com alguém como sua mãe que nem ele e nem Esvertina haviam experimentado.

  Mas a história, obviamente, não havia acabado aí. Houve uma continuação. Houve espaço para um segundo volume das  aventuras extraordinárias de Valéria Dulabonde, seu “Vinte anos depois”, após suas proezas sem igual de Dartagnan eleita de forma gloriosamente bastarda para fazer parte da comitiva do rei. Anselm reconhecia os traços da comédia que a mãe estava acostumada a infligir quando era mais uma do rebanho apascentado do baixo funcionarismo público, acrescido da novidade do que ela jamais intuíra dos tons sombrios de tragédia quando ascendeu-se para sua posição de patinho feio. Se tivesse sido inteligente o suficiente para se acomodar a essa imagem, se tivesse lido algum manual de conduta do guerreiro da luz ou do sábio conselheiro bélico dos tempos do Japão imperial, que aliás não era uma literatura estranha para a classe de jovens defensores públicos que se atribuíam uma predestinação celestial por terem passado no concurso, estes teriam a visto como uma excentricidade obsoleta mas tolerável. Teriam mesmo uma reverência típica a que se destina a uma mascote levemente cômica por sua doidivanice semiletrada. Veriam o seu descompasso de instrução técnica e seus momentos em que trancava os músculos do pescoço ao lado de seus clientes, não conseguindo soltar a voz, de frente às altas cortes, como algo de certa forma natural que aquele estado da federação que tinha muitos atributos das atrasadas leis da metade do século XX lhes colocava pelo caminho da modernidade. Era um empecilho que, olhando da posição correta do alto de seus narizes esnobes (que uma dia a mãe chorou de angústia ressaltando para Anselm como eles eram prepotentes e esnobes!), era algo que até devotava o mérito às suas capacidades éticas de convivência com a obsolescência a ser varrida. Sua mãe lhe dizia sobre o que eles sussurravam nas primeiras semanas pelas suas costas, sobre sua idade, sobre sua tartamudez, sobre sua ignorância à princípios básicos das leis, até mesmo sobre seu modo excessivamente plebeu de conversar. Na festa de confraternização de fim de ano, a defensora pública colega dela que saiu com o seu nome no amigo secreto, no ato de descrição antes que o nome seja anunciado típico dessas brincadeiras_ em que os demais tem que decifrar e anunciar em voz alta assim que todos os aspectos do retrato estejam suficientemente pintados_, descreveu sua mãe com termos incisivos a tal ponto que a simpatia subjacente ao humor foi destruído na maneira como todos riam com uma chacota sarcástica. A moça falara coisas como “meu amigo um tanto tontinho”, no momento inicial onde não tinha limitado a questão para o gênero feminino, ao que, depois, usou termos de uma prolixidade tal que a mãe disse que lhe doíam mais por saber que ela exagerava o efeito da bebida para justificar sua falta de reservas. “Minha amiga confunde mandado de injunção com mandado de busca e  apreensão”, e no final, quando já estava claro há muito com quem ela saíra, quem entre todos aqueles distintos profissionais com taças na mão e o riso eximido de freios civilizados para a crueldade era a única que cabia dentro da descrição jocosa, a colega de sua mãe deu a estocada genial, o passo de esgrima covarde sobre a adversária já caída no chão que ficaria na memorial glorioso da categoria a ser lembrado para sempre. Ela disse: “minha amiga vem com roupas tão exuberantes e vitorianas que muitas vezes parece a rainha mãe de uma corte de Maria Joaquina”. E todos gritaram: “Valéria Dulabonde!”. Com os sorrisos lupinos incendiados da juventude de peles com a resplandecente camada subcutânea de gordura dos bem nascidos, dos que nunca sofreram na vida, dos que tinham todo o tempo do mundo para se enfiarem debaixo dos cobertores em suas camas continentais e estudarem dezoito horas por dia para o concurso. Enquanto sua mãe, que se formara em direito com muito custo quando Anselm era ainda criança, trabalhando meio período como escriturária em um cartório, em uma universidade de quinta categoria, teve que traçar seu caminho para a investidura no cargo pelas portas do fundo. Ela se levantou, encolhida de ódio e vergonha, e foi até o núcleo das mesas onde a moça estava com os braços estendidos e com uma expressão cênica simulando ternura para com aquela espécime de serviçal estrangeira de baixo nível que algum erro piedoso do estado instalara entre eles, os vencedores, os cultos, os poderosos e endinheirados. A moça era alta, de uma beleza protocolar fria que em outras circunstancias a mãe dissera a Anselm que nem seria vista na multidão, com suas bochechas demasiado infladas disfarçadas pela diminuição de peso que a função lhe fizera se impor com uma dieta, o corpo silhuetal metamorfoseado em fêmea sexualmente seletiva que despertava o perigo congratulatório nos homens em serem destruídos por aquela comunhão de mulher e divindade sob a qual recaía a decisão na balança de várias vidas e vários destinos. Ela lhe entregara o pacote floreado com um laço dourado caro, dando no rosto da mãe o toque sutil de face com face em que simulava um beijo de intimidade, e todos riam e transformavam os gestos em suas caras progressivamente em elegantes contrações contidas de asco e incredulidade. Tinham a ciência exata de aspergirem as quantidades certas de emoções de repúdio e solércia nas sinapses daquelas fibras nervosas ultracalibradas de seus músculos faciais. Tudo em nome da sofisticação de seus nomes de doutores, a mãe disse a Anselm. Ela não era nada tola, ao contrário do que eles achavam. Ela aliás tinha um jogo de cintura de descobrir a melhor solução para casos complicados de defesa que os livros não cobriam, mas sua experiência de trinta anos como auxiliar de promotoria sim. E esses mesmos colegas tinham o distanciamento de admitirem isso, se não fosse a soberba faraônica que cresciam dentro deles pela fusão nada autoelucidatória de hormônios da juventude e ego exacerbado. Quando sua mãe abrira o presente, na frente de todos, caiu-lhe no colo uma blusa branca de mangas compridas, ofensivamente amorfa, que não adiantava um espírito de boa vontade procurar nos mais estapafúrdios catálogos de moda que não encontraria um nicho social que a visse de outra maneira que não uma camisa de força. Nisso ninguém riu, como se todos tivessem combinado que a mensagem seria melhor difundida se impusessem caras sérias, averiguativas, como se fizessem uma metalinguagem para aumentar o efeito catártico de um humor elevado, como os grandes humoristas fazem ao conseguirem contar uma piada extremamente engraçada sem contraírem uma ruga de riso de suas bocas desproporcionalmente severas.

  “Uma camisa de força, Anselm”, a mãe lhe dissera, em uma tarde em que estavam no apartamento dela, ele, Helena, Esvertina, Luiz e os dois filhos do Luiz. Era aniversário de 65 anos dela, e ela lhe mostrara a peça ganha no amigo secreto, a retirando de um plástico barato, que Anselm não soube se era um envoltório que a mãe substituíra o original para dar maior figuração à crueza da ofensa, ou se a roupa é que era absurdo o suficiente para retirar qualquer possibilidade de atenuantes. A mãe a desdobrara, estendendo uma manga em comprido pelo forro da cama e logo em seguida a outra, como se estivesse desembrulhando um componente de alguma formulação culinária secreta e mágica, ao que seria até mesmo lógico que no centro do pano branco levemente já encardido houvesse uma caixinha enferrujada, contendo um pedaço de noz moscada. Eles não podiam ter feito isso com ela, Anselm se lembrou de ter pensado. Aquilo era mesmo uma camisa de força. Eles tinham tripudiado de maneira violenta para cima de sua mãe. Cesar apareceu no quarto, olhou para a roupa na cama com os olhos cheios de seu treinado poder de achar uma síntese libertadora para tudo, e riu, dizendo que tinha sido uma ótima piada. “Para uma advogada com altos índices de fiança conquistada para seus clientes, era uma boa metáfora associá-la à uma louca”, ele disse.

   Anselm admirara tamanha capacidade de inventar uma metafísica para atos materialmente mesquinhos por parte de César. Era óbvio que os colegas da mãe não estavam querendo dizer isso, não era mesmo um elogio. Mas não fazia mais parte de sua vida. Ele desceu os olhos para onde estava a mãe, sentada, e viu com a nitidez exclusiva dos filhos, que só o embrião reformulado e desenvolvido dentro das esferas biológicas de um progênie masculino seria capaz, que ela sofria, que ela sorria procurando seguir a solução civilizada do marido mas cujo sorriso não conseguia mais conter tanto inferno que havia dentro dela. Naquele instante Anselm soube que teria notícias sobre o que ela vinha fazendo naquele meio de abastados, pois era inevitável que o ambiente não havia favorecido nenhuma possível tentativa de mudança, de calma transfiguração, que ela tivesse se disciplinado a realizar. Anselm teve a nítida certeza de que ela havia aprontado das suas, que as loucuras que fazia entre os vira-latas encardidos iguais a ela no antigo gabinete da promotoria onde ela era tolerada por uma comunhão motivada pela economia de energia, haviam se promulgadas naquele olimpo judicial.

   As duas notícias ruins tinham vindo juntas. Foi na mesma semana que Helena perdeu espontaneamente o bebê que Esvertina lhe ligara dizendo que Valéria havia solicitado oficialmente tratamento psiquiátrico. Tinha-se passado seis meses do aniversário da mãe, quando ela lhe contara sobre a “camisa de força”, e Anselm teve a impressão de que o roteirista que estava escrevendo aqueles enredos secundários de sua vida havia acionado um ponto morto no quesito imaginação. Parecia uma trama de algum romancista francês oitocentistas que bebesse de forma enviesada influências das reviravoltas balzaquianas, colocando rimas pobres de eventos narrativos. Falar de camisa de força e logo em seguida ser enredado por uma era uma solução bastante preguiçosa. Anselm jamais esperava que sua mãe estivesse de alguma forma associada a doenças mentais, o que analisando posteriormente era quase uma ingenuidade seletiva do modo como ele a enxergava. Ele apostava que era um estratagema de sua mãe, aquela astuciosa atriz que usava com tremenda eficiência as instâncias mais piedosas de seu papel de coitadinha intelectualmente limitada. Lembrava de um filme em que Al Pacino, encenando Satanás, vaticinava que os verdadeiros detentores do poder requerem para si os disfarces de aleijados. Ele mesmo, o Pacino-diabo, entortando seu frágil corpo pequeno todo para um lado, para assim exercer sua maldade na invisibilidade que o manquejamento lhe outorgava ao sair do metrô. E era com essa mesma paleta manipuladora que a mãe se materializava para o mundo. Mas depois Anselm pôs-se a finalmente limpar sua visão para ver com lucidez sua mãe. Quando Esvertina lhe contara, pelo telefone, que Cesar havia internado Valéria sob a concordância dela em uma clínica psiquiátrica cara, ele estava em volta com a conclusão da outra ponta da tragédia, em que Helena estava passando por uma curetagem em um hospital público.

    Enquanto a mãe era colocada em um quarto privado, com ar condicionado, com cortinas beges que adensavam a textura da sombra envolvente de maneira rumorejante e confortável, com um aparato de especialistas e enfermeiras para lhe atender, Helena fora se livrar dos tantos vestígios que o feto lhe deixara ao escapulir de seu útero na ala de enfermaria do Hospital Municipal. Enfiaram-lhe espátulas de aço galvanizado pela vagina e o giraram de um lado para o outro, enquanto uma cânula de plástico sugava o material biológico que o menino desprendera em seu ato de fuga da existência: natas de sangue coagulados, tecidos amnióticos, grumos de células de um vermelho denso que não parecia de natureza humana, ao mesmo tempo que diante o olhar espantado de Helena eram as coisas mais profundamente humanas que ela já vira por virem com um traço de podridão inerente que mostrava algo do destino final daquilo tudo, de toda a carne e da vida. Era evidente que quando Helena lhe descrevera essas coisas, em uma carta que lhe enviara seis meses depois que o relacionamento deles acabara de vez, ela estava sob o direcionamento de uma depressão profunda, não se poupando desses termos niilistas. Um filho nunca fizera parte dos programas dos dois, mas em um moto contínum para salvarem a união eles passaram a desconsiderar os métodos profiláticos de impedir uma gravidez. Helena tinha o costume de brincar que Anselm era a última esperança num cronograma de relacionamentos terríveis de ter um casamento. Ele não deixava essas indiretas disfarçadas de leveza escoarem pelo ralo dos ouvidos e concebia em seu profundo inconsciente os arranjos para que aquela mulher tão destruída pelo restolho de homens ignóbeis e estúpidos não saísse de mãos abanando. Helena era deslumbrante de linda. Tinha olhos azuis esotéricos, era impossível se olhar para eles sem sentir um afluxo de correntes elétricas metafisicas atravessando o corpo. Era alta, morena, magra como uma guerreira egípcia, o que a fantasiação dessa figura absurda compensava pela sua inexistência histórica, pelo que tinha de correção pelo poder do verbo. Se alguma vez uma guerreira feminina egípcia tivesse existido, seria esplêndida de elevados atributos físicos manifestados nela. Não era uma mulher difícil de se sentir elogiado por ela trapacear em um jogo de conivência mútua para se engravidar dele. Que ariana de pele oliva, saída das fontes vigorosas do princípio da genética, haveria de querer levar no ventre senão de um homem que tivesse passado por algum critério de escolha? Ela encenava uma peça de Pinter no teatro, fazendo o papel de uma estoica social superior, com aquela impiedade implacável e santificadamente violenta típicas de Pinter, e vê-la no palco havia debilitado toda concepção estrutural da paixão de Anselm. Ele passara a ir assisti-la todas as noites de sexta e sábado, chegando mais cedo para se sentar na fileira da frente. Sua rendição a toda salvaguarda diante aquela cada vez mais clara armadilha do desejo que ele estava construindo para si atingia níveis tão sérios que ele delirava ao pensar que sentia as gotas de saliva caindo-lhe no rosto, cada vez que a personagem passava numa contenção de fúria a poucos centímetros dele. Apresentou-se ao diretor da peça, um sujeito tão arquetípico em sua fremência dispersa em não conseguir prestar atenção em nada por mais de poucos segundos que de longe qualquer um poderia sentir sua áurea de visionário anarquista imune ao envelhecimento, alegando que estava escrevendo um texto para seu jornal sobre feminismo libertário e crime. O sujeito não se entusiasmou nem um pouco pela eficiência promovedora que um jornal inexpressivo do qual ele nunca tinha ouvido falar teria para a peça, e nem essa tinha sido a impressão pretendida por Anselm, mas deixou que ele entrasse no camarim quando a encenação terminara para entrevistar a artista principal. Anselm então pode ver Helena pela primeira vez, desfeita da encarnação de frieza maquinal repetitiva cujas frases lacônicas ele já estava por decorar de tanto as ouvir em sua posição próxima ao palco, com os cabelos curtos se mostrando surpreendentemente enevolados e crespos sem os aparatos da personagem, e falando com os funcionários do teatro com tanta desenvoltura que por um momento acreditou que era uma espécie de mediunidade dessas em que o agente físico costuma ser escolhido pelo espíritos por ser o mais simplório possível, como se o fator de baixa sofisticação do hospedeiro fosse determinante para não macular a pureza do transe. Ela ria alto, em uma voz surpreendentemente masculinizada, e usava expressões debochadas que revelavam uma consciência exacerbada de sua sexualidade franca, não policiada, não competitiva. Talvez por Anselm estar no extremo oposto dessa consciência, vendo-a com o poder do fetiche renascido por uma mulher que faziam anos que ele se achava imune de retornar a sentir, que ele achou aquilo desamparadamente ofensivo, como se essa espontaneidade fluídica estivesse dizendo que ele não tinha nenhuma chance de vir a ser visto da maneira como desejaria por ela, que ela não iria voltar a se armar dos arsenais do antigo jogo entre macho e fêmea apenas por causa dele, armas que ela havia deliberadamente desprovida do uso por uma série de experiências elucidativas quanto à estultice dessas tolas dispostas e dessas abjetas danças de acasalamento.

    Não foi uma boa conversa. Pinter não fazia parte de suas leituras preferidas, o que ele lamentou pelas tantas opções que poderiam ter surgido para conduzir aquela atmosfera ilibada para alguma zona filosófica suburbana que lhe desse as diretrizes de como adentrar aquela muralha de prosaísmo. Talvez um memorial de duas leituras bem aplicado tivesse poupado a total impotência de como voltar a se aproximar dela nos próximos dias. Ela foi muito protocolar com ele, respondendo às perguntas com atenta educação. Ele viu que as unhas dos pés dela estavam com restos de antigo esmalte, e lhe impressionou que a cor fosse azul. Talvez fosse uma concordância não destituída de nonsense entre as partes mais equidistantes de seu corpo, os pés e os olhos, ou fosse mais um indício do pouco caso que ela fazia naquela época à etiqueta sexual. Os dedos dos pés logo acima das unhas eram tortos, sofridos, expressando uma rusticidade de árvore de deserto ao mesmo tempo que um utensílio técnico cujo sentido não estivesse imediatamente explícito. Pés pictóricos, vangohgianos. Ela havia posto um vestido de algodão negro, com as alças enlarguecidas pelo uso, mostrando a parte de cima dos seis, que eram concisos, atléticos, de uma maneira atrativamente insípido, como se estivessem restritos a um adendo de somenos importância ao resto suntuoso de beleza do rosto e do corpo. Como alguém como ela estivesse sozinho em um camarote à meia noite, conversando com um estranho jornalista como ele, enquanto umas cinco pessoas, a maioria homens, que fechavam o teatro,  não eram passíveis de serem destruídos pelos seus encantos, é que era um mistério? Sem nenhum pretendente ou noivo ou esposo ou namorado a esperando do lado de fora, com os olhos averiguadores da batalha contra eventuais usurpadores daquele tesouro.

   Encerrando a entrevista, ela se despediu e ambos saíram mudos, um pouco constrangidos, pela porta de trás do teatro, onde o zelador os esperava para trancar a fechadura. Ela não tinha carro e ele se ofereceu para pagar-lhe um taxi, sem antes perguntar onde ela morava. Ela acenou, os olhos pesquisando mais um objeto interior que tinha o destino de permanecer alheio ao mérito de interesse de Anselm. Resultou que a casa dela ficava em um subúrbio próximo ao centro, enquanto o apartamento em que Anselm morava ficava seguindo por uma das vias principais quilômetros abaixo. Ela desceu do carro dizendo um tchau que era a própria metáfora das condições climáticas da noite sem vento, sem frio, amorfa e atonal, uma despedida que não tinha a capacidade de se impregnar do menor grau de dramaticidade que os envolvesse nem distantemente da condição de futuros amantes. Anselm voltou para casa olhando as ruas desertas, as luminárias de um depósito de bebidas gigantesco, a concessionária de carros alemã, catalogando aqueles pontos de fixação que lhe ocuparam a vida inteira sem significado algum e que agora transiam de uma aura metafísica que prometia ceder a alguma espécie de síntese se fossem pressionados.

   Não teve tempo de dar ouvidos à sua voz interna de que estava sendo ridículo. Comprou em uma livraria do centro, que foi na tarde do dia seguinte, dois livros contendo quatro peças de Pinter. Leu-as no mesmo dia, sentindo como se em vez de em celebração com a sinestesia de um autor de percepção superior ele estivesse prolongando em uma realidade alternativa interminável a conversa com ela. Arrancou sorrisos que seu conhecimento cênico sabia só serem possíveis depois que muito decantados por conversas direcionadamente tolas, sorrisos que soavam a voz incomumente barítona para uma mulher tão bela. E então ele voltou à casa dela, de madrugada, e se sentou na esquina, debaixo de um cajueiro mirim cujas frondes tombadas sobre um muro baixo com uma cerca artesanal de ferro o obscurecia, sentindo-se um Cyrano de Bergerac. Não tinha o sonho disparatado de que ela fosse aparecer, apenas queria nutrir aquela redução de maturidade e de razão que aquele sentimento súbito por um mulher o fazia sentir. Talvez tivesse ficado muito tempo na seara do intelecto e o que se passava consigo fosse um mecanismo de compensação psíquico que exigia controle, e ele estava receoso por desconhecer o quanto ele mantinha de áreas confiáveis de si que permitiria frear na hora certa.

   Ele voltou para casa andando a pé. Demorou para que encontrasse os sem tetos, deitados dois quarteirões à frente da concessionárias, sob a marquise de um grande shopping de produtos importados. Subiu para seu apartamento, disposto a esquecer. No elevador, olhou-se no espelho, desprezando a câmera pela qual o sonolento porteiro com cara de capanga menor da Cosa Nostra, com sua afilada mandíbula não confiável, deveria estar lhe olhando, com um deboche satisfeito pelos atributos distintos da baixa classe comunal que aquela moradia barata exsudava. Entrou no apartamento, que ainda estava no espectro etário do desmazelo do final de sua vida de solteiranice, antes que o aprendizado sobre os benefícios da economia da organização sistemática pessoal lhe fosse herdado de seu casamento, e se deitou no colchão fino estendido por sobre o piso liso da sala. Coçou a barba, pensando se não era ela, a barba, que tinha posto tudo a perder, não tendo mais a suficiente ancoragem em seu distanciado auto-escrutínio para ficar imune a esse tipo de conjecturas imaturas. Que se danassem Pinter e suas mulheres impiedosas, partícipes agraciadas da escumalha masculina. Era um poço de atração irresistível, ele pensava, que mexia com todos os entulhos traumáticos e tribais que ele levava dentro do seu torturado coração juvenil. Que ele exortasse de si todo coração juvenil, toda juventude, toda necessidade efervescentemente deleitosa de destruição por uma nêmeses. Tudo o que importava para ele era aquele apartamento suburbano, aquela comunhão de pessoas pobres que andavam com seus ressaibos de orgulho cívico pelos cantos, se olhando de esguelha com sorrisos intimamente pedindo misericórdia. Ele era um daqueles leões castrados, ornamentos do circo falido e mambembe da sociedade a qual tinha sido uma piedade imensa ter-lhes aceito se integrarem nela com esse disfarce. Ele queria a invisibilidade e havia trabalhado herculeamente por ela a vida toda, e não seria uma recaída ignóbil a um fetiche mal digerido, aparecido do nada, com a fulgurância do lixo dessensibilizante que a sexualidade extrema da mentalidade midiática impunha, que o faria perder tudo aquilo. Com isso em mente, Anselm passou a esquecer de Helena, com a mesma isenção de drama que acondicionara todo o imobiliário de seu mundo particular. E teria ficado assim, tudo tendo sido evitado, se ele, dois meses depois, por pura afasia, pura falta do que fazer, não tivesse voltado ao teatro da praça, onde uma outra peça de Pinter estava sendo encenada, sentando-se dessa vez na última poltrona, e quando as luzes se apagaram e o público ralo composto em sua maioria por universitários provavelmente sem outra coisa melhor para fazer do que usarem suas meia-entradas foi embora, ele foi sem pedir a ninguém ao camarim e bateu à porta. Ele percebeu sons de pessoas detrás das outras portas, falando com uma euforia de fim de expediente. Não havia dessa vez nem o zelador do prédio, o que lhe pareceu de uma estranha solidão pictórica que ela estivesse sob a convergência daquelas obrigações regulamentares, ao vê-la sentada na cadeira em frente ao espelho, ao lhe dizer de lá de dentro um “pode entrar”, como se aquela mesma solidão fosse a garantia compensatória de que num limbo como aquele seria impraticável que quem estivesse a lhe bater à porta fosse um perigo de qualquer natureza. E Anselm foi até ela, procurou algum outro assento que pudesse usar para dirimir o súbito aspecto desagradável surgido de um homem inesperado como ele se interpondo com sua estatura ao lado de uma figura feminina quase servilmente sentada, mas não achou. Haviam cadeiras dispostas ao longo da parede com outros espelhos, mas todas estavam ocupadas com peças de roupas coloridas, fustons, cachecóis, bonés de imigrantes sicilianos, echarpes, uma peruca loira bastante artificial que ele não lembrava ter sido utilizada no palco, e mesmo um gato, que transparecia sobre a insistência espantada de um segundo olhar averiguativo os olhos espectrais que pareciam mantidos em Anselm até que Anselm o notasse, como se fosse essa a única culminância aceitável da brincadeira, podendo ele então retornar à observância secreta de outras realidades inapreensíveis através dele.

   Helena se endireitou na cadeira, sentando-se com os dois lados dos glúteos, e antes que se virasse de todo para vê-lo com a opulência daqueles olhos azuis que tinham tanto cabalismo arrebatador que talvez fosse pela competição injusta que o gato se mostrasse tão borocoxô, ela esfregou com força enfática um lenço umedecido no rosto. Ela parou um instante, o observando, vai ver o localizando na memória, reconhecendo de alguma noite ligeira e inofensiva aqueles olhos arregalados, cheios de um temor incrustrado na aquisição da experiência que ela pela primeira vez constatou, com a antena sensitiva da boa estudante das nuances humanas, que eram investidos de maneira astuciosa de um pouco convincente aspecto de intrepidez.

  _ Olá, eu conheço você!_ ela disse.

 Aquele jeito de populacho, aquele espírito de ralé pinteriano, sempre deixava Anselm desconcertado. Exprimia um poder espontâneo com tanto direito de proficiência que seria inútil lhe causar inveja. Ele se sentia descompensado diante aquele modo de falar, que na verdade era mais do que isso, um posicionamento filosófico. Por mais que ele se violentasse em seus textos para retirar uma fístula daquele traquejo indolente do mais fundo de si, diante aquele desleixo satisfeito diante o que a vida tinha de mais perverso e incontrolável ele se sentia uma criança. Fascinava-o e o incomodava ao mesmo tempo, fazendo nascer nele uma espécie de melindre reacionário. Por que ela não se comportava como uma mulher decente se comporta?, ele pensava, com truculência defensiva.

   Ele respondeu o que tinha na língua, e não na mente esvaziada de artifícios diante a artimanha distribuída hipotenusicamente entre ela e o gato. Disse que havia vindo para vê-la e perguntar se ele poderia mais uma vez acompanhá-la em casa. Talvez evitassem alguma eventualidade indesejada do destino, ele juntou sem o menor sentido, pensando, nem ele mesmo sabia, que uma insinuação dos velhos modelos clássicos de proteção feminil pelo macho lhe diminuísse o temor que sentia diante a independência dela. Ela lhe olhou séria, pensando de modo calculado sobre a oferta, o flerte, ou o simples pedido de companhia em um universo que para um homem com o aspecto desamparado dele devia parecer inamistoso e solitário, e colocou o papel umedecido por sobre o balcão em frente ao espelho. Estudava as inconveniências dessa proposta, sem nenhum traço de medo, apenas pelo prisma de causas e efeitos. Anselm por um momento pensou se não poderia violar aquela irritante segurança dela, aquela empáfia de um exclusivismo de intangibilidade, segurando-a pelos braços, erguendo-a da cadeira e a atirando em cima de uma das pilhas de tecidos disformes do chão. Talvez ela fosse uma dessas mulheres, que eram de certa raridade afinal de contas, essas que são soberbas até um ponto em que o homem adequado restituam-lhes a ordem natural administrando-lhes uma dose bem dada de truculência. Seria algo do tipo que os fins justificam os meios, e toda a brutalidade resultaria à força de alguns minutos em quebrar o gelo em um nível conquistado de entendimento amplo. Se ele partisse para cima dela e desferisse-lhe  um soco no rosto, não seria uma economia gigantesca de energia para chegaram logo a uma ternura incontestável? Nisso ele ouviu um rumorejar de alerta, uma interjeição feita com uma desenvoltura profissional na garganta, vindo do canto esquerdo de onde ele estava. Com espanto nos olhos, Anselm viu sentado por detrás de uma mini parede levantada ali sem propósito algum a não algum obscuro atendimento a treinos cênicos particulares antes que os atores entrassem no palco, um homem careca, rotundo, de porte mediano que em vez de diminuir acentuava sua musculatura, bem munido de braços que de tão hiperatrofiados deixavam as mangas da camisa de sarja bege a ponto de explodirem. Ele olhava Anselm com uma malícia veemente, fixando-lhe diretamente a alma, como dizem, o que fez Anselm ter ciência de que lera-lhe aquele pensamento bárbaro cheio de incorreção e rancor, e por isso o brilho assassino de cão de guarda feroz nos cantos das pupilas, como se falasse através dele “tente”, “ouse tentar dar um murro na cara dela”. A cabeça dele era incomumente cheia de arestas, como se algum arquiteto não muito certo da cabeça tivesse-lhe esculpida e firmado arcobotantes como base de alguma peça maior, incongruente e incompreensível, que nunca fora concluída. Anselm pensou em Aleister Crowley, uma figura que despertara-lhe medo em algum momento da infância e que nunca se lhe apresentara meritório de levar a sério de tal modo que a falta de digestão desse sentimento resultara em uma sombra de insinuante ameaça toda vez que se confrontava com analogias.

  _ Esse é Ernesto, meu segurança_ ela disse, notando o desconforto.

  Ernesto não moveu um braço, nem mesmo quando Anselm fez um gesto de cumprimento. Em resposta seu olhar ficou ainda mais malicioso, como se a solução lógica fosse ele denunciar as intenções da imaginação alternativa impraticável de Anselm. Ela se levantou, pegou o casaco que estava pendurado em um suporta na parede, e disse “vamos”. Se movimentava como um lince. Sua cintura era incomumente fina, a ponto de se não fosse a iconografia libidinosa da fera poderia parecer um defeito.

   Lá fora, andando ainda sem programação certa, ela lhe disse que Ernesto era gay. “Mas duvido que você faça seu tipo”, ajuntou, sorrindo alto e escorando a cabeça no ombro de Anselm, em um gesto cuja fugacidade acentuava seu coloquialismo. Talvez ela estivesse mais predisposta a fazer os ritos sociais com aquele sujeito tão travado. Mais tarde ele saberia que ela o vira como um estudo clínico, como parte de uma atitude altruísta em evitar suicídios, ou colorir com tons menos lúgubres um filtro de depressão. Os dentes dela eram muito amarelados e ligeiramente tortos, não tão ligeiramente a ponto de ser a única coisa que lhe tirava aquela soltura toda. Era seu calcanhar de Aquiles. Ela havia tido um acidente no laboratório de química do curso de enfermagem e aspirado brometo de selênio, ela lhe disse. Ela era formada em enfermagem mas nunca exercera.

   _ Ele também é telecinético_ Anselm disse, enquanto cortavam pela praça do General, onde o Mendigo do Inverno estava sentado no mesmo local inadmoestável de sempre.

   Anselm o via sempre que passava pela praça. Um templário de casaco amarfanhado, bem fechado no pescoço e punhos, com uma barba samarcanda à altura do pomo-de-adão. Tinha olhos de quem reza segurando uma cimitarra por debaixo do pano grosso que o protegia da chuva e do sol. Naquela cidade em que se fazia campanhas com pequenos cartazes afixados ao lado dos semáforos, onde se lia “não deem esmolas aos mendigos”, a secreta proteção divina que atendia à sua fidelidade o mantinha invisível.  Talvez só Anselm o visse, fosse uma espécie de djin que se materializava toda vez que ele cruzava por ali. Helena, porém, deveria ser partícipe da mensagem que um dia ele estava destinado a revelar, pois ela também o viu. Olhou-o com genuíno interesse, como se tivesse uma sinestesia reversa de identificação. Talvez fosse um Aleph, um portal para um ponto futuro. Talvez depois de tudo, depois que o drama que se iniciava ali fosse concluído com todos os purgativos morais da compreensão, Anselm fosse descobrir que era um espelho temporal, que não estava vendo nada mais do que a si mesmo.

   _ Ele parece ter uma áurea espiritual_ ela disse, o homem não a ouvindo dentro da bolha de concentração em que estava._ Parece entender alguma coisa que está alheia a nosso nível de frequência.

   Mas Anselm disse que falava de Ernesto.

 _ Ele leu meus pensamentos e viu um momento em que minha imaginação traçou um rumo muito ruim para essa noite.

 _ Humm_ ela soltou-lhe o braço, que vinha segurando para poder andar por sobre as pedras desencaixadas sob a sombra da praça.

  Foi o momento em que ela se mostrou mais objetiva. Seria fácil descartá-lo se aquilo se mostrasse de alguma maneira inconveniente. Umas duas palavras em sua linguagem interseccionante com o submundo e a ausência efetiva de ponderação e aquilo tudo seria subtraído de seu horizonte de eventos. Seria uma brincadeira de mal gosto salientar um humor impossível por detrás de um ato de violência.

 _ Ernesto é leão de chácara. Trabalha em estâncias e boates da alta sociedade. Não é por ser gay que ele não teria lhe dado uma chave de braço que te enviaria para o hospital. Ser gay na verdade aumenta o potencial deletério dele.

   Ele esperou se era uma frase de efeito que teria uma explicação, mas ela se calou, olhando o chão com os olhos bem abertos. Calçava uma sandália de salto alto que em qualquer outra confluência de razões seria um erro terrível à sua incolumidade física. Para ela não interessava o mínimo, mas para alguma vertente incognoscível de presciência cósmica, aqueles sapatos eram como o jarrete de uma força divinatória, que transformava aqueles bloquetes desconjuntados e lombadas de raízes das grandes ceibas em uma barreira sobre a qual ela flutuava em um equilíbrio infalível. Um passo em falso foi possível em todo essa estrutura sincronizada, mas que resultou apenas em um salto que as longas pernas dela se firmaram em um espaço de terra antes da calçada. Como se precisasse de um instante para computar aquele erro solucionado no improviso de sua memória corporal, ela parou e se virou para ele, de olhos baixos. Seria a despedida, era o que estava escrito naquela silhueta de uma gazela salomônica, que voltava a negar qualquer tipo de direito a Anselm.

  _É claro que eu não sou esse tipo de homem. Jamais machuquei nenhuma mulher na minha vida_ ele disse.

   Ela sorriu diante o tom juvenil dele e por um breve instante deixou ver que toda sua zanga era uma trapaça.

 _ Nem em situações em que um certo machucar fosse bem-vindo?_ ela perguntou, recolhendo o sorriso para que o arrulhar que o sorriso fazia no espaço fechado da boca estivesse à altura de expressão de um certo erotismo.

   Se ela esperava algum constrangimento por parte dele como seguimento à sua timidez juvenil, a sinceridade com que ele respondeu a desarmou.

 _ Não. Nem isso. Para todos os fins eu sou um macho alfa fracassado.

 Ela então, para tentar restituir algo de sua superior indiferença controlada, resolveu arriscar.

 _ E se aparecesse alguém agora, nessa hora da noite, um homem que transpirasse masculinidade de forma irresistível, um trânsfuga, um bandido, e se mostrasse uma ameaça que iria me subtrair de sua companhia. O que você faria?

  Anselm olhou o céu, povoado de estrelas, e suspirou profundamente, em silêncio. Pela primeira vez ela abaixou os ombros e se tornou natural, de uma forma que Anselm pôde ver como ela deveria ser na verdade. A naturalidade de mulher desleixada, sexualmente liberada, de ideias de gênero radicais, era uma última carapaça que ela usava. Ele pensou quantas máscaras ela havia posto em prática e desistido, em sua atuação política na existência, para chegar até aquela, inamistosamente solitária e polida. Naquele momento os dois nutriram, em um intervalo que não deve ter durado um minuto, uma intensa admiração mútua, como dois jogadores de xadrez que reconhecem de súbito após uma série de disputas imperturbavelmente consensuais os atributos verdadeiros debaixo das técnicas aprimoradas e dos embustes posturais.

  _ Bom, eu iria me esfolar todo e sairia com muitos ossos quebrados, dependendo de se você quisesse ou não ser levada por esse bandoleiro.

  Ela caminhava lentamente, somente agora ele percebeu isso, que estavam caminhando já não prestando atenção nos passos, e ela emitiu um sorriso que Anselm computou como finalmente o primeiro sorriso dela para ele. As pontas dos lábios se estenderam, mostrando o traçado dos dentes dela, e os olhos ficaram cheios de uma alacridade simpática. Daí em diante, por alguns meses, oito ao todo para ser exato, eles então se conheceram e se entregaram um ao outro, e seis desses meses foram incomumente felizes, cheios da sensação levitacional do amor. Seis meses entre oito, para qualquer perspectiva matemática, era uma boa estatística, mas o inferno dos outros dois meses fora tão devastador que toda a memória ficara comprometida pela mácula deles advinda.

domingo, 18 de agosto de 2024

Um livrinho só

 



É muito perigosa essa veneração inconsciente que o brasileiro sente pela televisão. O Brasil por décadas teve um único e restrito ambiente midiático, construído por duas ou três emissoras de tv que moldaram o imaginário nacional. Foram décadas em que as oligarquias fizeram o que queriam com a gente, através da grande arma de imbecilização dominadora da tv. Digo isso pois vivi os anos 70, 80, 90 e 2000, e ela, a tv brasileira, sempre esteve presente, alerta, ditatorial, zelosa pelo grande capital de ignorância coletiva que ela criou. Nós somos o único país do mundo que teve um velho vestido de palhaço jogando bacalhau na cara da plateia. O único país do mundo que uma loira seminua apresentava um programa para crianças. A TV mudava o regime político, decidia quando reinstauraria uma democracia frágil na medida de seus interesses, escolhia presidentes, escolhia corte de cabelo e posturas estéticas. A TV dominava tudo, tudo. Como nunca aconteceu antes em nenhum outro país, não com a perversão de mostrar coisas como simulações de cenas pornôs na hora do almoço para toda a família, como na Banheira do Gugu. Então, quando vejo pessoas que se dizem leitoras, esclarecidas, cantando loas para Silvio Santos, eu me pergunto para que serve um livro para essas pessoas. Não é gosto. Não é respeito à liberdade de consumir a besteira que quiser. Mas sim constatar como o efeito dessa doença imposta no país é grave e difícil de se erradicar. É graças a essa exposição tão radical e massiva a esse vazio programado que foi possivel um Collor e um Bolsonaro chegarem à presidência. A idolatria por palhaços fascistas como Bolsonaro surge com a idolatria a pessoas como Silvio Santos, a ponto de criar a falácia incontestável de que Sílvio é "o maior comunicador do mundo", um homem bom, de bom coração, etc, etc. Se um livro não serve para enriquecer a consciência e ampliar os poderes mentais para enxergar a obviedade de que esse Sílvio nunca passou de um instrumento para essas oligarquias, ou se está lendo os livros errados ou então se está lendo muito mal. Eu nem digo ler livros de história, mas, eu imagino, ler autores como Thomas Mann, Olga Tokarczuk, ou uma gama de outros de mesmo nível independente de qual país venham. Um livro bem lido, escrito por alguém com uma real elevação de pensamento, não permite jamais que alguém veja em Sílvio Santos ou em atores e jornalistas da tv próceres da grandeza cultural de um país. Pelo contrário, um livrinho, um livrinho só, desses que tem a nobreza intelectual de poder colocar os pés na mesa, lido com o devido envolvimento, já dá as bases para se saber os canalhas que esses "heróis" na verdade são.