Sua mãe havia sido uma
defensora pública. Quando morreu, foram prestadas homenagem a ela pelo estado.
Escritórios de advocatícia mandaram coroas de flores com os sobrenomes dos
sócios escritos. Olhando-a no caixão, o rosto maquiado para atenuar o inchaço
dos remédios, não era para qualquer um a insinuação do quanto foram
inglórios seus últimos anos de vida. O seu segundo marido, César, o pai de
Esvertina, havia requisitado uma perícia médica para suas atitudes estranhas.
De modos que enquanto vasculharam em todos os setores da sua vida, ela mesma se
rendeu. Diante César, aceitou que algo não estava bem. Sua forma de ser
desrespeitosa com os clientes, que gerara um processo de maus tratos por uma
viúva, suas birras, até mesmo seu modo de suspirar acintosamente mostrando sua
incompatibilidade com os colegas, só poderiam ser uma afecção mental. Anselm
tinha certeza que não era preciso ir muito fundo para saber que ela mentia. Mas
por mais que tentasse achar uma lógica, o arranjo de colocá-la em um manicômio
não se coadunava com uma reviravolta em que ela pudesse sair vitoriosa. A única
explicação é que quando ela era uma simples advogada, ganhando três vezes menos,
ela se sentia autorizada a aprontar seus pequenos teatrinhos, a erguer a
estrutura piedosa de seus escândalos. Os outros advogados apenas a olhavam, com
o nível de assombro despencando a cada renovada encenação, e deixavam para lá.
Queriam saber de seus salários e voltarem para suas famílias. E talvez a
questão fosse essa. Para qual família a mãe deles iria voltar? Não era questão do
abandono parental que ela havia sofrido desde muito pequena, mas os indícios
mostravam que ela não tinha sorte nesse quesito. Esvertina era uma adolescente
rebelde, com a cabeça cheia de nada. A mãe encontrara anotações em uma agenda
sobre dois abortos feitos em uma clínica clandestina. E ele mesmo, o que havia
oferecido a ela? O álibi de uma omissão diante as tentações da juventude não se
sustentava quando se considerava que de uma forma ainda pior ele abalara o
coração da mãe. Ao menos haviam momentos em que as duas se desarmavam, um
hormônio de harmonização feminina escorria dentro delas, mas quanto a ele, era
só silêncio e uma opressiva solidão. Uma vez fizera a mãe gritar do nada, um
grito animal, cheio do fermento do câncer que deveria já estar iniciando nela
anos antecipados.
A mãe nunca gostara dele e nunca disfarçara
isso. Quando Cesar percebeu esse fato político no cerne da família, os dois
conversaram. Era um homem que na época lhe parecera gigante_ Anselm tinha 17
anos_, lhe dizendo que ele era um peso
demais para a mãe. “Valéria não merece nessa instância da vida sustentar um filho
já entrando na idade de sair de casa”, ele disse. Cesar tinha os olhos azuis, o
rosto balofo, os braços recurvos e grossos evidenciando uma dinastia de embuchadores
médio europeus cuja genética procurava ansiosa por pragmáticos melhoramentos
cerebrais sem abrir mão de seu caráter étnico de vassalagem a raças imperiais
dominantes. Sempre arvorava que seus pais eram descendentes diretos de alemães,
aqueles caipiras obtusos com a impressão
sagrada de superioridade como se fossem os detentores de uma imagem santa
achada num ribeirinho. Cultivavam palavras pequenas, consonantais, que
defendiam ser denominações usadas por defloradores de olhares bonachões em
idílicas aldeias cheias de vacas leiteiras. Era uma atração poderosa essa que
sua mãe sentia por homens caricaturescos. O pai de Anselm era um protótipo do
estancieiro moreno elegantemente selvagem. Anselm respondeu que precisava de um
tempo, que assim que entrasse na faculdade iria dar o fora. Não pensava que ele
lhe repassava uma sugestão da mãe, achava que ela conservava alguma reserva de
calor que não lhe permitia aquilo. Mas Cesar aceitou, de forma mesmo
considerável. Perguntou que curso ele se preparava para entrar, se fosse
medicina os anos de espera por um aprovação no vestibular poderiam ser
estendidos indevidamente, o que não seria
o mais certo a fazer com a Valéria. Anselm disse que faria história, o que
não se exigia muito para passar. E assim fora. No final do ano ele obteve uma
nota média para ser aceito pela federal, e no meio do semestre seguinte
arranjou emprego em uma distribuidora de bebidas, Foi morar em uma quarto em
frente à praça universitária. O que para muitos seria um ritual de passagem
traumático, para ele era um grande impulsor de felicidade. Na primeira semana
ele se deitava no chão, colocando dois livros pegos com seu cartão de
biblioteca como escoro da cabeça, e tinha sonhos esfuziantes. Nos finais de
semana, que não tinha para onde ir, ele ficava ali, olhando os losangos
impraticáveis que a luz vinda pelo canto da janela brincava ser possível no
teto, pelo menos naquele seu reduto onde o absurdo era uma cláusula contratual
que fizera com a sua divindade. Foi um prosseguimento para um nível de alta
proficiência de sua paz interna, que sempre lhe havia acompanhado, e que agora
ele tinha suficientes motivos para saber que era o componente mais poderoso de
seu caráter. Nos primeiros meses a mãe seguia uma cartilha de emancipação progressiva,
ligando para o telefone fixo do corredor entre os quartos, falando com uma voz
forçadamente chorosa que ele tinha que voltar “para sua casa”. Uma vez recebera
uma cesta de bolachas. Encaixado como um gesto de humor incompreensível entre
os pacotes havia um pênis de chocolate em volta de uma camisa de um time de
futebol. Dera as bolachas para a faxineira que vinha limpar os corredores toda
semana e o chocolate ele comera, mordendo a cabeça tão empreendedoramente
exagerada para parecer obscena que no final parecia um elmo de história em quadrinhos.
Um legionário romano de Asterix que despejou uma gosma de leite condensado
demasiadamente doce em sua língua. Por final ela parou de ligar, e ficaram sem
contatos por dois anos. Foram anos de uma liberdade que ele achara de uma
plenitude meritória para ter-se atrasado tanto em obtê-la. De certa forma
deveria agradecer a César, por aquele ultimato viril, que um garoto desprovido
da figura autoritária de um pai precisaria ter para ativar sua testosterona
adormecida pela inércia doentia do tom materno.
Mas voltando à mãe, quando então surgiu a
oportunidade dela pegar a vaga recém criada de defensora pública, oferecida a
ela por ela ser a mais velha da sala de advogados, ela aceitou. Não parecia em
nada uma vantagem, pois teria que tratar com os seres mais degradados da esfera
criminal e os acréscimos salariais que distinguiriam a nobreza da função não
era uma expectativa certa. O governador sobre o qual caiu a obrigação judicial
de montar a defensoria era um notório corrupto envolvido com as máfias de
licitações mais perigosas do estado, de forma que todos sabiam que era uma
furada. Seus colegas, os mesmos que fugiam de seus chiliques e fúrias
intermitentes, consideraram que seria uma boa compensação cósmica ela quebrar a
cara dessa maneira didática, e não lhe aconselharam sobre o que parecia o
cumprimento de um carma evidente. Mas aconteceu algo inesperado. Em dois anos
ela foi efetivada como primeira defensora pública do estado, com o estado
abrindo concurso público e formalizando toda a ortodoxia do cargo. Em um mês
sua mãe se tornou tão distinta quanto juízes, e o termo “doutora”, normalmente
usado para ela com um leve tom de desprezo crítico, passou a ser uma
nomenclatura cheia do temor sagrado que se tem diante um alto representante da corte.
Seus colegas ficaram em uma pane conjunta em que repetiram em um quadro
epidêmico circunscrito as caras de incredulidade ofendida. A louca iria ganhar
três vezes mais que eles, mais os penduricalhos que vem com abonos salariais e
horas extras. Esvertina contara a Anselm que quando a mãe, já vestida com um
terno feminino com corte especial feito em uma alfaiataria de magnatas
jurídicos, fora até sua antiga sala pegar seus pertences, seus cinco ou seis
companheiros de anos de regime concêntrico ficaram estacados, como se uma
esfinge improvável estivesse andando em fulgor lumínico entre eles. Calados,
olhavam-na com o estarrecimento que no mais profundo âmago de suas memórias
remetia a seres condenados à subserviência daquela geografia. A certeza da
vitória da tolice espalhafatosa sobre a impressão de seus grandes e
indescobertos méritos próprios diluída no sorrisinho de ódio aquiescente. E sua
mãe se despedira deles usando um tom inédito de comedimento, um comedimento
irritante, que deveria destruí-los continuamente toda noite diante a pobre mesa
de jantar, o comedimento que era o propulsor das brigas com suas esposas e
maridos, que levara eles a serem paus no cu nos trânsitos. Falara com uma voz
na qual surgira do nada, de regiões ignotas do caráter, uma doçura de
aristocrata falando com seus serviçais. Esvertina ria alto ao contar que a mãe
passara de mesa em mesa dando-lhes um abraço, para o qual aqueles seres
profundamente derrotados tinham que se levantar, cônscios de suas silhuetas
paquidérmicas sedentárias, obrigando-os a emularem o mesmo tom um nível só
acima do falsete descarado. Anselm se compadeceu daqueles seres, sentiu uma
comunhão profunda com eles. Sentiu que era uma injustiça descomunal, inumana,
que o destino fazia com eles, e tanto era mais dolorosa por ter sido uma chance
extraordinária oferecida a todos e que eles abriram mão por suspeita de que só
uma tola estúpida teria caído nela. E naquela altura de suas carreiras, um
enredo de suspense compensatório e de redenção do patinho feio feito de maneira
tão inesperadamente tardia, era de deixar qualquer um enlouquecido. Aqueles
seres haviam sofrido de maneira sem igual o horror que era viver com alguém
como sua mãe que nem ele e nem Esvertina haviam experimentado.
Mas a história, obviamente, não havia acabado
aí. Houve uma continuação. Houve espaço para um segundo volume das aventuras extraordinárias de Valéria Dulabonde,
seu “Vinte anos depois”, após suas proezas sem igual de Dartagnan eleita de
forma gloriosamente bastarda para fazer parte da comitiva do rei. Anselm
reconhecia os traços da comédia que a mãe estava acostumada a infligir quando
era mais uma do rebanho apascentado do baixo funcionarismo público, acrescido
da novidade do que ela jamais intuíra dos tons sombrios de tragédia quando
ascendeu-se para sua posição de patinho feio. Se tivesse sido inteligente o
suficiente para se acomodar a essa imagem, se tivesse lido algum manual de
conduta do guerreiro da luz ou do sábio conselheiro bélico dos tempos do Japão
imperial, que aliás não era uma literatura estranha para a classe de jovens
defensores públicos que se atribuíam uma predestinação celestial por terem
passado no concurso, estes teriam a visto como uma excentricidade obsoleta mas tolerável.
Teriam mesmo uma reverência típica a que se destina a uma mascote levemente
cômica por sua doidivanice semiletrada. Veriam o seu descompasso de instrução
técnica e seus momentos em que trancava os músculos do pescoço ao lado de seus
clientes, não conseguindo soltar a voz, de frente às altas cortes, como algo de
certa forma natural que aquele estado da federação que tinha muitos atributos
das atrasadas leis da metade do século XX lhes colocava pelo caminho da
modernidade. Era um empecilho que, olhando da posição correta do alto de seus
narizes esnobes (que uma dia a mãe chorou de angústia ressaltando para Anselm
como eles eram prepotentes e esnobes!), era algo que até devotava o mérito às
suas capacidades éticas de convivência com a obsolescência a ser varrida. Sua
mãe lhe dizia sobre o que eles sussurravam nas primeiras semanas pelas suas
costas, sobre sua idade, sobre sua tartamudez, sobre sua ignorância à
princípios básicos das leis, até mesmo sobre seu modo excessivamente plebeu de
conversar. Na festa de confraternização de fim de ano, a defensora pública
colega dela que saiu com o seu nome no amigo secreto, no ato de descrição antes
que o nome seja anunciado típico dessas brincadeiras_ em que os demais tem que
decifrar e anunciar em voz alta assim que todos os aspectos do retrato estejam
suficientemente pintados_, descreveu sua mãe com termos incisivos a tal ponto
que a simpatia subjacente ao humor foi destruído na maneira como todos riam com
uma chacota sarcástica. A moça falara coisas como “meu amigo um tanto
tontinho”, no momento inicial onde não tinha limitado a questão para o gênero
feminino, ao que, depois, usou termos de uma prolixidade tal que a mãe disse
que lhe doíam mais por saber que ela exagerava o efeito da bebida para
justificar sua falta de reservas. “Minha amiga confunde mandado de injunção com
mandado de busca e apreensão”, e no final, quando já estava claro há muito com quem ela saíra,
quem entre todos aqueles distintos profissionais com taças na mão e o riso
eximido de freios civilizados para a crueldade era a única que cabia dentro da
descrição jocosa, a colega de sua mãe deu a estocada genial, o passo de esgrima
covarde sobre a adversária já caída no chão que ficaria na memorial glorioso da
categoria a ser lembrado para sempre. Ela disse: “minha amiga vem com roupas
tão exuberantes e vitorianas que muitas vezes parece a rainha mãe de uma corte
de Maria Joaquina”. E todos gritaram: “Valéria Dulabonde!”. Com os sorrisos
lupinos incendiados da juventude de peles com a resplandecente camada
subcutânea de gordura dos bem nascidos, dos que nunca sofreram na vida, dos que
tinham todo o tempo do mundo para se enfiarem debaixo dos cobertores em suas
camas continentais e estudarem dezoito horas por dia para o concurso. Enquanto
sua mãe, que se formara em direito com muito custo quando Anselm era ainda
criança, trabalhando meio período como escriturária em um cartório, em uma
universidade de quinta categoria, teve que traçar seu caminho para a
investidura no cargo pelas portas do fundo. Ela se levantou, encolhida de ódio
e vergonha, e foi até o núcleo das mesas onde a moça estava com os braços
estendidos e com uma expressão cênica simulando ternura para com aquela
espécime de serviçal estrangeira de baixo nível que algum erro piedoso do
estado instalara entre eles, os vencedores, os cultos, os poderosos e
endinheirados. A moça era alta, de uma beleza protocolar fria que em outras
circunstancias a mãe dissera a Anselm que nem seria vista na multidão, com suas
bochechas demasiado infladas disfarçadas pela diminuição de peso que a função
lhe fizera se impor com uma dieta, o corpo silhuetal metamorfoseado em fêmea
sexualmente seletiva que despertava o perigo congratulatório nos homens em
serem destruídos por aquela comunhão de mulher e divindade sob a qual recaía a
decisão na balança de várias vidas e vários destinos. Ela lhe entregara o
pacote floreado com um laço dourado caro, dando no rosto da mãe o toque sutil
de face com face em que simulava um beijo de intimidade, e todos riam e
transformavam os gestos em suas caras progressivamente em elegantes contrações
contidas de asco e incredulidade. Tinham a ciência exata de aspergirem as
quantidades certas de emoções de repúdio e solércia nas sinapses daquelas
fibras nervosas ultracalibradas de seus músculos faciais. Tudo em nome da
sofisticação de seus nomes de doutores, a mãe disse a Anselm. Ela não era nada
tola, ao contrário do que eles achavam. Ela aliás tinha um jogo de cintura de
descobrir a melhor solução para casos complicados de defesa que os livros não
cobriam, mas sua experiência de trinta anos como auxiliar de promotoria sim. E
esses mesmos colegas tinham o distanciamento de admitirem isso, se não fosse a
soberba faraônica que cresciam dentro deles pela fusão nada autoelucidatória de
hormônios da juventude e ego exacerbado. Quando sua mãe abrira o presente, na
frente de todos, caiu-lhe no colo uma blusa branca de mangas compridas,
ofensivamente amorfa, que não adiantava um espírito de boa vontade procurar nos
mais estapafúrdios catálogos de moda que não encontraria um nicho social que a
visse de outra maneira que não uma camisa de força. Nisso ninguém riu, como se
todos tivessem combinado que a mensagem seria melhor difundida se impusessem
caras sérias, averiguativas, como se fizessem uma metalinguagem para aumentar o
efeito catártico de um humor elevado, como os grandes humoristas fazem ao
conseguirem contar uma piada extremamente engraçada sem contraírem uma ruga de
riso de suas bocas desproporcionalmente severas.
“Uma camisa de força, Anselm”, a mãe lhe
dissera, em uma tarde em que estavam no apartamento dela, ele, Helena,
Esvertina, Luiz e os dois filhos do Luiz. Era aniversário de 65 anos dela, e
ela lhe mostrara a peça ganha no amigo secreto, a retirando de um plástico
barato, que Anselm não soube se era um envoltório que a mãe substituíra o
original para dar maior figuração à crueza da ofensa, ou se a roupa é que era
absurdo o suficiente para retirar qualquer possibilidade de atenuantes. A mãe a
desdobrara, estendendo uma manga em comprido pelo forro da cama e logo em
seguida a outra, como se estivesse desembrulhando um componente de alguma
formulação culinária secreta e mágica, ao que seria até mesmo lógico que no
centro do pano branco levemente já encardido houvesse uma caixinha enferrujada,
contendo um pedaço de noz moscada. Eles não podiam ter feito isso com ela,
Anselm se lembrou de ter pensado. Aquilo era mesmo uma camisa de força. Eles
tinham tripudiado de maneira violenta para cima de sua mãe. Cesar apareceu no
quarto, olhou para a roupa na cama com os olhos cheios de seu treinado poder de
achar uma síntese libertadora para tudo, e riu, dizendo que tinha sido uma
ótima piada. “Para uma advogada com altos índices de fiança conquistada para
seus clientes, era uma boa metáfora associá-la à uma louca”, ele disse.
Anselm admirara tamanha capacidade de
inventar uma metafísica para atos materialmente mesquinhos por parte de César.
Era óbvio que os colegas da mãe não estavam querendo dizer isso, não era mesmo
um elogio. Mas não fazia mais parte de sua vida. Ele desceu os olhos para onde
estava a mãe, sentada, e viu com a nitidez exclusiva dos filhos, que só o
embrião reformulado e desenvolvido dentro das esferas biológicas de um progênie
masculino seria capaz, que ela sofria, que ela sorria procurando seguir a
solução civilizada do marido mas cujo sorriso não conseguia mais conter tanto
inferno que havia dentro dela. Naquele instante Anselm soube que teria notícias
sobre o que ela vinha fazendo naquele meio de abastados, pois era inevitável
que o ambiente não havia favorecido nenhuma possível tentativa de mudança, de
calma transfiguração, que ela tivesse se disciplinado a realizar. Anselm teve a
nítida certeza de que ela havia aprontado das suas, que as loucuras que fazia
entre os vira-latas encardidos iguais a ela no antigo gabinete da promotoria onde
ela era tolerada por uma comunhão motivada pela economia de energia, haviam se
promulgadas naquele olimpo judicial.
As duas notícias ruins tinham vindo juntas.
Foi na mesma semana que Helena perdeu espontaneamente o bebê que Esvertina lhe
ligara dizendo que Valéria havia solicitado oficialmente tratamento
psiquiátrico. Tinha-se passado seis meses do aniversário da mãe, quando ela lhe
contara sobre a “camisa de força”, e Anselm teve a impressão de que o
roteirista que estava escrevendo aqueles enredos secundários de sua vida havia
acionado um ponto morto no quesito imaginação. Parecia uma trama de algum
romancista francês oitocentistas que bebesse de forma enviesada influências das
reviravoltas balzaquianas, colocando rimas pobres de eventos narrativos. Falar
de camisa de força e logo em seguida ser enredado por uma era uma solução bastante
preguiçosa. Anselm jamais esperava que sua mãe estivesse de alguma forma
associada a doenças mentais, o que analisando posteriormente era quase uma
ingenuidade seletiva do modo como ele a enxergava. Ele apostava que era um
estratagema de sua mãe, aquela astuciosa atriz que usava com tremenda
eficiência as instâncias mais piedosas de seu papel de coitadinha
intelectualmente limitada. Lembrava de um filme em que Al Pacino, encenando
Satanás, vaticinava que os verdadeiros detentores do poder requerem para si os
disfarces de aleijados. Ele mesmo, o Pacino-diabo, entortando seu frágil corpo
pequeno todo para um lado, para assim exercer sua maldade na invisibilidade que
o manquejamento lhe outorgava ao sair do metrô. E era com essa mesma paleta
manipuladora que a mãe se materializava para o mundo. Mas depois Anselm pôs-se
a finalmente limpar sua visão para ver com lucidez sua mãe. Quando Esvertina
lhe contara, pelo telefone, que Cesar havia internado Valéria sob a
concordância dela em uma clínica psiquiátrica cara, ele estava em volta com a
conclusão da outra ponta da tragédia, em que Helena estava passando por uma
curetagem em um hospital público.
Enquanto a mãe era colocada em um quarto
privado, com ar condicionado, com cortinas beges que adensavam a textura da
sombra envolvente de maneira rumorejante e confortável, com um aparato de
especialistas e enfermeiras para lhe atender, Helena fora se livrar dos tantos
vestígios que o feto lhe deixara ao escapulir de seu útero na ala de enfermaria
do Hospital Municipal. Enfiaram-lhe espátulas de aço galvanizado pela vagina e
o giraram de um lado para o outro, enquanto uma cânula de plástico sugava o
material biológico que o menino desprendera em seu ato de fuga da existência:
natas de sangue coagulados, tecidos amnióticos, grumos de células de um
vermelho denso que não parecia de natureza humana, ao mesmo tempo que diante o
olhar espantado de Helena eram as coisas mais profundamente humanas que ela já
vira por virem com um traço de podridão inerente que mostrava algo do destino
final daquilo tudo, de toda a carne e da vida. Era evidente que quando Helena
lhe descrevera essas coisas, em uma carta que lhe enviara seis meses depois que
o relacionamento deles acabara de vez, ela estava sob o direcionamento de uma
depressão profunda, não se poupando desses termos niilistas. Um filho nunca
fizera parte dos programas dos dois, mas em um moto contínum para salvarem a
união eles passaram a desconsiderar os métodos profiláticos de impedir uma
gravidez. Helena tinha o costume de brincar que Anselm era a última esperança
num cronograma de relacionamentos terríveis de ter um casamento. Ele não
deixava essas indiretas disfarçadas de leveza escoarem pelo ralo dos ouvidos e
concebia em seu profundo inconsciente os arranjos para que aquela mulher tão
destruída pelo restolho de homens ignóbeis e estúpidos não saísse de mãos
abanando. Helena era deslumbrante de linda. Tinha olhos azuis esotéricos, era
impossível se olhar para eles sem sentir um afluxo de correntes elétricas
metafisicas atravessando o corpo. Era alta, morena, magra como uma guerreira
egípcia, o que a fantasiação dessa figura absurda compensava pela sua
inexistência histórica, pelo que tinha de correção pelo poder do verbo. Se
alguma vez uma guerreira feminina egípcia tivesse existido, seria esplêndida de
elevados atributos físicos manifestados nela. Não era uma mulher difícil de se
sentir elogiado por ela trapacear em um jogo de conivência mútua para se
engravidar dele. Que ariana de pele oliva, saída das fontes vigorosas do
princípio da genética, haveria de querer levar no ventre senão de um homem que
tivesse passado por algum critério de escolha? Ela encenava uma peça de Pinter
no teatro, fazendo o papel de uma estoica social superior, com aquela impiedade
implacável e santificadamente violenta típicas de Pinter, e vê-la no palco
havia debilitado toda concepção estrutural da paixão de Anselm. Ele passara a
ir assisti-la todas as noites de sexta e sábado, chegando mais cedo para se
sentar na fileira da frente. Sua rendição a toda salvaguarda diante aquela cada
vez mais clara armadilha do desejo que ele estava construindo para si atingia
níveis tão sérios que ele delirava ao pensar que sentia as gotas de saliva
caindo-lhe no rosto, cada vez que a personagem passava numa contenção de fúria
a poucos centímetros dele. Apresentou-se ao diretor da peça, um sujeito tão
arquetípico em sua fremência dispersa em não conseguir prestar atenção em nada
por mais de poucos segundos que de longe qualquer um poderia sentir sua áurea
de visionário anarquista imune ao envelhecimento, alegando que estava
escrevendo um texto para seu jornal sobre feminismo libertário e crime. O
sujeito não se entusiasmou nem um pouco pela eficiência promovedora que um
jornal inexpressivo do qual ele nunca tinha ouvido falar teria para a peça, e
nem essa tinha sido a impressão pretendida por Anselm, mas deixou que ele
entrasse no camarim quando a encenação terminara para entrevistar a artista
principal. Anselm então pode ver Helena pela primeira vez, desfeita da
encarnação de frieza maquinal repetitiva cujas frases lacônicas ele já estava
por decorar de tanto as ouvir em sua posição próxima ao palco, com os cabelos
curtos se mostrando surpreendentemente enevolados e crespos sem os aparatos da
personagem, e falando com os funcionários do teatro com tanta desenvoltura que
por um momento acreditou que era uma espécie de mediunidade dessas em que o
agente físico costuma ser escolhido pelo espíritos por ser o mais simplório
possível, como se o fator de baixa sofisticação do hospedeiro fosse
determinante para não macular a pureza do transe. Ela ria alto, em uma voz
surpreendentemente masculinizada, e usava expressões debochadas que revelavam
uma consciência exacerbada de sua sexualidade franca, não policiada, não
competitiva. Talvez por Anselm estar no extremo oposto dessa consciência,
vendo-a com o poder do fetiche renascido por uma mulher que faziam anos que ele
se achava imune de retornar a sentir, que ele achou aquilo desamparadamente
ofensivo, como se essa espontaneidade fluídica estivesse dizendo que ele não
tinha nenhuma chance de vir a ser visto da maneira como desejaria por ela, que
ela não iria voltar a se armar dos arsenais do antigo jogo entre macho e fêmea
apenas por causa dele, armas que ela havia deliberadamente desprovida do uso
por uma série de experiências elucidativas quanto à estultice dessas tolas
dispostas e dessas abjetas danças de acasalamento.
Não foi uma boa conversa. Pinter não fazia
parte de suas leituras preferidas, o que ele lamentou pelas tantas opções que
poderiam ter surgido para conduzir aquela atmosfera ilibada para alguma zona
filosófica suburbana que lhe desse as diretrizes de como adentrar aquela
muralha de prosaísmo. Talvez um memorial de duas leituras bem aplicado tivesse
poupado a total impotência de como voltar a se aproximar dela nos próximos
dias. Ela foi muito protocolar com ele, respondendo às perguntas com atenta
educação. Ele viu que as unhas dos pés dela estavam com restos de antigo
esmalte, e lhe impressionou que a cor fosse azul. Talvez fosse uma concordância
não destituída de nonsense entre as partes mais equidistantes de seu corpo, os
pés e os olhos, ou fosse mais um indício do pouco caso que ela fazia naquela
época à etiqueta sexual. Os dedos dos pés logo acima das unhas eram tortos,
sofridos, expressando uma rusticidade de árvore de deserto ao mesmo tempo que
um utensílio técnico cujo sentido não estivesse imediatamente explícito. Pés
pictóricos, vangohgianos. Ela havia posto um vestido de algodão negro, com as
alças enlarguecidas pelo uso, mostrando a parte de cima dos seis, que eram concisos,
atléticos, de uma maneira atrativamente insípido, como se estivessem restritos
a um adendo de somenos importância ao resto suntuoso de beleza do rosto e do
corpo. Como alguém como ela estivesse sozinho em um camarote à meia noite,
conversando com um estranho jornalista como ele, enquanto umas cinco pessoas, a
maioria homens, que fechavam o teatro, não eram passíveis de serem destruídos pelos
seus encantos, é que era um mistério? Sem nenhum pretendente ou noivo ou esposo
ou namorado a esperando do lado de fora, com os olhos averiguadores da batalha
contra eventuais usurpadores daquele tesouro.
Encerrando a entrevista, ela se despediu e
ambos saíram mudos, um pouco constrangidos, pela porta de trás do teatro, onde
o zelador os esperava para trancar a fechadura. Ela não tinha carro e ele se
ofereceu para pagar-lhe um taxi, sem antes perguntar onde ela morava. Ela
acenou, os olhos pesquisando mais um objeto interior que tinha o destino de
permanecer alheio ao mérito de interesse de Anselm. Resultou que a casa dela
ficava em um subúrbio próximo ao centro, enquanto o apartamento em que Anselm
morava ficava seguindo por uma das vias principais quilômetros abaixo. Ela
desceu do carro dizendo um tchau que era a própria metáfora das condições
climáticas da noite sem vento, sem frio, amorfa e atonal, uma despedida que não
tinha a capacidade de se impregnar do menor grau de dramaticidade que os
envolvesse nem distantemente da condição de futuros amantes. Anselm voltou para
casa olhando as ruas desertas, as luminárias de um depósito de bebidas
gigantesco, a concessionária de carros alemã, catalogando aqueles pontos de
fixação que lhe ocuparam a vida inteira sem significado algum e que agora
transiam de uma aura metafísica que prometia ceder a alguma espécie de síntese
se fossem pressionados.
Não teve tempo de dar ouvidos à sua voz
interna de que estava sendo ridículo. Comprou em uma livraria do centro, que
foi na tarde do dia seguinte, dois livros contendo quatro peças de Pinter.
Leu-as no mesmo dia, sentindo como se em vez de em celebração com a sinestesia
de um autor de percepção superior ele estivesse prolongando em uma realidade
alternativa interminável a conversa com ela. Arrancou sorrisos que seu
conhecimento cênico sabia só serem possíveis depois que muito decantados por
conversas direcionadamente tolas, sorrisos que soavam a voz incomumente
barítona para uma mulher tão bela. E então ele voltou à casa dela, de
madrugada, e se sentou na esquina, debaixo de um cajueiro mirim cujas frondes
tombadas sobre um muro baixo com uma cerca artesanal de ferro o obscurecia,
sentindo-se um Cyrano de Bergerac. Não tinha o sonho disparatado de que ela
fosse aparecer, apenas queria nutrir aquela redução de maturidade e de razão
que aquele sentimento súbito por um mulher o fazia sentir. Talvez tivesse
ficado muito tempo na seara do intelecto e o que se passava consigo fosse um
mecanismo de compensação psíquico que exigia controle, e ele estava receoso por
desconhecer o quanto ele mantinha de áreas confiáveis de si que permitiria
frear na hora certa.
Ele voltou para casa andando a pé. Demorou
para que encontrasse os sem tetos, deitados dois quarteirões à frente da
concessionárias, sob a marquise de um grande shopping de produtos importados.
Subiu para seu apartamento, disposto a esquecer. No elevador, olhou-se no
espelho, desprezando a câmera pela qual o sonolento porteiro com cara de
capanga menor da Cosa Nostra, com sua afilada mandíbula não confiável, deveria
estar lhe olhando, com um deboche satisfeito pelos atributos distintos da baixa
classe comunal que aquela moradia barata exsudava. Entrou no apartamento, que
ainda estava no espectro etário do desmazelo do final de sua vida de
solteiranice, antes que o aprendizado sobre os benefícios da economia da
organização sistemática pessoal lhe fosse herdado de seu casamento, e se deitou
no colchão fino estendido por sobre o piso liso da sala. Coçou a barba,
pensando se não era ela, a barba, que tinha posto tudo a perder, não tendo mais
a suficiente ancoragem em seu distanciado auto-escrutínio para ficar imune a
esse tipo de conjecturas imaturas. Que se danassem Pinter e suas mulheres
impiedosas, partícipes agraciadas da escumalha masculina. Era um poço de
atração irresistível, ele pensava, que mexia com todos os entulhos traumáticos
e tribais que ele levava dentro do seu torturado coração juvenil. Que ele
exortasse de si todo coração juvenil, toda juventude, toda necessidade
efervescentemente deleitosa de destruição por uma nêmeses. Tudo o que importava
para ele era aquele apartamento suburbano, aquela comunhão de pessoas pobres
que andavam com seus ressaibos de orgulho cívico pelos cantos, se olhando de
esguelha com sorrisos intimamente pedindo misericórdia. Ele era um daqueles
leões castrados, ornamentos do circo falido e mambembe da sociedade a qual
tinha sido uma piedade imensa ter-lhes aceito se integrarem nela com esse
disfarce. Ele queria a invisibilidade e havia trabalhado herculeamente por ela
a vida toda, e não seria uma recaída ignóbil a um fetiche mal digerido,
aparecido do nada, com a fulgurância do lixo dessensibilizante que a
sexualidade extrema da mentalidade midiática impunha, que o faria perder tudo
aquilo. Com isso em mente, Anselm passou a esquecer de Helena, com a mesma
isenção de drama que acondicionara todo o imobiliário de seu mundo particular.
E teria ficado assim, tudo tendo sido evitado, se ele, dois meses depois, por
pura afasia, pura falta do que fazer, não tivesse voltado ao teatro da praça,
onde uma outra peça de Pinter estava sendo encenada, sentando-se dessa vez na
última poltrona, e quando as luzes se apagaram e o público ralo composto em sua
maioria por universitários provavelmente sem outra coisa melhor para fazer do
que usarem suas meia-entradas foi embora, ele foi sem pedir a ninguém ao
camarim e bateu à porta. Ele percebeu sons de pessoas detrás das outras portas,
falando com uma euforia de fim de expediente. Não havia dessa vez nem o zelador
do prédio, o que lhe pareceu de uma estranha solidão pictórica que ela
estivesse sob a convergência daquelas obrigações regulamentares, ao vê-la
sentada na cadeira em frente ao espelho, ao lhe dizer de lá de dentro um “pode
entrar”, como se aquela mesma solidão fosse a garantia compensatória de que num
limbo como aquele seria impraticável que quem estivesse a lhe bater à porta
fosse um perigo de qualquer natureza. E Anselm foi até ela, procurou algum
outro assento que pudesse usar para dirimir o súbito aspecto desagradável
surgido de um homem inesperado como ele se interpondo com sua estatura ao lado
de uma figura feminina quase servilmente sentada, mas não achou. Haviam
cadeiras dispostas ao longo da parede com outros espelhos, mas todas estavam ocupadas
com peças de roupas coloridas, fustons, cachecóis, bonés de imigrantes
sicilianos, echarpes, uma peruca loira bastante artificial que ele não lembrava
ter sido utilizada no palco, e mesmo um gato, que transparecia sobre a
insistência espantada de um segundo olhar averiguativo os olhos espectrais que
pareciam mantidos em Anselm até que Anselm o notasse, como se fosse essa a
única culminância aceitável da brincadeira, podendo ele então retornar à
observância secreta de outras realidades inapreensíveis através dele.
Helena se endireitou na cadeira, sentando-se
com os dois lados dos glúteos, e antes que se virasse de todo para vê-lo com a opulência
daqueles olhos azuis que tinham tanto cabalismo arrebatador que talvez fosse
pela competição injusta que o gato se mostrasse tão borocoxô, ela esfregou com
força enfática um lenço umedecido no rosto. Ela parou um instante, o
observando, vai ver o localizando na memória, reconhecendo de alguma noite
ligeira e inofensiva aqueles olhos arregalados, cheios de um temor incrustrado
na aquisição da experiência que ela pela primeira vez constatou, com a antena
sensitiva da boa estudante das nuances humanas, que eram investidos de maneira
astuciosa de um pouco convincente aspecto de intrepidez.
_ Olá, eu conheço você!_ ela disse.
Aquele jeito de populacho, aquele espírito de
ralé pinteriano, sempre deixava Anselm desconcertado. Exprimia um poder
espontâneo com tanto direito de proficiência que seria inútil lhe causar
inveja. Ele se sentia descompensado diante aquele modo de falar, que na verdade
era mais do que isso, um posicionamento filosófico. Por mais que ele se
violentasse em seus textos para retirar uma fístula daquele traquejo indolente
do mais fundo de si, diante aquele desleixo satisfeito diante o que a vida tinha
de mais perverso e incontrolável ele se sentia uma criança. Fascinava-o e o
incomodava ao mesmo tempo, fazendo nascer nele uma espécie de melindre
reacionário. Por que ela não se comportava como uma mulher decente se
comporta?, ele pensava, com truculência defensiva.
Ele respondeu o que tinha na língua, e não
na mente esvaziada de artifícios diante a artimanha distribuída
hipotenusicamente entre ela e o gato. Disse que havia vindo para vê-la e
perguntar se ele poderia mais uma vez acompanhá-la em casa. Talvez evitassem
alguma eventualidade indesejada do destino, ele juntou sem o menor sentido,
pensando, nem ele mesmo sabia, que uma insinuação dos velhos modelos clássicos
de proteção feminil pelo macho lhe diminuísse o temor que sentia diante a
independência dela. Ela lhe olhou séria, pensando de modo calculado sobre a
oferta, o flerte, ou o simples pedido de companhia em um universo que para um
homem com o aspecto desamparado dele devia parecer inamistoso e solitário, e
colocou o papel umedecido por sobre o balcão em frente ao espelho. Estudava as
inconveniências dessa proposta, sem nenhum traço de medo, apenas pelo prisma de
causas e efeitos. Anselm por um momento pensou se não poderia violar aquela
irritante segurança dela, aquela empáfia de um exclusivismo de intangibilidade,
segurando-a pelos braços, erguendo-a da cadeira e a atirando em cima de uma das
pilhas de tecidos disformes do chão. Talvez ela fosse uma dessas mulheres, que
eram de certa raridade afinal de contas, essas que são soberbas até um ponto em
que o homem adequado restituam-lhes a ordem natural administrando-lhes uma dose
bem dada de truculência. Seria algo do tipo que os fins justificam os meios, e
toda a brutalidade resultaria à força de alguns minutos em quebrar o gelo em um
nível conquistado de entendimento amplo. Se ele partisse para cima dela e desferisse-lhe
um soco no rosto, não seria uma economia
gigantesca de energia para chegaram logo a uma ternura incontestável? Nisso ele
ouviu um rumorejar de alerta, uma interjeição feita com uma desenvoltura
profissional na garganta, vindo do canto esquerdo de onde ele estava. Com
espanto nos olhos, Anselm viu sentado por detrás de uma mini parede levantada
ali sem propósito algum a não algum obscuro atendimento a treinos cênicos
particulares antes que os atores entrassem no palco, um homem careca, rotundo,
de porte mediano que em vez de diminuir acentuava sua musculatura, bem munido
de braços que de tão hiperatrofiados deixavam as mangas da camisa de sarja bege
a ponto de explodirem. Ele olhava Anselm com uma malícia veemente, fixando-lhe
diretamente a alma, como dizem, o que fez Anselm ter ciência de que lera-lhe
aquele pensamento bárbaro cheio de incorreção e rancor, e por isso o brilho
assassino de cão de guarda feroz nos cantos das pupilas, como se falasse
através dele “tente”, “ouse tentar dar um murro na cara dela”. A cabeça dele
era incomumente cheia de arestas, como se algum arquiteto não muito certo da
cabeça tivesse-lhe esculpida e firmado arcobotantes como base de alguma peça
maior, incongruente e incompreensível, que nunca fora concluída. Anselm pensou
em Aleister Crowley, uma figura que despertara-lhe medo em algum momento da
infância e que nunca se lhe apresentara meritório de levar a sério de tal modo
que a falta de digestão desse sentimento resultara em uma sombra de insinuante
ameaça toda vez que se confrontava com analogias.
_ Esse é Ernesto, meu segurança_ ela disse,
notando o desconforto.
Ernesto não moveu um braço, nem mesmo quando
Anselm fez um gesto de cumprimento. Em resposta seu olhar ficou ainda mais
malicioso, como se a solução lógica fosse ele denunciar as intenções da
imaginação alternativa impraticável de Anselm. Ela se levantou, pegou o casaco
que estava pendurado em um suporta na parede, e disse “vamos”. Se movimentava
como um lince. Sua cintura era incomumente fina, a ponto de se não fosse a
iconografia libidinosa da fera poderia parecer um defeito.
Lá fora, andando ainda sem programação
certa, ela lhe disse que Ernesto era gay. “Mas duvido que você faça seu tipo”,
ajuntou, sorrindo alto e escorando a cabeça no ombro de Anselm, em um gesto
cuja fugacidade acentuava seu coloquialismo. Talvez ela estivesse mais
predisposta a fazer os ritos sociais com aquele sujeito tão travado. Mais tarde
ele saberia que ela o vira como um estudo clínico, como parte de uma atitude
altruísta em evitar suicídios, ou colorir com tons menos lúgubres um filtro de
depressão. Os dentes dela eram muito amarelados e ligeiramente tortos, não tão
ligeiramente a ponto de ser a única coisa que lhe tirava aquela soltura toda.
Era seu calcanhar de Aquiles. Ela havia tido um acidente no laboratório de
química do curso de enfermagem e aspirado brometo de selênio, ela lhe disse.
Ela era formada em enfermagem mas nunca exercera.
_ Ele também é telecinético_ Anselm disse,
enquanto cortavam pela praça do General, onde o Mendigo do Inverno estava
sentado no mesmo local inadmoestável de sempre.
Anselm o via sempre que passava pela praça.
Um templário de casaco amarfanhado, bem fechado no pescoço e punhos, com uma
barba samarcanda à altura do pomo-de-adão. Tinha olhos de quem reza segurando
uma cimitarra por debaixo do pano grosso que o protegia da chuva e do sol.
Naquela cidade em que se fazia campanhas com pequenos cartazes afixados ao lado
dos semáforos, onde se lia “não deem esmolas aos mendigos”, a secreta proteção
divina que atendia à sua fidelidade o mantinha invisível. Talvez só Anselm o visse, fosse uma espécie
de djin que se materializava toda vez que ele cruzava por ali. Helena, porém,
deveria ser partícipe da mensagem que um dia ele estava destinado a revelar,
pois ela também o viu. Olhou-o com genuíno interesse, como se tivesse uma
sinestesia reversa de identificação. Talvez fosse um Aleph, um portal para um
ponto futuro. Talvez depois de tudo, depois que o drama que se iniciava ali
fosse concluído com todos os purgativos morais da compreensão, Anselm fosse
descobrir que era um espelho temporal, que não estava vendo nada mais do que a
si mesmo.
_ Ele parece ter uma áurea espiritual_ ela
disse, o homem não a ouvindo dentro da bolha de concentração em que estava._
Parece entender alguma coisa que está alheia a nosso nível de frequência.
Mas Anselm disse que falava de Ernesto.
_ Ele leu meus pensamentos e viu um momento em
que minha imaginação traçou um rumo muito ruim para essa noite.
_ Humm_ ela soltou-lhe o braço, que vinha
segurando para poder andar por sobre as pedras desencaixadas sob a sombra da
praça.
Foi o momento em que ela se mostrou mais
objetiva. Seria fácil descartá-lo se aquilo se mostrasse de alguma maneira
inconveniente. Umas duas palavras em sua linguagem interseccionante com o
submundo e a ausência efetiva de ponderação e aquilo tudo seria subtraído de
seu horizonte de eventos. Seria uma brincadeira de mal gosto salientar um humor
impossível por detrás de um ato de violência.
_ Ernesto é leão de chácara. Trabalha em
estâncias e boates da alta sociedade. Não é por ser gay que ele não teria lhe
dado uma chave de braço que te enviaria para o hospital. Ser gay na verdade
aumenta o potencial deletério dele.
Ele esperou se era uma frase de efeito que
teria uma explicação, mas ela se calou, olhando o chão com os olhos bem
abertos. Calçava uma sandália de salto alto que em qualquer outra confluência
de razões seria um erro terrível à sua incolumidade física. Para ela não
interessava o mínimo, mas para alguma vertente incognoscível de presciência
cósmica, aqueles sapatos eram como o jarrete de uma força divinatória, que
transformava aqueles bloquetes desconjuntados e lombadas de raízes das grandes
ceibas em uma barreira sobre a qual ela flutuava em um equilíbrio infalível. Um
passo em falso foi possível em todo essa estrutura sincronizada, mas que
resultou apenas em um salto que as longas pernas dela se firmaram em um espaço
de terra antes da calçada. Como se precisasse de um instante para computar
aquele erro solucionado no improviso de sua memória corporal, ela parou e se
virou para ele, de olhos baixos. Seria a despedida, era o que estava escrito
naquela silhueta de uma gazela salomônica, que voltava a negar qualquer tipo de
direito a Anselm.
_É claro que eu não sou esse tipo de homem.
Jamais machuquei nenhuma mulher na minha vida_ ele disse.
Ela sorriu diante o tom juvenil dele e por
um breve instante deixou ver que toda sua zanga era uma trapaça.
_ Nem em situações em que um certo machucar
fosse bem-vindo?_ ela perguntou, recolhendo o sorriso para que o arrulhar que o
sorriso fazia no espaço fechado da boca estivesse à altura de expressão de um
certo erotismo.
Se ela esperava algum constrangimento por
parte dele como seguimento à sua timidez juvenil, a sinceridade com que ele
respondeu a desarmou.
_ Não. Nem isso. Para todos os fins eu sou um
macho alfa fracassado.
Ela então, para tentar restituir algo de sua
superior indiferença controlada, resolveu arriscar.
_ E se aparecesse alguém agora, nessa hora da
noite, um homem que transpirasse masculinidade de forma irresistível, um
trânsfuga, um bandido, e se mostrasse uma ameaça que iria me subtrair de sua
companhia. O que você faria?
Anselm olhou o céu, povoado de estrelas, e
suspirou profundamente, em silêncio. Pela primeira vez ela abaixou os ombros e
se tornou natural, de uma forma que Anselm pôde ver como ela deveria ser na
verdade. A naturalidade de mulher desleixada, sexualmente liberada, de ideias
de gênero radicais, era uma última carapaça que ela usava. Ele pensou quantas
máscaras ela havia posto em prática e desistido, em sua atuação política na
existência, para chegar até aquela, inamistosamente solitária e polida. Naquele
momento os dois nutriram, em um intervalo que não deve ter durado um minuto,
uma intensa admiração mútua, como dois jogadores de xadrez que reconhecem de
súbito após uma série de disputas imperturbavelmente consensuais os atributos
verdadeiros debaixo das técnicas aprimoradas e dos embustes posturais.
_ Bom, eu iria me esfolar todo e sairia com
muitos ossos quebrados, dependendo de se você quisesse ou não ser levada por
esse bandoleiro.
Ela caminhava lentamente, somente agora ele
percebeu isso, que estavam caminhando já não prestando atenção nos passos, e
ela emitiu um sorriso que Anselm computou como finalmente o primeiro sorriso
dela para ele. As pontas dos lábios se estenderam, mostrando o traçado dos
dentes dela, e os olhos ficaram cheios de uma alacridade simpática. Daí em
diante, por alguns meses, oito ao todo para ser exato, eles então se conheceram
e se entregaram um ao outro, e seis desses meses foram incomumente felizes,
cheios da sensação levitacional do amor. Seis meses entre oito, para qualquer
perspectiva matemática, era uma boa estatística, mas o inferno dos outros dois
meses fora tão devastador que toda a memória ficara comprometida pela mácula
deles advinda.