Estreou na Paramount um documentário que vale muito não pelo que ele diz, mas pelo que está nas entrelinhas. É o documentário cinicamente hagiográfico que conta como Liam Gallagher, o vocalista da extinta banda Oasis e um dos seres humanos mais antipáticos que existe, conseguiu o feito inacreditável de lotar uma das maiores arenas do mundo, Knebworth, na Inglaterra, em abril de 2022. No início do vídeo, com sua imodesta característica, Liam diz que nem Bono, nem Mick Jagger, ou Freddy Mercury, conseguiriam esse feito, em carreira solo. E é algo realmente espantoso! E é esse mistério, que não é desvendado senão de forma velada, que faz essa obra imperdível. Eu gostava de Oasis quando eu tinha vinte e poucos anos. Ainda tenho uns 5 cds deles, mas há muito tempo não tenho interesse em ouvir. Creio que Oasis é uma das bandas que mais envelheceu mal da história do rock, com sua fatídica parede de som rebuscado, sem riff, sustentada em plágios feitos sem a mínima vergonha, e com canções que não se firmaram na mentalidade musical (a gente não vê a obra deles em filmes, ou citadas pelo mundo midiático, como vemos direto os Beatles, ou mesmo bandas mais recentes como Radiohead). Isso, contudo, se você não for da classe média britânica arruinada, tornada órfâ pelo Brexit, sem dinheiro, sem perspectivas, pouco instruída, terceiromundizada e louca para desabafar tudo isso acrescido à quarentena aprisionante de uma pandemia mundial. No vídeo vemos que, pelo menos, um representativo montante de 80 mil pessoas (o público que foi ver Liam em Knebworth), adora Liam Gallagher. Há o depoimento acompanhado de vários fãs durante sete dias antes do show até o momento do show, e gente diversa que tem o traço comum de idolatrar o roqueiro. Tem um pastor evangélico que diz que Liam é tão importante quanto a Bíblia. Tem uma maravilhosamente extrovertida garotinha de 10 anos que, se sugere, se curou do câncer graças ao apoio mental unidirecionado do músico. Há uma moça que teve de faltar à prova final da faculdade porque era no mesmo dia do show. Etc. E isso tudo entremeado com depoimentos do próprio Liam tentando se fazer de menos arrogante, ele que é um cara espertíssimo e sabe vender como ninguém uma imagem de pop star perigoso e egocentricamente desbocado (o que acho que ele faz bem isso, pois entre essa pose de marginal social de boutique e o bom mocismo xaroposo de gente como o Dave Grohl, a primeira leva a melhor e desperta mais fetichismo). Mas aí vem o suprassumo da coisa, as imagens surpreendentes para um programa de rock autobajulador de uma Grâ Bretanha à beira da falência, a enorme pobreza, a rasteirice de um povo que resolveu emburrecidamente pela diáspora étnica em vez da união. Os próprios testemunhos colhidos revelam desesperança e medo, batendo na tecla repetitiva de que o show de um astro obsoleto, que o resto do mundo não está nem aí mais para ele, é um escape, uma fuga momentânea. O clima do filme é de tristeza, nitidamente. A cena final, das pessoas se retirando do campo após a catarse extinguida do espetáculo, cabisbaixas, de volta para suas vidas medíocres, é de enorme desalento. Os apartamentos apresentados de cada fã são em periferias mal cuidadas, cômodos minúsculos, semelhantes aos que pululam na imprensa sobre as condições de moradia atrozes da Coréia do Sul e da China. Por detrás dessa panfletagem, a câmera mostra que nada está bem no capitalismo desmedido, na proliferação da mentira cibernética que alimenta imbecis, na falta de consciência, na alienação profunda. As pessoas andam tão à míngua diante uma vida desespiritualizada pela subserviência total ao mercado, que até os ídolos de pés de barro são úteis para o alívio instantâneo. E Liam Gallagher soube lucrar como ninguém com isso.
sábado, 10 de dezembro de 2022
sábado, 2 de julho de 2022
Panorama 17 (um primeiro capítulo)
Olhando em retrospecto, Eme Skhole pensava
que poderia ter lido os sinais do que estava por acontecer, desde antes da
segunda-feira na qual seu chefe imediato lhe mostrara o memorando instituindo
que ele deveria escoltar oito detentos de confiança para prestar serviços na
construção do Panorama 17, até aquele presente dia em que tudo que envolvia seu
desarvorado horizonte de repetições adotara um comportamento baseado em uma
estranha lógica própria_ para não dizer sinistra_ , não só no modo em que sua
namorada Marcela passara a se sentar no sofá, de tardezinha, com uma
tigela de morangos forrada com creme de leite até a tampa, disposta a consumir
displicentemente todo o lixo letal da televisão hipocondríaca da Velha Severia,
mas também na forma em que passaram a agir os ornamentos da realidade até então
limitados ao simples cumprimento de seus prosaísmos cotidianos: semáforos com
algo da incisividade fria do olho observador, campainhas soando não mais tão
inteiramente desoladas nas manhãs quentes de abril em que parecia haver um
esquema final para onde todas essas informações se dirigiam afim de serem
catalogadas e avaliadas. A iluminação inútil depois que o perigo fora
efetivamente alcançado.
Eme
já havia prometido a si mesmo largar aquele emprego no C.I.D.S. (Colônia de
Internação de Detentos Sentenciados) que vinha mantendo há três anos. Nas horas
vagas pressionava o amor-próprio a ir atrás de algo que fosse
espiritualmente menos afrontoso. Visitou lanchonetes de beira de estrada, cujos
largos balcões lustrados com creosoto fórmico rescendiam desde a entrada o
desmotivando. Falou com antigos conhecidos de épocas que pareciam ter sido da
adolescência de outra pessoa, sujeitos hoje vivendo de serviços insubstanciais
formalmente ilegalizados, mas a única coisa que o animou por um momento fora
uma mecânica de caminhões debaixo de um dos quais despontara em um carrinho de
rolimã um senhor calvo, com uma barriga que era um prognóstico fatal, e que só
quando lhe perguntou sobre sua experiência em lanternagem de Mercedes 49 viu
que se tratava de um campeão de polo do antigo e já falido Colégio Provençal
que frequentara há tanto tempo. Chegava em casa no final da tarde visivelmente
abatido para conseguir não envolver Marcela nessas alucinações espirituais.
“Todo mundo já está velho demais”, dizia, com um sorrisinho nervoso
humoristicamente desamparado. Marcela tinha o senso de maternidade desenvolvido
o suficiente para deixá-lo em paz, e nisso acabava por cometer a inversão
descuidada em não prestar atenção a pequenos detalhes que potencializavam a sua
dor. Em seu respeito ao que possivelmente julgava ser, em uma hipótese
positiva, uma fase de crescimento filosófico cujos resultados finais seriam benignos
e pelos quais seu namorado imaturo deveria passar, acabava por relegar o
próprio conhecimento do quanto era delicada tal imaturidade para deixá-lo
completamente sozinho nessa. “É como se tivesse havido outra guerra e eles
todos tivessem voltado mutilados, não só corporalmente, mas em seus caráteres e
em suas sensibilidades”, era o depoimento que Eme fazia à mesa do café, ou nas
variações que continuava a se ver em sua cara concentrada atrás da ponta de
laranja do cigarro, quando ainda podia se dar ao luxo de falar essas coisas a
Marcela. Ela lhe incentivava a deixar aquilo; eram épocas da última educação
afável entre os dois, em que os diagnósticos estavam em oferta pelo ar e ela os
via com igual clareza quanto ao número de quadradinhos no Banco Imobiliário, os
quais o dado determinava ter que atravessar para adquirir todas as indústrias e
casas populares em miniatura; tratava-o como seu amante irresponsável, com uma
espécie de romantismo decadentista de que apesar de tudo ele era o homem que
amava, o homem com quem compartilhara um invólucro de tempo com detalhes
inapreensíveis valiosos demais para não tentar até o último recurso virar o
jogo. Trazia panfletos de lojas de repartição e fingia esquecê-los por cima da
mesinha da sala, já sabendo que a moça radiante de beleza que aparecia ao lado
da lavadora de roupa causaria repúdio em Eme, rindo por detrás da sua crônica
preocupação em não ver mais recursos o quanto ele desprezaria ter que usar um
uniforme da Wal-Mart, aquelas costurazinhas em relevo no bolso da camisa
demonstrando o quanto atingira um nível sub-humano de subserviência.
Comprava-lhe revistas de Mecânica Popular e lhe entregava, para
fazê-lo voltar a falar sobre seus planos de abrir uma prestadora de serviços em
retífica de motores. Eme as folheava com a antiga paixão renovada, com um
fervor juvenil que o fazia falar que aquilo estava realmente certo, o motor de
quatro mil rotações poderia ser aberto com uma coverneta tamanho 23 com
embocadura de cone estrado, mas como eles permitiam que um idiota que
provavelmente não sabia trocar uma borracha do cebolão escrevesse que o pistão
de um Volskvagem 76 tinha que ser lubrificado com óleo diesel azul
supersaturado? Mas a verdade era que Marcela sabia que Eme já estava além
de qualquer resgate humano; alguma coisa de muito solene havia ocorrido em
sua máquina pessoal_ para usar uma metáfora condizente_ nesse
meio tempo em que se deixara prostrar e perder a adrenalina de seus mais
antigos sonhos . De algum modo sua abstinência em agir era uma tensa condição
de rebeldia de alguém cujo ultimato da mudança já fora promulgado para uma
sentença da qual não poderia escapar. Mas não havia como fazer com que Marcela
compreendesse isso, essa súbita lucidez impactante ao meio dia, essa
adstringência espantosa de enxergar por debaixo do grande tapete universal para
onde se varriam constantemente os escombros do que eventualmente entendia-se
como sendo a verdade.
Todos esses cuidados do vernaculismo do
concubinato não escondiam à intuição de Marcela de que o que estava em jogo era
a vida de Eme. Ou, para falar de modo claro: ele estava com os dias contados.
Eles iriam matá-lo; e nesse "eles" estava uma rede de implicâncias
cujo cerne comportava a mais não abstraível das conspirações. Podia-se falar de
um grupo organizado, pessoas sisudas tão más quanto demônios de propósitos
incorruptíveis, forças cósmicas dirigidas pela predestinação das almas,
empresas bilionárias cuja consideração pela vida humana era a mesma de um
menino quanto a uma formiga na mira de sua lupa convergindo os raios do sol;
tudo disfarçado de seus fulgores e riquezas esotéricas nos mais comezinhos atos
do cotidiano em que Eme se vira vivendo desde três anos. Tudo isso transformado
nos dividendos desse lado de cá da realidade e tendo cada vez mais a ver com a
pressão arterial e a aproximação à depressão, aquele Stálin da redução tirânica
de dopamina que ensombrecia os propósitos da vida para Eme. Era a hora dela
falar a verdade para ele. Marcela tinha um emprego que para o conceito de
felicidade não era nem um pouco melhor que o de Eme. Ela era instrutora
auxiliar em uma creche municipal. Apesar das antenas detectores do fracasso estarem
sempre desligadas em Eme_ ou apontadas para o lado oposto à lógica dos
resultados_, ele confrontava um pensamento inamistoso de que algo talvez
estivesse muito errado no modo como a vida respondia ao afinco de Marcela em
fazer daquelas 30 crianças futuros adultos de espíritos saudáveis, com uma
revigorada disposição em ver um mundo sem o filtro dos traumas. Comendo uma
torrada, folheando a revista de consertos de veículos pesados, entremeava-se
por entre sua concentração solipsista a intuição de que era ainda mais
desprezada pelos que ela dedicava amor do que ele o era pelos seus. Ao menos
ele tinha como escudo sua consolidada indiferença. Já Marcela, com suas longas
pernas douradas, seus cabelos acobreados que chegavam até a cintura, seus seios
medianos lembrando o mais cristalino pesadelo do desejo dos filmes de Peter
Fonda (com o design dos ombros largos sendo um fetiche condizente com aquelas
Ferraris e BMWs), se tinha muito em sua imagem da garota descerebrada e
sem muito finesse social, quando se vestia de botas de couro até os
joelhos com pantufas nas costas e lantejoulas nas bochechas, querendo se
metamorfosear em algum personagem de desenho animado que ele não conhecia, era
tão superiormente pura e radiante para com aqueles pequenos demônios da creche
que ele achava, com uma grande dor, que era questão de dias para que seu
coração de porcelana estralasse com o primeiro trincamento diante a crueldade
do mundo. Mas esse dia nunca chegava. Marcela sempre voltava para casa com a
cara de realização que devem ter os grandes criadores da humanidade, imunes à frieza
exterior e dispensados de qualquer desejo de reconhecimento, com aquela exultação
inacessível que tem os que encontraram o trabalho de suas vidas, o que a ironia
dessa delicada relojoaria que o acaso montou no gênero humano é que tais
privilégios nada tinham a ver com a proporção que pudessem angariar no âmbito
financeiro. Lixeiros que dançam com as vassouras, doceiras que engendram
castelos de glacê, marceneiros que esculpem tríades fractais em mognos de cabeceira
de cama. E não por acaso era isso que Marcela tinha para lhe dizer, o que ele
só percebeu a encenação acompanhante dela passar a geleia na torrada com
estudado ar de leveza desinteressada quando viu-se preso na seriedade astuciosa
do assunto.
_ Uma geleia como essa, como seria se em
algum ponto de sua linha de produção não houvesse um olhar atencioso, uma
dedicação realmente enlevada de ternura_ com o cuidado de não colocar os olhos
nele, mantendo-os com infantil gulodice na linha limítrofe entre farinha de
trigo processada da torrada e o açúcar em excesso coloidal na gororoba de
morango por cima. Ela ainda iria usar a palavra certa, a que estava em sua
cabeça, Eme sabia. Cinco anos de relação o fazia afiado nesses dados da
precognição química entre amantes. Ela iria dizer “amor”.
_ Pelo visto você trabalhou na fábrica de chocolates do William Woncka._
ele observou, não querendo ser realista demais e nem dispersar a boa intenção
dela. Por que sempre havia a incorrigível compulsão de responder em um diálogo?
Marcela trabalhara numa fábrica de chocolates na juventude, seu primeiro
ou segundo emprego (teve um lance de cobradora em ônibus). A frase de Eme era
incorreta e conscientemente leviana em amplas frentes, inclusive em sua afirmação
irônica, pois Marcela lhe contara sobre as baratas e sobre os canos entupidos
de gordura vegetal da fábrica, onde os aromatizantes simuladores de cacau
passavam a emitir o odor nauseabundo de chorume de cana depois de algumas
semanas, o que fizeram os dois por um bom tempo estudar as barras de chocolates
da Hershey que inadvertidamente cambiavam para a dieta da casa com um olhar estoicamente
rememoroso. A fábrica falira e Wyllyam Wonka não era bem um patrão de finas
intenções altruístas, uma vez se lembrando dos anões escravos cantando na beira
daqueles gigantescos tonéis que se finavam em buracos tenebrosos, um spiritual
que nem em mil anos se desfaria da tristeza intranscendente daquelas vozinhas
semitonais de motoristas de caminhões com um metro e trinta de altura.
_ Não estou sendo derrotista, Mars_, ele disse,
com um acento suntuoso de maturidade na voz_ de tantas coisas que me são
privadas de otimismo, eu acredito sinceramente que só nos libertaremos quando
toda a humanidade for composta de cientistas políticos. Uma sociedade não
pacificada onde usuários do transporte coletivo leem Thomas Hobbes escorados
nas traves do metrô e as crianças repercutem nos playgrounds os debates na mesa
de jantar de seus pais de classe média onde não haveria espaço para iconografia
de políticos._ só então percebendo que mais uma vez caíra na incorrigibilidade
de tentar externar o caos que lhe ia na mente, que para ele tinha uma coerência
que a névoa desconstruidora da verbalização destruía.
Marcela
balançava a primeira sequência de cachos dourados que orlava seu rosto
bronzeado, estralando os lábios de deleite pelo resto de geleia colhido pela
colher no fundo do copo que fazia dissolver obscenamente no canto de sua
língua, olhando a Eme com uma traquinagem infantil, e dizendo de uma vez:
_ É uma
paisagem distante demais para se imaginar, mas que talvez já esteja sendo
concretizada aqui na esquina; mas o lance é que talvez seja chegado o momento
de você aposentar seu trabalho de agente do CIDs.
E o
risque-risque veemente da curva da colher na concavidade já sem resquícios de
geleia no copo a não ser uma exsudação mista de saliva e água açucarada, que
ela dramatiza para escamotear assim qualquer desvio emotivo exagerado que Eme possa
trafegar.
Eme não
tolerava que lhe chamassem de carcereiro. Uma vez recebeu um alvará de soltura
em favor de um dos detentos, em que o escrivão, por alguma rotina preguiçosa
demais para ser notada além de seu uso em ponto-morto, escrevera que tinha de
ser cumprida imediatamente pelo carcereiro
recebedor. A folha estacara em um equilíbrio nervoso apertada na mão de Eme, e
ficara ali começando a tremer depois que o tônus muscular se esvaía. O oficial
olhou-o encolhendo-se, como quem olha um detalhe apontado inadvertidamente por
um curioso em uma árvore, e perguntou se estava tudo bem. Eme engoliu em seco,
controlou o traço da boca para se desenhar com um sorriso amargo, e se retirou
para detrás da mesa da administração. Escreveu com sua letra mais delicada,
imaginando seu futuro leitor com uma peruca branca vitoriana na cabeça e o
pince-nez na ponta do arrogante nariz aquilino: “o carcereiro de plantão
recebe, assina, e coloca em liberdade o verdugo facínora, por ordem e
determinação do rábula”. Não se sentiu vingado; na superfície a visão
pejorativa correspondia com um vigor ainda maior ao que viera escrito no
documento, mas era um de seus típicos comportamentos suicidas, o modus operandi
do Eme Nãotonemaíparanada, o Eme malucão que tinha espírito de milionário e
berço de ouro em seus rancores solitários destinados à interpretação de si
mesmo e que lhe dava o prazer poderoso do recalque. Sentia a febre de Behemoth
subir-lhe como uma droga pelo sangue e nele ficava lúcido como a luz da manhã a
estrofe miltoniana de que melhor rei na terra do que escravo no céu. Um ano
depois conheceria Marcela, que lhe diagnosticaria ser doce demais para pensar
em decapitações e execuções em muros de pelotão de fuzilamento como
adstringência contra seus inimigos, mas então, naquele momento de sua vida
limpa e desimpedida, ele chegava em casa e tomava duas doses de scoth de frente
à janela, olhando os postes em suas luzes amarelas mortiças e suas promessas
áridas de libertação apurando os ouvidos em constante preparo para o nível de
percepção suficiente a milenar canção da estrada, tentando notar algum sinal
delicado o qual nem seu acomodamento mais profundo poderia se sustentar diante
a convocação sagrada. Passaram-se os anos, planificados e inoperantes, sem que
o chamado acontecesse, ou sem que ele fosse capaz de escutá-lo, e um dia outro
oficial lhe entregara um documento com a escrita corrigida, “agente do CIDs”,
em vez do medieval retrato da entidade brutalizada e estúpida que vinha
circunscrita em “carcereiro”, e ele entendera que o milagre da sua redenção havia
se desperdiçado em uma versão que lhe aprofundava sarcasticamente mais naquele
serviço, pois sua ação anárquica serviu de benemérito para a categoria,
elevando-a dentro do imaginário sisudo das alcunhas.
_ Apenas
peça demissão, Eme. Se você quiser, se for muito duro para você, eu a escrevo
em um texto sucinto agora mesmo nesse guardanapo. Pela lei, qualquer documento
escrito serve, o que importa é o teor e não a forma.
Eme olhava
para a rua na visão desimpedida e bela do alpendre, um dos únicos detalhes do
quitinete que era válido. Não poderia fazer a proposta de Marcela, ele achava
que até ela em seu arroubo marselhesco de dignidade sabia que o salário da
creche não seria suficiente para alimentar os dois. Uma dupla de bêbados
boêmios atravessava a rua de frente, lá longe, numa distância sonhadora, um
deles de chapéu panamá e o outro, o que fazia a versão do Gordo, de paletó
amarfanhado. Pareciam cômicos e convidativos, e Eme soltou um suspiro de uma
nostalgia falsa porque nunca lhe pertencera.
_ E se
tentássemos outra coisa. Quem sabe uma pausa?_ perguntou, agarrando a tênue
ideia pelas pernas antes que ela desaparecesse de sua cabeça.
Marcela
devolveu um olhar genuíno de interesse. Fez um “estou ouvindo” com a
sobrancelha longa de odalisca.
_ O estado
tem um recurso para servidores à beira da falência mental, algo que o
departamento jurídico inventou para não ter que pagar as taxas do funeral da
viúva. Uma licença não-remunerada.
_ Pois é
isso então, garotão! Eis o caminho oferecido pela providência. Vem cá, e como
conseguimos entrar nessa treta?
_ Huuummm...
um simples pedido não funcionaria. Teria que ter drama, algo que os faça sentir
a premonição de uma tragédia.
_ Estamos
falando do quê, precisamente, só para eu ter um vislumbre da coisa. Algo no
estilo de ter que subir na mesa da diretoria, arriar as calças e jogar um monte
de merda nos documentos?
_ Ou talvez um
atestado psiquiátrico, o que nos traria para uma zona mais civilizada.
Estavam
ambos em silêncio analisando o catálogo de médicos conhecidos na memória e
correlacionando os nomes a alguma propensão à moral maleável que pudessem
vender um atestado falso, mas não lhes vinham nada. Eram só um casal com a
sociabilidade limitada a um raio muito curto de ação.
Marcela se
levantou da cadeira. Seu short branco e a blusa florida de tecido levíssimo
absorveram mais que a luz de uma dia radiante e convidativo para a felicidade,
sugaram também os dois bêbados que Eme voltara, por impulso, a procurar,
colocando-se ela mesma, dourada, arrebatadora, suave e impactante no lugar dos
sonhos indefinidos dele. Assim era difícil se sentir um derrotado. Ela se
sentou em seu colo, afastando a mesa, de frente, cada perna dobrada e firmada
no chão com a leveza que tem as entidades que conhecem a resistência que uma
cadeira de vime do Wal Mart pode oferecer, e molhou seus lábios com algo que
era além do beijo, algo que ela criara e lhe dava fazia tempos, como a
matemática da dança das abelhas, um anti-beijo que estarrecia a libido e dizia
que o vínculo entre eles estava além do sexo. Seu corpo não se doutrinara a
compreender isso, pois sempre reagia brutalizado e previsivelmente, a saliência
aumentando no máximo de tamanho debaixo do seu próprio short. Daí ela se
levantava e o deixava desamparado com o pênis reteso, e o incrível que era
nisso que residia a felicidade do momento.
_ Eu tenho
um plano, Mars._ disse, a visão dispensada de turvação e cheia de uma bíblica
coragem._ Eu pego uma dispensa de 3 meses, para não participar dessa escolta, e
sobra tempo para procurar me aperfeiçoar em mecânica de caminhões.
_ O que é
Panorama 17?, o que se esconde por detrás dessa artimanha tão inatural?_
Marcela levando os pratos para a pia, engrossando a voz como o de um
inapreensível locutor de rádio que dificilmente sua idade a autorizaria a
saber._ Oito detentos, é o que está escrito na convocação. O que oito detentos
poderiam fazer em algo tão secreto?
Ela parou de
repente e ficou séria. No dia a dia deles existia uma comunhão generalizada com
tudo o que preenchia a dinâmica de suas vidas, uma conivência calada e
turbulenta, cheia de deliciosas distrações e fugas que se acionavam com
diversos gatilhos cênicos: o medo insurgente, rasteiro e felino que queria
entrar na cama, ao lado deles, era pulverizado pelas primeiras luzes da manhã,
que enchia o quarto da sensação sempre entorpecedora de que uma grande mudança
benemérita estava por acontecer; ou quando as contas no final do mês não
fechavam, a perene penúria emudecendo-os com uma trave de língua, um jingle das
pradarias de um norte a procura de exilados vinha da televisão os fazendo
esquecer. Pois aquele momento Marcela parecia ter sido tomada pela nudez total
de eufemizações, e tinha achado algo que merecia uma atenção genuína. Ela se
virou para ele, já sem piadinhas, e o olhou fixamente. Como o anti-beijo, ele
devolveu o olhar com seriedade.
_ Os oito
detentos não são especialistas em nada, Eme Schole._ as palavras em tom neutro,
um pouco só mais baixas._ O que você me disse mais cedo? A humanidade só será
salva quando a ciência política ser tão comum entre os povos como o cereal no
café da manhã ou a seta virada para a esquerda que ninguém usa na virada do
carro.
O diabo era
que Eme estava entendendo tudo. Já vinha cogitando isso faz tempo mas ou achava
absurdo demais ou era modesto demais para achar que teria as palavras certas
para verbalizar. Ele contabilizou rápido, não querendo perder o fio da meada
enquanto Marcela se preparava para o novo pronunciamento da sequência da
constatação aterrorizante, e retirou um pedreiro bastante mequetrefe e um
pintor de paredes razoável entre os presos. No final das contas, o traço
notório deles era que todos eram bucha de canhão, dispensáveis tanto para a
justiça quanto para a lei de Deus. E eles era um deles.
_ Vi um
documentário sobre Stálin semana passada. O bigodinho georgiano matara todos os
intelectuais da sua Rússia Imperial. Só numa floresta na Polônia ou Ucrânia,
eles enfileiraram dezenas de milhares de engenheiros, professores, escritores,
físicos, gente de mentalidade graúda e nem um pouco provinciana, e os executou
um a um, com um tiro nas costas, cada qual sem saber ao certo o que lhes
reservava no final do corredor de uma igreja antiga usada exclusivamente para a
chacina. Embora não se precisasse de uma Inteligência acima do normal para
intuírem que a história havia mudado de maneira tenebrosa e eles estavam
fodidos. Um tiro na nuca, e o corpo era imediatamente dispensado para um grupo
de armênios neandertais devidamente colocado do lado de fora para fazer a
consumação dos corpos.
Ela
dissera toda essa cantilena numa mesma respiração sincopada doce e aerada, como
se tais imagens fossem parte de um memorial vivido em uma idade recente e
acalorada. Eme pensou que se fosse um personagem de um romance era a hora ideal
para sentir o inefável arrepio descendo pela espinha. Marcela estava
tangenciando a lucidez límpida que Trimion Lispito lhe falava, o puro visível
sem mediocrizações que era o objetivo dos monges tibetanos e o sinal da
depressão suicida nos empregados do comércio ocidentais. Seu queixo estava
caído e sua cara não deveria estar nada motivadora. Se conteve, pigarreando,
dando ao menos esse clichê fisiológico para a narrativa imaginária de sua vida,
e retirou espontaneamente, por uma questão urgente de sobrevivência, o que lhe
vinha na mente.
_ Talvez
Trimion possa nos ajudar.
Isso serviu
para Marcela descer de suas alturas aráuticas, graças a Deus, e lhe responder
com uma careta de “mas o que raios esse energúmeno se encaixa nisso?”..., e
catar o copo que deixara sobre a pia e se servir de uma regalada porção de água
de torneira.
_ Sei que
você não gosta nem um pouco de Trímion, mas creio que a licença para clinicar
dele ainda é válida. Se não me engano ele me disse uma vez que continua pagando
a anuidade do Conselho de Medicina.
_ Eu não
gosto dele?_ Marcela disse depois de fazer o último lance de água passar pela
garganta, retardando visivelmente a deglutição ao ouvir o meio da frase de
Eme._ Amore, você que me mostrou a necessidade inarredável de odiar esse
farsante.
Uma velha
história. Eme se levantou, sentindo as últimas emissões nervosas da ereção que
se perdia modestamente diante tantos eventos mais sérios se recolhendo como um
soldado atrapalhado que entrara no gabinete errado_ onde acontecia os
movimentos iniciais para a conflagração da guerra_, e começou a fazer massagem
nos ombros de Marcela.
_ Tudo bem,
tudo bem! Mas é assim as astúcias da história. Não foi o bêbado do Kruschev que
botou para quebrar em cima do Stálin, destruindo toda a louvação em cima do
assassino? Não um pai, mas uma besta matadora. Deus escolhe os idiotas para
falar a verdade, etc, etc.
Eme sabia que
Trimion, contudo, não era um idiota. Cada um tem seu talento para se livrar do
mundo, uns se negam a participar dele, outros se agarram com unhas e dentes à
loucura. Trimion era do segundo grupo. Mas onde estaria ele agora, depois
desses belos 5 anos? Pensou olhando pela janela a variação multitudinária da
vida que fizera desaparecer talvez para sempre os dois bêbados andarilhos e
colocara agora no lugar um monte de sujeitos com uniforme acolchoado, com viseiras
laranja, consertando a fiação de um poste. Por um erro infeliz, um equívoco
cômico, quando Eme conheceu Trimion, numa sessão de meditação tântrica, achara
que Marcela havia sido sua namorada. Ou algo pior: uma odalisca espiritual para
fins sexuais restritos. Fins que envolviam uma languidez de escrava seviciada e
um guru que não se importava com filtros morais sobre os limites da depravação.
Por um bom tempo Eme via aquela moça que não se enquadrava às tentativas suas
de ser uma musa ribeirinha, uma fada sinfônica das águas, como alguém a ser
evitado. Se ela o cumprimentasse, coisa que a existência de Eme nunca fora
detectada pelo seu campo visual para se concretizar, seu senso de sobrevivência
dizia-lhe para desviar-se e correr. Por um curto verão ele interiorizara essa
decisão a ponto de achar que Marcela não lhe interessava, mas quando os
exercícios de encontrar o chacra da plenitude começaram a entrar para a maçante
corrente das posturas corporais de inventivos níveis de sofreguidão estática,
ele descobriu que estava ali unicamente por causa dela. Seu rosto rosa suado,
seus olhos narcotizados, seus pés que tinham aquela suavidade grosseira para a
qual não se inventara ainda um termo delicado o suficiente para comportar sua
lascívia andrógena, já o espremiam contra a parede e estavam com uma lâmina
para sem escapatória lhe degolarem o pescoço. Uma vez se autodenunciado,
passara a olhá-la do outro lado das sessões com a progressiva veneração de um
aborígeno de algum reino primitivo flamejante instalado num éter mental cujo
propósito em existir desse lado de cá fosse a fé cega a esse ser viperino e
cruelmente indiferente. Ela iria acabar com ele, sua repulsa seria calma,
certeira, sua rejeição teria aquela afeição enganadora das cotovias que
dispensam de suas refeições a velha e ancestral mariposa negra que os canais da
evolução a tornaram desinteressante ao paladar. Mas mesmo assim, uma certa
noite, ele se aproximou dela, abrindo espaço com uma audácia suicida do lado do
guru do qual ela nunca arredava pé, e começou a violenta-la com a insistência
de que ele existia. No começo ele defrontou com o muro quase intransponível;
sentia-se um batedor de carteira pouco ágil que nunca conseguia sequer abrir a
bolsa pendurada no ombro da vítima para surrupiar-lhe a carteira, mas depois
ela, como se sacudida na zona final de emissão das ondas violentas de suas
investidas, pela primeira vez o olhou, um olhar mortiço embalado em um sorriso
que era como um bote de marijuana subindo e descendo as ondas. Oi, ela disse.
Oi, ele respondeu.
Quem era
Eme Schole nessa época para ter aquele privilégio único de atrair a mulher dos seus
sonhos? Um pós-universitário de engenharia mecatrônica que fora jubilado no
sexto semestre porque lhe caíra em cima a questão inadiável de ter que escolher
entre fazer alguma coisa para se manter materialmente o mínimo possível entre o
mundo dos homens ou continuar com aquela rotina de sessão da tarde de garotas,
o ciclo da Távola arturiana dos amigos destrambelhados e o estudo para as
provas com o cérebro entorpecido de ensolaradas ressacas. A roleta com
insistência parava com a seta cenográfica apontando para o “ter que arranjar um
emprego”, ao que o apresentador de terninho azul padrão e sorriso de
ensandecida normalidade que regia a aleatoriedade de sua vida lhe dizendo com
voz musical que ele tinha sim que desistir de ser alguém e sair da rede inútil
de seus sonhos para vestir um uniforme da Wal Mart. Ele seguiu uma das prédicas,
simplesmente parando de frequentar o curso_ os amigos arturianos na verdade
eram almofadinhos egocêntricos que sequer sabiam seu nome ou um ou outro ser
semelhante a ele, desalentadoramente não competitivo e fadados a se jogarem
desse falso bote seguro do esclarecimento técnico para a turbulência do mar proletário,
o que acabava ajudando sem dor na decisão. Não arranjara emprego. Ou pelo menos
não um que se pudesse chamar assim. A última etapa de sonhos de sua vida louca
foi a de fazer pequenos bicos surreais demais para que pudesse descrevê-los em
um curriculum, como o de caçar borboletas junto a um francês veado e um negro
cujo objetivo da existência era patentear um suporte de alumínio para pratos
que se sustinha em uma fisicamente impossível única plataforma vertical, e outras
coisas como controle de caramujos africanos que algum inadvertido gourmet de
boteco havia contrabandeado de Goa para virarem espetinhos assados de escargot
mas cuja visão mercadológica se mostrou muito à frente dos estômagos sensíveis
de sua época. Estava já em estágio torporizado de aquecedora felicidade com
essa vida, vendo as tantas vantagens que era se forçar à lucidez de escapar
daquela roda do destino dos estúpidos seguidores de regras, morando em um
apartamento de dois cômodos infestado de baratas e ratos e com marcas nacaradas
nas paredes que cada noite mais ele se convencia que tinham alguma relação com
uma cena do crime e com os pratos que mudavam de lugar quando se os procurava
onde se presumia tê-los deixado, a luz da cozinha que acendia ou apagava do
nada, e os estranhos murmúrios que ele ouvia com uma fúria coesa nos ouvidos o
acordando pareciam comprovar a hipótese.
Estava
assim quando Marcela apareceu em sua vida e lhe dirigira aquele “oi” como de
uma garota que é encontrada em um pique esconde no meio de uma samambaia
haitiana; “oi”, e ele respondendo de volta “oi”. Os dois saíram do ciclo de
meditação, atendendo a um teste dele em ver o quanto ele poderia retirar aquela
ovelha do raio de atração de Trimion, e foi quando, mais tarde naquela mesma
noite, ela lhe contara que havia trocado umas três ou quatro frases com
Trimion, ao que ele, em um ataque de ciúmes, não acreditara. Isso tudo gerou
uma bagunça no começo idílico do amor dos dois, tão cheio de compreensão ao
menor sinal que se explodia no riso agraciado dos indícios de que tinham
encontrado suas almas gêmeas, tão cheio da felicidade insubmissa e
disparatadamente inconsequente do grande amor autoimune aos conselhos dos pais
e à brutal realidade financeira; aquela pedra de aflição que vem no sapato de
todo cara que é assolado pelo insight de “pera aí, mas eu mereço tudo isso?
Esses raios de licor serotoninérgico hollywoodiano não foi destinado a outra
pessoa mais capacitada e eu a peguei por engano?”. Aquilo começou a ruir, Eme insistia que havia
algo mais, imaginando todo tipo de intercurso cárneo entre Marcela e Trimion.
Não queria pensar mais nisso, mas aquele momento determinou de modo muito
limítrofe o fim do relacionamento com a pessoa mais maravilhosa que ele poderia
conhecer, em quaisquer das alternativas que sua existência poderia ter em
quaisquer dos mundos, e uma piedade opalescente agiu sobre ele em um amanhecer
em que o corpo ultrajado nu envolto em si mesmo no canto do colchão de Marcela
lhe retirou todas as suas tranqueiras machistas de três décadas da péssima
educação católica. E daí se aquele magricela carcamano de Trimion tivesse
tocado em Marcela (repudiando o lastro de cenas tórridas que tal frase
despertara em sua mente poluidíssima), coisa que, além do mais, ela chorava e
gritava que nunca, nunca, acontecera.
Marcela
odiava Trimion por uma inversão interessante. Quando ele cancelou toda a
paranoia sobre ele, ela a restituíra com um silêncio fremente dentro dela. As
ocasiões futuras em que ele fazia o teste para si mesmo de citar, meio que
involuntariamente, o nome de Trimion, para mostrar que estava tudo superado,
sentia a contração dos íntimos e atrofiado pelo não uso dos músculos faciais de
Marcela que na espécie feminina eram atribuídos ao nojo profundo. Era uma prova
de seu amor por Eme, se Eme quisesse ver assim, mas uma infância em uma casa em
que haviam sua mãe solteira e três tias rejeitadas o vacinaram contra essa
corrente de falácias do patriarcado. Sabia bem demais, numa profundidade
genética incontestada, que quando uma mulher deixa de amar se forma um limbo
translúcido e puro de nada no lugar onde nem memórias mais eram permitidas.
Toda vez que Marcela ouvia o nome de Trímion a recorrência dessa sanitização ao
martírio estúpido que era carregar um companheiro nas costas de seu amor
combalido pulsava, esperando a identificação libertadora, a aceitação perene;
depois desse instante, ele mudava de assunto com rapidez e nunca mais voltara a
mencionar esse nome que não se devia mencionar, até aquele instante.
Não sabia
que Trimion estivesse tão no fundo do poço. Umas informações subliminares em
uma padaria, com o homenzinho do pão que lhe entregara a baguete lhe devolvendo
a insinuação com um ar repentinamente ensonado e a voz encordoada, típica de
quem fornece o endereço de um traficante não mais consultado por motivos
policiais óbvios, o fez chegar a um galpão abandonado na zona leste de San
Diego. Um portão de losangos arcaicos enferrujados cedia ao empurrar da mão com
uma licenciosidade de velha meretriz cansada; se houve alguma áurea de perigo
prosseguido pela grande varanda de colunas que lembrava a máfia porto-riquense
extinguira-se em um caos de trepadeiras. Um silêncio de primavera dos romances
de Turguêniev se fez ouvir, dando um refresco ao pensamento. Da última vez que
Eme vira Timion havia umas três mulheres regando um jardim e plantando
abobrinhas em umas cercas prensadas, discípulas casadas que vinham usar seus
extensos tempos livres para uma tarefa cósmica mais banalzinha.
As coisas mudaram mesmo. Era um casarão dos
tempos do império, será que o estado sabia que existia isso aqui? Os registros
históricos? Os acadêmicos? O piso da varanda era pedra marrom incrustrada de
rajadas beges de tempos muito remotos; três grandes arcadas encimando uma
entrada que condiziria com o espírito nostálgico de alguma donzela morta em
circunstâncias nunca averiguadas, vestido branco longo e passos suaves
acordando os mais perceptivos atrás de alguma já dissipada justiça que não
seria agora, em tempos tão apressados, que se cumpriria. As plantas,
possessivas trepadeiras, arrastavam-se a uma velocidade ignota mas passível de
ser ouvida (se prestasse a atenção necessária), pelas paredes, descendo com
peso seus entrançamentos matematicamente complicados por cima do lintel. Eme
entrou com passos apreensivos, na ponta do pé. Trimion estava sentado em uma
cadeira de cordas, roupa branca dos pés à cabeça, um pincenê longo com um
cigarro aceso seguro na mão. Olhava o ponto do teto em que a calha fora
perfurada e um raio de sol entrara formando uma coluna bizantina translúcida
que tocava suave e perenemente o chão. Seus cabelos não haviam sido cortados
esses anos todos, saindo da parte circunferencial abaixo da calvície e se
deslindando em variadas curvas prateadas, depreciativamente majestáticas. Seus
olhos vesgos eram o que demonstravam mais que cinco anos pode não parecer nada
para alguém de fora, desde que se não tivesse conhecimento do quanto ele havia
sofrido. Eme sentiu uma pena profunda, uma vontade de arredar o pé dali e dar o
fora, se não fosse a bendita placa de metal de algum despojo de consumo em que
pisara avisando para todo o ambiente que ele estava ali. Trimion saiu de sua
divagação e olhou em torno calmamente, um tanto só alvoroçado pela súbita
quebra em sua quietude.
_
Miauuu, Eme descontraído, se aproximando esfregando as mãos como um bispo
medieval pego em flagrante em alguma mesquinharia.
Trimion
focou as vistas sem identificar quem era. Mudou perceptivamente de posição, o
que fez Eme se lembrar da espingarda ponto 12 que outrora guardava debaixo de
uma manta cinza ao lado. Seus olhos perscrutaram com rapidez e viram a manta,
mudada de sua intuitiva posição de cobrir para uma de que indicava que havia
sido revirada em um passe de mágica.
Sob a
luz o pequeno homem prateado já tinha a arma segura nas mãos apontada para ele.
_ Eeeee,
sou eu, parceiro, Eme Schola, lembra??
Depois
dos minutos dispensados na estranheza, na tensão que nem era tensão do
não-reconhecimento mas uma pré-teatralidade entre dois amigos, ambos se
sentaram frente a frente, cheios de um êxtase atenuado de nostalgias a serem
lembradas. Trimion guardou a arma debaixo da manta e dobrou as pernas à
francesa, endossando a sua conhecida postura feminina que mostrava um ser que
nascera com muita disposição à compreensão engajada. Eme o achava uma figura e
tanto. Fora se enchendo com a agradabilidade de sua companhia, recordando o porquê
ele obterá tanto sucesso há alguns anos. Um monte de outras informações nem tão
agradáveis sobre sua simpatia voltara-lhe à mente, junto ao aviso incômodo que
ele um dia registrara na profundeza de sua mnemônica e que voltava agora como
uma sirene: não beba nada! E justo nesse momento, como se Trimion lesse a mente
dele por pura alacridade, ofereceu uma xícara de chá. Justo o chá!, não tinha
como ele oferecer algo menos clichê?
Eme era um
fajuto para várias vertentes da sociabilidade, mas tinha uma exímia tenacidade
ao cavalheirismo. Não poderia negar. Trimion se levantara feliz, com a
prontidão da tarefa caseira de anfitrião estampada como uma heráldica honrável
em sua cara, e sumiu para detrás de um grande frontispício do que parecia uma
casa de espetáculos que estava ali morta atrás deles como um cachalote de plásticos
retorcidos e ferros enferrujados. Eme reparou bem nela e as letras foram se
estabelecendo em sua visão como educadas presenças elementais que só estavam
aproveitando a oportunidade para se apresentarem. Teatro Rancor..., e parara
por aí. Não podia ser Rancor, obviamente, mas o enigma não se prestava a
nenhuma solução lógica, nenhuma acoplamento na sintaxe que ele tinha na cabeça.
Enquanto elaborava alguma distorção que coubesse aquilo em seus parcos
conhecimentos de francês, Trimion pôs-se a contar o que era natural que
soubesse estar em módulo de questionamento na mente do amigo, o desenrolar
aventureiro de sua vida a partir do ponto de cisão no tempo.
Trimion
sofrera um processo barra pesada que ajuntava uma procissão de parágrafos do
código penal para o tráfico de produtos narcóticos. Tudo porque ele desenvolvera
uma substância em pó, bastante nacarada e de cheiro neutro, que dissolvia-se,
ainda mais, numa pureza inofensiva no leite, mas que dava a quem provava a
substância coloidal resultante o que alguns descreveram de “experiência
religiosa de contato com as radiantes esferas celestes com um final de montanha
russa a mil por hora passando pela geena”. Se não fosse essa última parte, Eme
reconhecia, talvez nada lhe tivesse acontecido e ele estaria não num galpão
abandonado de lixo do mercado de entretenimento acumulando-se pelos cantos mas
confortavelmente em sua mansão de meio quilômetro quadrado sendo assediado
pelos programas de televisão matutinos sobre saúde e bem estar para a classe
média abastada. Ninguém gosta de ter um vislumbre das plagas etéreas e os
campos de flores vicejantes do Senhor e ter que pagar um inoportuno tributo a
Belzebu na volta, ele lhe dissera, relembrando aquilo.
Estava
por se tornar o neurologista da moda, o guru da cura espiritual, a
personificação daquilo que William James havia imaginado, o que bastava
ministrar sessões de meditações um pouco extravagantes e, pimba!, o âmbar mágico nas horas do cafezinho, quando a fórmula física da implacabilidade da
vida decidiu agir. Aquela mulheres que se ofereciam com uma lassidão sem culpa
de traírem um mundo burguês que elas podiam ver agora ser podre e mentiroso,
passaram a ter vislumbres mais que assustadores de uma realidade estranha que
parecia pairar sobre essa dimensão sem que nós a percebêssemos, o que estragava
sobremaneira a estratégia de Trimion em ficar só o tempo necessário com elas na
cama em que durasse o ronronar esperado mas não efetivado do sono pós-coito.
Cada vez mais elas se viravam para o lado, cada qual se descansando do lado
uma da outra, com suas pernas de pele flácida já aparente, suas cinturas de
meia idade que sem os coletes de emagrecimento pareciam a regurgitação
congelada de um anelídeo, mais elas desprendiam-se do sono e entravam em uma
transubstanciação progressiva de uma visão de uma nova verdade. Os jovens hippies,
muitos deles já demonstrando o casulo etário a se romper e com os empresários
em gestação final encolhido dentro deles, que dormiam em quartos conjuntos pela
fazenda que Trimion alugara na época, entraram numa onda mística que misturava
uma criatividade para cantos rituais e a convicção de que eram representantes
de um povo à espera de que acordasse uma espécie de deus vesuviano cujo amor
por seus asseclas era algo bastante contestável. Como todo traficante de visão
neoliberal séria, para um maior controle de seu empreendimento Trimion não
consumia sua própria droga, o que lhe incapacitava de entender essa rede de informações
cifradas. Como sua aptidão profissional era algo verdadeiro, ele passara a
monitorar aquelas pessoas como espécimes de um ensaio laboratorial, escrevendo
rapidamente entre as observações suas impressões sobre a ação do pó na mente
delas. Falava com aquelas mulheres, enquanto seus olhos em deslumbrada recepção
de um poder fulminante estendiam-se além do espaço superior da sala, e elas
descreviam cenários ciclópicos e o que parecia cada vez mais ser uma presença
inenarrável e pavorosa impregnando cada filigrana de ar. Trimion contou a Eme
que suspirou de alívio quando a primeira busca e apreensão da polícia
aconteceu. Tivera a sorte de ser num sábado depois de um bacanal psicodélico em
que uma socialite que não parava de sair nas colunas sociais da época subira
até o último galho de uma velha palmeira no jardim e de lá fez um strip-tease em
que não poderia se empenhar muito, já que estava só com um top básico e uma
saia de pano retrô, mas que fora o suficiente, graças à gritaria em
dispensáveis mi bemóis ultra finos, para que toda a vizinhança no dia seguinte
desse suas versões contrapostas para a imprensa. Não havia mais estoque da
droga, o Guinevere 4100, conforme ele a batizara, e a que restava em eventuais
potes de café com fundos disfarçados na cozinha, fruto de algum esquecimento de
consumidor arrependido que só se lembra da nesguinha que deveria ter
aproveitado quando a hora já passou, mas que Eme suspeitava que não foram
achados porque a novidade era tão alvissareira que passava batido pelo faro dos
cães da polícia. Mas haviam os depoimentos das testemunhas e também a incontestável
visão de que algo muito errado estava acontecendo por ali, mesmo para os
padrões de uma gente acostumada com todo tipo de baixaria, e a carreira de
Trimion se consumiu da noite para o dia, como num conto das Mil a Uma Noites em
que a magia do início vinha cobrar seu preço brutal cedo demais.
Já estavam
ambos com seus xícaras de chá nas mãos, o que Eme aproveitara quando Trimion
fora pegar os cubos de açúcar para despejar o conteúdo num vaso de acácia logo
ali do lado.
_ Estava
muito bom, mas mamãe me ensinou a etiqueta de não pedir além da conta na casa
dos amigos.
Trimion o
olhou com os olhos surpresos, uma certa ternura lá no fundo.
_ Que bom que
tenha gostado. Feito com as camomilas da horta que sobrou no quintal.
Conversa vai,
conversa vem, Eme deu por alto as informações sobre sua nova vida. Estava certo
sobre o fato de Trimion ainda conservar, por vaidade, sua carteira no conselho
de medicina. Seria algo que daria gosto verificar, ele disse, e retirou da
gaveta em frente um bloco de receitas, preencheu uma com uma profícua rapidez,
assinou e a fez deslizar para Eme.
Eme encenou mais contados dez minutos,
sentindo-se vil por não conseguir controlar seu desejo de dar o fora dali, e se
levantou. Não conteve a curiosidade de perguntar ao amigo o que ele fazia agora
para sobreviver.
_ Guinevere
4200_ Trimion respondeu como o faria Fu Manchu, com uma vendeta bem maligna nos
olhos, colocando as mãos espichadas à frente, abertas e com dedos tocando uns
nos outros.
_ Ah, é! E o que ela tem de inovações?
_ Uma
incrível absorção pela pele.
_ Bom, Trimion, já vou indo. Fico muito
agradecido pelo enorme favor, espero que não tenha ficado nada atravessado na
sua garganta sobre lances passados e coisa e tal...
Era outra
compulsão social sua voltar a assuntos já há muito enterrados, sempre em que se
via em desvantagem na área das retribuições altruísticas. Era orgulhoso demais
para receber favores, até nisso seu caráter tinha que sofrer uma pesada
argumentação de defesa contra a mesquinharia. Cutucar de volta velhas feridas
passava a se lhe aparentar coisa muito convidativa e acertada.
Trimion
continuava o olhando, se bem que, observando melhor, seus olhos já um tanto
enlevados por um estrabismo de nascimento pareciam estar em algo através dele.
_ É sobre
Marcela, sabe cumé, ela nunca te quis mal, mulheres tem a tendência de paranoijizar
as mínimas ocorrências.
Marcela o
odiaria se o ouvisse, mais ainda do que ele mesmo se odiaria assim que dobrasse
a esquina e fizesse seus balanços corporais de expurgo para ver se jogava fora
aquele tique aberrante e vil.
Estava agora
na rua em frente ao galpão e se lembrara de enfiar a receita no bolso do
casaco, com a estranha sensação de que já fizera isso momentos antes mas que,
por uma ordem aliterativa, o papel retornara em suas mãos um sem número de
vezes. Estava tentando firmar sua análise por sobre esse lapso flagrante de
irrealidade quando se deparou consigo mesmo dando de volta os passos que
recordava vividamente ter dado para frente assim que pusera os pés na rua. Algo estava
acontecendo de muito anormal. Não havia bebido e nem digerido nada na casa de
Trimion, fato que nem sempre fora assim no passado, em que um bolinho de chuva
e um café artesanal que o branquelo asmático do neurologista havia lhe dado,
com o ar mais inapreensível do mundo, lhe desligava dos laços da realidade e o
fazia entrar numa dimensão com variados matizes sinestésicos. E a mesma coisa
estava acontecendo agora se bem que num nível, vamos dizer, elogiosamente mais
aprimorado, mais tangível de sofrer uma invasão de contatos extemporâneos
psicotrópicos com fronteiras muito bem guardadas por séculos, em que os novos
bárbaros esotéricos do lado de lá, porém, traziam a inspiração de serem mais
cultos, britanicamente polidos, com lentidões em que cada segundo se media pelo
peso de observações sistemáticas perscrutarias, gente fina dando seus primeiros
passos cautelosos de respeito por algo de sagrado que mesmo aqui desse lado de
cá pudesse haver. Seres investidos da modéstia em que a mensuração do que
tinham por descobrir não se calibrava pela discriminação da hierarquia de
valores a que nós éramos viciados por nossos sistemas educacionais corporativos.
Não era desagradável, se se pensasse a sério que o diferente era para ser
testado e talvez o prazer que sentisse viesse justamente desse mecanismo
adormecido de sua mente. Fazia muito tempo que Eme não entrava nessas viagens.
Um pernod às vezes num jantar com talharim ao sugo com Marcela era o máximo que
se chegava. Deu um estralo na mente de Eme: e se ele usasse isso para procurar
por uma resposta?
Sentou-se
no banco de uma praça, debaixo de uma castanheira. Respirou pausadamente, não
havia nenhum dos sinais fisiológicos típicos, suor frio, palpitação. Sentia só
uma atenção redobrada por tudo, um núcleo de consciência que restabelecia em micronésios
de segundos cada fímbria de movimento exterior e levava esses dados para um
processamento de amplo espectro. Notou que havia até um feixe de memórias muito
profundas ali no canto de seu cérebro, inteiramente à disposição para seu uso
quando seu nível de autoconfiança estivesse apropriado. Eme fechou os olhos e
se interpôs com uma desenvoltura corajosa na frente de uma das sombras
premonitórias que, naquele momento, acabava de dar seu passo estudado e
cavalheiresco para dentro de sua realidade. Eme fingiu que tossia, numa
repetição arcaica das dissimulações que os anos de secularismo escolástico lhe
impunha pobremente, e a sombra estacou, como se não querendo tropeçar naquele
aborígene gentil que parecia fazer uma genuflexão de saudação devocional.
Era agora
que ele daria seu bote. Abriu os olhos e viu o espírito de terninho de listras,
chapéu panamá, gravata sóbria de um matiz de verde que só em tinturarias muito
especializadas da Escócia se conseguiria, sentado ao seu lado no banco. Tinha o
rosto magro dos exploradores que se satisfaziam apenas com o vício asséptico da
aventura do descobrimento, um bigodinho bem desenhado com pontas finas, e os olhos
prontificados a reterem daquela experiência o máximo de valores possíveis. Numa
tacada astuta de quem não sabendo quanto iria durar a substância que por um
milagre da prestidigitação Trimion inoculara em seu corpo não poderia gastar
com atos condicionados, Eme começou perguntando o que era o Panorama 17. O
cavalheiro, provavelmente uma alma que fizera seu caminho até ali com um grau
de destreza superior para poder ter tamanha tranquilidade em um oceano de tormentas
que era o acaso das transmigrações, permanecera com o rosto magro e
dolorosamente belo reteso por um momento, e logo em seguida olhou para Eme com
um profundo e caloroso entendimento. E respondeu: para tal pergunta se tem três
respostas; para cada resposta, tem-se três níveis de desequilíbrio da linha de
harmonia de sua existência nessa zona cósmica. O ser continuou o olhando com
toda calma possível, o que fez Eme descobrir, fascinado, que aquele sujeito era
o que estava por detrás de suas nostalgias desde que ele era criança, ele que
era o Papai Noel, a namorada perfeita e Cristo; era aquele sujeito que ele
desejara com uma veemente saudade a vida inteira.
Por outro
canto da mente Eme se perguntava se os níveis do Guinevere 4200 não estivesse
acionando com uma proficiência controlada cada gota de serotonina passando
pelos ductos de seus sistema nervoso fazendo acontecer aquele banho de prazer
da compreensão multitudinária, o que mesmo com sua luta para se concentrar no
que o homem dissera não se dissipava. Três respostas, que tal me dar só a mais
útil delas? Ele perguntou, olhando o homem com uma súplica que era a mesma que
se amparava o ápice sexual, não necessitada ali de tabus e exsudações
desnecessárias. Ele não era da mesma pureza que aquele visitante, por isso
sabia que era assim que estava condicionado a vislumbrar alguma lógica para o
que estava acontecendo. O homem sorriu como um tio já falecido, que muito amara
Eme, lhe sorria nas tardes do sorvete quando se sentavam em um banco como
aquele e ele contava ao menino algo suficientemente bem medido entre a verdade
pragmática e a manutenção dos sonhos primordiais como era aquele velho e
corrupto mundo. À medida que Eme ouvia ele balançava a cabeça, com uma
aceitação plena, pois olhando bem ele via que o sujeito era realmente seu tio,
as mesmas feições, o mesmo charme conciso e meio pueril como seu tio se movia
enchendo os olhos de admiração mimética de Eme. Era ele que vinha da dimensão
dos mortos para lhe aclarar aquele problema complexo.
_ Note
bem, Eme: lá é um lugar que se você não estiver preparado para perceber todas
as nuances e propósitos, será sumariamente destruído.
E lhe
sorriu, se levantando. Lá é a origem de toda a propulsão que move o mundo, um
dos portais que fazem transitar entre essas dimensões as emanações que são
apreendidas pelos seres mais capacitados desse mundo para que sejam
transvertidos na verdade e na regra que esse mundo merece.
Eme
tentava pensar entre um acúmulo ainda maior de prazer que fora lançado em seu
sangue, algo tão devastador que seus receptores primitivos só podiam entender
como uma dor profunda. Mas por que eu deveria ir. Por que algum dos oito
detentos selecionados deveriam ir?
O homem
continuava com seu sorriso equilibrado e muito polido, de um ser para o qual
tudo se expressava com uma paciência e destemor elevado, e olhou o horizonte,
mais para certificar com sua aptidão positiva diante todas as graduações das
maravilhas do universo como era a radiação final do dia de uma estrela de fogo
magma naquele ângulo de observação. Passando as mãos pelos fundilhos das
calças, num gesto de limpeza que até espíritos daquela altitude pareciam
sucumbir, ele voltou-se então para Eme e respondeu:
_ Essa já
seria a segunda resposta, a de teor filosófico. Mas creio que não teremos mais
tempo para explorá-la. Sua absorção do Guinevere já atingiu o valor máximo há
dois segundos e o tinino sintético que aciona a enzima alfa está sendo
finalizado em seu fígado, o que sua capacidade ampla e generosa de compreensão
começa a cair e atingirá o nível zero daqui dois minutos, lhe devolvendo para o
filtro mental compatível com essa realidade. Sinto muito, filho, mas vai ficar
para uma próxima. Aliás, como retribuição, como faço para chegar à estação
Bolivar daqui?
Eme
fechou os olhos com força, negando sentir a dor que se lhe distribuía de forma
acachapante por todo o corpo, sem foco determinado, e se lançara num esforço
tremendo de não perder aquela linha de raciocínio tão valiosa. Tinha que
conseguir a síntese perfeita para retirar mais alguma coisa dele antes que ele
fosse como um impoluto cidadão comum fazer sua encenação de homem na multidão
para se misturar didaticamente entre os outros mortais. Uma síntese de um
segundo, pelo amor de Deus, ele pensou, e, depois de um esgar que fez com que o
cavalheiro o olhasse com uma inédita cara de preocupação, achou essa:
_ É
porque todos nós, os nove, somos simplórios?
O homem
desfez a cara de preocupação e voltou a olhar satisfeito para o astro rei de
onde ninguém mais do que ele sabia vaidoso que era a forja onde sua
constituição que antes passara por todas as mais primitivas formas de dúvidas e
provações fora feita, e balançou a cabeça duas vezes antes de responder:
_ Você
quer ser agraciado, motivado, elogiado nessa pergunta às avessas que sua
humildade faz. Por incrível que pareça, com esse intento você alcançou um grau mais
sofisticado de inteligência, entrando na segunda forma de se responder,
revelando uma intuição percuciente de lucidez filosófica. Mas é sim: vocês
foram escolhidos porque são tidos como estúpidos, mas não vai fazer um
escândalo por causa disso, não é?
domingo, 27 de fevereiro de 2022
O Bistrô Chinês_ Um Conto
Foi uma jornada da imolação e a pior demonstração de abandono
que Timos teve. Nem antes nem depois sentira-se tão alvo do desinteresse do
mundo, com todas as suas antigas sensações de insegurança despertadas. Sabia
que seria assim e antes de se dispor a ir poderia ter escutado sua consciência
e abandonado o plano. Em seu apartamento solitário, onde o frio já não lhe
provocava temor e a chuva de contra a janela se tornara uma forma de paraíso,
lembrava-se desse ano e sentia a tendência de se lamentar por ter sido tão
burro, por tudo estar na sua cara, por ter caído naquela armadilha da aflição
que o destino armara para ele. Mas o Timos de agora, vinte anos mais velho,
seguro de suas faculdade mentais e conhecedor de tudo que o mundo permitia que a
instável inteligência humana conheça, sabe que é inútil analisar desse ponto
de salvaguarda a sua história. Sabia que era impossível não ir. Teria que
passar por aquilo. Não deixaria Assia ir sozinha, não se pouparia de que ele
fosse testemunha da vingança cuja estrutura já estava montada contra ele.
Partiram da capital, 12 horas de voo sobre o Atlântico, luzes internas de
luminária de escritório de mogno, como do escritório do tio, amareladas, exalando
a ausência de ternura que marcaria aquelas duas semanas cheias de ruídos. Toda
a conversa, desde que os 3 ocuparam suas poltronas, se afunilara, se tornando
em murmúrios, onomatopeias, resmungos citadinos de raiva e tolerância mal
feita. Não havia voado antes e um pavor vindo de uma inapropriada lucidez por
se reconhecer entregue à sorte de um cilindro que testava pela milionésima vez
o absurdo de afrontar a um deus que havia produzido sem retóricas um bípede
terrestre tomou-lhe conta. Ele sabia que sua situação era desafortunada demais
depois das tantas brigas pra cobrar algum consolo a Assia sobre esse pavor, era
inimaginável que demonstrasse o pouco que fosse que alguma coisa em seu
organismo não estava nada bem. A imagem do violinista, com seu onipresente
cabelo de crina selvagem, não lhe saía da cabeça; um músico de orquestra deve
pegar um avião como aquele por semana, e ele ali em sua desproteção pueril.
Assia iria confirmar que era um frouxo, se para tal ela ainda precisasse de
confirmações. A questão era apenas essa: a tábula onde se auferia a sua vocação
pelo fracasso em tudo que fazia, sendo que o rancor surgido em seu peito não
passava de uma variante do tema. Kiria apareceu para lhe dar uma esmola de
piedade ao ver que ele suava em bicas e tinha uma cor nada boa. Chamou a
aeromoça, e ele não a impediu. Quem sabe poderia render uma cena a seu favor,
uma moça de pernas longas, o rosto de uma niilista sexual que dispensava provar
para algum deus que a vaidade humana realizara a contento aquilo que a falta
das asas de sua miserável condição havia lhe privado e aquele cilindro podia
investir contra céus e tempestades sem dramas metafísicos e com a pureza sem
moção da ciência; quem sabe surgisse entre esse quadro ilógico uma insinuação
de interesse dessa bela mulher por ele, uma vez ele entregue em seu colo para
algum processo de cura que iria muito além dos males do enjoo.
Mas essa
forma de provocar ciúmes em Assia se mostrou mais uma vez falha. A aeromoça mal
lhe destinara um olhar, disse-lhe algumas palavras cordiais, alguns vaticínios
militares da profissão, explicando-lhe a função do saco de vômito, que na
verdade se revelara algo não tão óbvio de se usar, as posições necessárias de
se ficar no caso de um ataque de ânsia, e lhe passou dois comprimidos não propriamente
especificados a não ser que “o senhor vai ficar muito melhor depois de tomá-los”.
E Timos não teve tempo de examinar se se tratava de uma beldade e não lhe
pareceu que a maneira como ela lhe enfiara os comprimidos na boca tivesse
alguma mensagem subliminar sobre libido. Tudo em sua cabeça se atentava à
absoluta falta de conhecimento de como um objeto tão pesado e de geometria
ridiculamente não natural poderia estar levando todos eles a onze quilômetros
acima do mar escuro e frio. Esqueceu-se de Assia, refugiou-se em seu canto
esperando que as drogas fizessem efeito e duvidando que o fariam, e chorou, não
sabe se baixinho, algo lhe dizia que o fez em um volume inapropriado para
aquele ambiente de eclético silêncio zimbório que reinava.
A primeira
cidade que conheceram foi Paris. Na imaginação dos três a única forma válida
emocionalmente de abordarem uma cidade como aquela era através de hotéis
baratos e viagens de carona. Não tinham contratado guias turísticos e nem
tinham qualquer contato na cidade, apenas a proficiência em francês das duas
irmãs e seu poder de comunicação aprendido em uma maçonaria acadêmica em que se
pesava a frieza exigida pelos parisienses e uma limítrofe simpatia em que
ninguém desprezaria duas mulheres com tal transbordamento de saúde juvenil.
Timos tinha um domínio do francês bem peculiar, tinha lido Lacan e Foucault, e
descobrira que não havia se atribuído tempo de ver que não entendia nada quando
a comunicação era falada. Dormiram no mesmo quarto, um pequeno cômodo charmoso
na Gare de l´Est, com sacada para um cinema desvalido e uma parede dupla de
prédios populares do tempo antes da revolução, e que eles juraram que tinha
sido alvo de registro das fotos de Charles Marville.
Tudo melhorou
substancialmente com o frio primaveril; por um longo momento Timos aceitou que
a cultura e a radiância da liberdade eram verdades eternas maiores que os
banais trambiques da paixão, a viagem era uma reeducação de tudo que ele lia nos
livros e nisso o automatismo da juventude em conhecer o mundo antes de se
entregarem de vez ao aborto da idade madura estava certo. Se pensasse muito
enquanto andavam juntos pela cidade, veria a melancolia daquela ação, a triste
aceitação de que aqueles dias eram tudo que restava de uma vida realmente feliz
que a efemeridade de suas obrigações sem sentido com o obituário cotidiano os
esperavam quando voltassem, era uma lucidez que sua própria razão de ser era se
entregar ao engano, que aquele sorriso convulsivo mas natural dividido entre
eles, na bagunça do quarto e no senso de adversidade ainda latente de seus
meros problemas de casal. Era a última instância tardia de uma icônica beleza
da infância.
Haviam aqueles
momentos proporcionados pelo esclarecimento do álcool, sentado à uma das mesas
diante as fontes e a matéria humana inexaurível dos casais e crianças e
artistas solitários, em que o olhar dos três se cruzavam em silêncio e a
consciência de que aquilo não iria durar, estava com seu efêmero tempo contado,
e que eles saboreavam juntos os efeitos colaterais dessa amarga descoberta que
era que nenhuma dor que eles tinham até ali era válida, todas eram risíveis,
pueris, fruto de alguma distorcida má criação mimada da classe que eles
advinham (qualquer delas, isso não era marxismo, mas a existência pura). Na
certa havia muitos gêneros de olhares silenciosos como esse, mas nenhum deles
com uma ação tão aliviante.
Nessa
noite aconteceu algo que ele poderia colocar a culpa no cabernet, todos estavam
altos pelas garrafas de vinho e sucumbiram a um desmaio paulatino,
contraditoriamente que os levavam a profundas instâncias de sono ao mesmo tempo
em que os sentidos vindos das paixões mais à flor da pele e nascidas do moto
contínuo da exortação sensorial das propagandas e do romantismo residual
continuavam rumorejando uma letargia quebradiça e prontificada para a autoafirmação
desses pequenos demônios. De forma que Timos sentiu a pele fresca, aquecida
pelos cobertores roçando-lhe a região do ventre, sentindo primeiro aquele
chamado distante, agindo como por um misto de movimento infantil e resposta
pessoal a algum sonho, e depois os sinais se firmando, verbalizando-se com
irrecusável nitidez na mensagem progressiva, e ele ciente de que era inevitável
ceder à sua exigência, na névoa do cansaço, do álcool e das fragmentadas
iluminações que tiveram durante o dia, e ele abaixou sua calça e consumiu o ato
com vagareza, sentindo o calor de uma atmosfera muito conhecida mas
surpreendentemente nova o acolhendo da desproteção daquele quarto em uma
capital com sua incisividade suplantando todos os artifícios da civilidade.
Quando acabou, parecia que o ato tinha vindo como complemento lógico à intuição
filosófica que Assia demonstrara que compreendera muito acima da fragmentação
que as emoções de Timos conseguira vislumbra-la, e Timos caiu em uma paz
profunda embalada por esse perdão que ela lhe dava sobre todas as brutalidades
que ele havia cometido contra ela. Mais tarde, em uma frequência horária que
ele não poderia medir naquela noite que parecia ser uma abdução suspensiva na
eternidade, ele sentiu o mesmo aceno vindo de uma farol longínquo, do meio do
oceano negro e impalpável, mas que seus instintos de libido e prazer, menos que
o de ser autorizado por um novo conhecimento, responderam com prontificação,
agora com mais empenho muscular, com o animal liberado de dentro dele, um
animal que passara pelas provas de toda racionalização e se provara com direito
de se externar sem qualquer peso de consciência ou culpa ou teorizações. Mais
tarde, na infinita noite, ele quem procurou, enviando aquela ordem dominante e
sendo respondido da mesma forma. Sempre novos aprendizados. Quando acordaram,
em uma manhã radiante, com a luz do sol instalada por entre as cortinas beges,
a translúcida impressão de que a vida estava zerada para um novo começo em que
haveria um novo mundo de coisas inéditas a explorar lá fora, as circunstâncias
daquele despertar para um novo dia trouxe uma certeza muda entre os três.
Era notório a
descomplicação dos bretões quanto aos corpos, como eles haviam resolvido em
alguma imprecisa época histórica de luta contra carências reais aquela vergonha
ignóbil de seus corpos nus que tanto fazia perder tempo com restolhos inúteis o
resto do mundo. Pois eles estavam assim, a atmosfera de liberdade os havia
contaminado. No uso coletivo do banheiro para as abluções da manhã, enquanto
escovava os dentes e Assia se sentava na privada para esvaziar um tanto
soniferamente sua bexiga_ e Kiria escolhia uma nova calcinha com a porta aberta
do banheiro_, Timos deixou que a certeza do que havia acontecido à noite
alargasse o ponto em seu cérebro e tomasse-lhe conta por inteiro. Enquanto
cuspia a espuma da pasta dental na pia, sorvendo entre os incisivos o gosto
mentolado que tão bem condizia com aquele céu pleno de riquezas que por um luxo
adâmico ele atrasava de propósito para se deleitar, o discurso que estava
pronto lá no fundo o interpolava sobre a necessidade de que ainda tivesse
validade, e a resposta que a nova instância de um Timos aquilino e alegremente
pouco cerebral era de que aquela voz podia se calar para sempre, numa
seguridade de que o silêncio era a única solução que se poderia dar para ela
que seria feito sem rancor, sem medo, sem ecos das agora antigas abstrações.
Ele havia sim dormido com as duas, biblicamente, sorriu ao usar essa palavra
tosca que lembrava-lhe da fonte de repressão sexual que cobria todos os
assuntos cotidianos. Assia deu um muxoxo distraído carregado de uma preguiça
infantil cheia de incognoscível energia, puxou um pedaço de papel higiênico e
limpou sua vagina com uma falta de pudor ainda mais rusticamente brilhante, e
lhe perguntou de que ele ria. Seria o primeiro assunto do dia, e ele balançou a
cabeça e disse que não era nada, uma das piadas vestigiais que nos assolam
quando a mente é deixada por si mesma para realizar os movimentos maquinais de
sobrevivência e um pensamento ou outro escondido por alguma misteriosa
assimilação no sistema de acondicionamentos aflora, ele não tendo dito isso, ou
antes o fato de tê-lo pensado servindo como frequência para o diálogo de que
ele estava protegido por uma banalidade, que estava longe e imune ao tipo de
dúvidas que poderia tê-lo assaltado se aquela luz parisiense cheia de presenças
dos grandes libertadores amorais não o tivesse resgatado.
Timos cogitava,
anos depois, que se tivessem se despedido naquela tarde, aquilo faria parte das
memórias não protocolares de sua vida, aquelas que a maturidade da fisiologia
da mente iria duvidar se teria mesmo acontecido, se não fora uma ilusão criada
por uma costura de múltiplas experiências, sonhos, distrações, a forma como a
alma exsuda o tóxico de sentimentos represados e sem utilidade. Ele tinha
algumas lembranças assim, que por mais que se esforçasse jamais saberia se eram
registros de acontecimentos reais ou meras alucinações. Havia uma, a de uma
mulher simplória, uma morena calipigiana, faxineira, cabelos crespos pela
cintura, um sorriso afável, uma espécie de sacerdotisa recém-liberta, que um
antigo patrão lhe comprara a liberdade e a partir de então ela se assumira
livre diante o mundo, e que ele, Timos, havia tido uma série de encontros em um
albergue em uma das ruas no centro da cidade. Ele se lembrava com impactante
lucidez do quarto, detalhes da rua de frente, e tinha uma recordação de como
eles se consumiram um ao outro durante horas, mas era-lhe impossível saber se
aquilo realmente ocorrera. Talvez o aspecto de que havia um limite a que seu
esforço por averiguar se batia e insuflava, para se tornar apenas um adiamento,
fosse parte do recurso sináptico, que talvez já houvesse sido catalogado pela
neurologia_ ou pelo esoterismo, ou pela ciência dos sonhos e das lembranças das
vidas passadas, ou pela intersecção de ondas de dimensões alternativas
paralelas_, ou um dia seria, quem sabe. Assia seria mais uma “morena de frente
ao mundo”, ela e sua irmã, se eles não tivessem mais duas semanas pela frente,
só que a liberdade comprada dessa vez apareceria como tendo sido a dele.
Foram para Madri,
para Bruxelas, para as ilhas gregas, conheceram inúmeras pessoas, a maioria
jovens mas tendo também aventureiros de meia idade e senhores e senhoras que
faziam aquele percurso de autodescoberta pela duodécima vez, confrontadas pela
finalização dos anos que a suavidade do olhar adquiria um agradecimento
ancestral, uma melancolia que emitia uma crisálida na forma de seus corpos
enrugados, os ombros enlanguescidos pelas sucessivas despedidas da juventude em
todos seus variados graus, e que se justificava por ser o rastro que deixava do
retorno ao cosmo em suas matérias finitas. Depois daquela noite ele transara
com Assia em locais reservados, ou que era possível que soubesse que Kiria não
estava presente. Mas havia acabado. Em Creta, diante os campos decíduos onde
Odisseu a Eros revoluteavam nas pupilas ébrias, ele se sentara ao lado dela, na
comunidade de viajantes sentada em seus mantos e toalhas e com suas cestas de piquenique,
e a olhou longamente, abaixando os olhos não por timidez, enquanto aqueles
olhos dela, que antes lhe inspiravam noções mefistofélicas suspeitas, o viam da
mesma maneira com ela o vira desde que se conheceram no restaurante da
faculdade. Um casal muito velho estava sentados no declínio um pouco abaixo
deles, ele com uma camisa com uma estampa de uma cerveja black ale onde se via
um hippie octogenário sorrindo em cima de uma Harley Davidson, e com uma
bermuda folgada com bolsos laterais muito amarrotada, e ela com um vestido
floral que não se cansava em emitir uma cauda lateral expandida pelo vento, e
um chapéu de palha que ela segurava toda vez que a faceirice do vento serrano
tentava como uma cãozinho lhe arrematá-lo de cima dos cabelos, se olhavam
conversavam molemente, com muita atenção recíproca, como se um histórico de
sobrevivência individual que trançava-se em um muito vigiado sistema de cuidados
recíprocos lhes mostrassem que precisavam ser plenamente cordiais e cuidadosos
um com o outro. E Timos e Assia os olhavam, mudos, sorriam depois um encarando
o outro, como se a dizerem o que as palavras que se lhes aumentava no
vocabulário nas experiências daquele momento ainda não lhes autorizassem a
matizarem a apreensão do inefável que exigia silêncio. Quantas lembranças o
casal de idosos teria, que espécie terrível de felicidade que suplantara tanta
imaginável corrupção e acusações recíprocas havia enterrado abaixo de toda
aquela leveza. Não era para eles, nunca seria para eles.
Não
voltaram a ser ver, além dos cruzamentos rotineiros de dois ex-conhecidos pelos
corredores da faculdade. Timos se demitira do estágio, voltara às suas aulas
(por muito pouco tempo, porque pedira demissão delas também quando concluíra a
grade no final do ano). Estudara com moderado afinco sobre política e
filosofia, o brilhantismo de seu regime mental sendo transparente mesmo com
todo o muro anárquico de sua dissenção natural. Anos depois, vinte anos para
ser exato, Timos e Assia voltaram a se encontrar. Ela tinha se tornado funcionária pública do
ministério de agricultura, sua paixão pela China a alçara do doutorado para o
comércio mundial e ela se estabelecera como uma senhora redimida com a solidão,
morando agora em um apartamento despretensioso de alto nível numa rua que
atendia a todas suas necessidades perfeitamente acomodadas de divorciada que
come croque monsieur à noite com uma taça de vinho assistindo algum talk-show
em que presta atenção como uma criança hipnotizada por uma versão atual dos
Muppets. Um casamento com um colega de trabalho que não durou um ano e que não
gerara filhos ficara pelo meio. Três lances de escadas era a distância que
tinha que atravessar para chegar à rosa dos ventos de sua independência
estabelecida, com uma praça com bistrô e quatro postes de luz de sódio e alguns
bancos de ferro ornado sobre os quais não era uma mera casualidade do destino
que a fizessem lembrar-se de Paris, de certo ar em que transitavam em suas
acomodações mnemônicas um quarto pequeno diante um cinema desvalido, porque sua
fixações da juventude a fizeram ter pleno domínio de sua vida para ter
escolhido aquele local para morar, a China e as noites de leitura sobre o
costume da obscura geração Mu Guiying a fizeram senhora de si, gestora de seu
dinheiro, dona de seus sentidos, de suas manhas, de seus pequenos e
incontornáveis vícios advindos de pertencer à espécie humana; a banca de
jornais onde um senhor magro, de bigode que lembrava um teutônico de alguma
imprecisa e para sempre inatingível suspeita de que era uma estampa em algum
cartaz de festa da cerveja que vira em alguma representação de um povoado na
Baviera, e até ele poderia ser um detalhe que ela quis que estivesse ali, para
que, na volta do prédio do ministério, que ficava a cinquenta passos de sua
casa, pudesse fazer um cafuné em suas vistas observá-lo com seus suspensórios
perfazendo o enfeixe sensorial devido do clichê de sua boina xadreza limpa e
perfumada arrumados os jornais do mundo todo nas estantes da banca de paredes
de treliças e flores em vasos na entrada. Timos a encontrara na padaria em que
ela comprava seu brie, ele tendo ido ali por alguma distração, pois sua vida
não tinha ganho a áurea de ser perfeitamente manejável por uma vontade pessoal.
Ela quem o reconhecera, embora ele mais tarde pensasse sobre isso e achasse que
era mais uma manifestação de sua profunda inteligência tê-lo escavado de todo
aquele inchamento e maceramento corporal.
Ela fez uma
festa, o abraçou, falava alto o deixando sem jeito diante o assombro inesperado
daquilo, chamando os funcionários do local pelo nome e o apresentando como se
ele fosse alguém cuja importância em sua vida era restaurada naquele momento de
extrema felicidade. Em seu modo de existência no exílio qualquer mudança no
termômetro emotivo, vinda com a quebra da harmonia de decibéis, deixava-o muito
incomodado, o equilíbrio de sua percepção racional ficava em frangalhos e era
substituído por uma excessiva misoginia. Por isso achou que aquela garota
estabelecida em sua história, em um local glorioso, ressurgira como uma mulher
de meia idade louca e histérica para destruir a honrada herança da outra. Ela
tinha perdido a beleza, era óbvio, uma beleza fulgurante como a que havia tido
era um milagre que só se perpetuaria se a Assia tivesse sido devolvida ao
princípio criador junto a ela numa morte na juventude. Ela fez questão de
leva-lo a seu apartamento, preparou-lhe um chá de ervas que correspondia
milimetricamente com o avatar de velha solitária com deliciosas manias
domésticas remetendo à jovem que era tão afeita a seus cheiros pessoais e à
suas umidades quando a tirania de Timos a fazia chorar.
Enquanto
tomavam vinho, ela lhe perguntou se achava que tinha realmente transado com Kiria
em Paris, naquela noite. Ele lhe olhara firmemente, um meio sorriso surgindo, à
procura de onde estava a artimanha na pergunta. Depois, como se um pensamento
muito antigo, cujo adiamento distante por analisa-lo despertasse um sentimento
de ameaça, disse que achava que sim. Assia tombara a cabeça por sobre o escoro
do sofá, suas pernas cobertas por uma calça comprida que lembrava vagamente uma
influência chinesa dobradas na almofada e a taça sustentada por sua mão
equilibrista dançando de frente ao seu rosto, abriu a boca mostrando os dentes
fortes e brancos, com o rosáceo da mucosa úmida pelo vinho aparecendo num gesto
sem alacridade ou crítica, apenas que ela reavaliava uma verdade sempre renitente
mas também adiada. Era como se, naquele mundo simplificado e sem gastos
desnecessários de energia, aquela questão tivesse um exotismo estimulante de
uma era que se perdeu no passado; como se descobrisse em um manual de uso de um
brinquedo, subitamente reencontrado, uma finalidade do brinquedo desaparecido
que ela talvez um dia tivesse intuído mas que não levara a sério.
_ Até o momento
eu achava que isso fosse uma das poucas certezas da minha vida_ Timos
respondeu, com a presença espiritual de não deixar que o humor do encontro se desfizesse.
Ela se voltou
para ele e o observou com uma seriedade que realmente nada tinha muito a ver
com a seriedade taciturna e intelectualmente fanatizada de quando era uma
garota. Timos notou através do novo movimento calmo e descontraído dela para
mudar as pernas de posição os tornozelos roliços, imaginou ou viu uma pintas
negras do pelo depilado crescendo novamente. Seria mesmo a piada das piadas se
um tom sexual surgisse de um portal que os ligassem a duas décadas atrás, ela
tinha a faceirice agora da terna mulher que já alcançara a plenitude de toda a
sua confiança feminina. Não desmereceu sua ilusão, não zombou dele_ se o
fizesse, teriam ido de maneira mais fácil para o nível que a conversa exigia,
mas existia uma educação superior naquele avatar dela.
_ Você não a
viu mais, não é? Nunca mais depois que chegamos de Paris. Ela foi para as
Filipinas, quis se formar em administração de empresas depois que conhecesse o
mercado por dentro, era avessa a teorizações, tinha energia demais para ficar
apenas com os estudos.
Atendendo a
certa premonição, ele ficou em silêncio, mas ela percebeu a delicadeza da
suspeita e negou: Não, não. Não foi isso, ela ficou bem por vários anos e ainda
está viva. Chegamos a uma idade em que se tem que apontar esse detalhes
primeiro no discurso.
_ Mas então, transei
com ela ou não?_ Timos perguntou, sorrindo.
_ Naquela noite fomos apenas nós dois. Ela nem sequer estava
na sala. Foi para o quarto do lado, deitou-se em um sofá ferrugem tipicamente
francês, retirado de um filme de Agnès Varda.
_ Eu me lembro do sofá_ Timos respondeu, querendo disfarçar que não sentia uma perda com o fato daquela experiência ter-lhe sido retirada. Quando se importava com essas caras tolices da vaidade, saber que tinha tido Kiria em suas mãos era uma de suas lembranças mais valiosas. Sentiu a masculinidade viciada em quantificações totêmicas, as tantas cabeças de mulheres dependuradas na sala de coleção de sua mansão interna. Mas Kiria era diferente; não só pela aventura lubricamente incorreta, mas pela beleza inalcançável dela, sua força afiada como um machado, o modo de sua inteligência em ser cruamente direta, sem os subterfúgios das reflexões e das pausas metafísicas. Não era a mulher perfeita; aliás, quem tivesse se casado com ela deveria ter sofrido, não era feita para esse tipo de união normativa.