![]() |
Silvia Viana: inteligente e bela |
Estou meio que sem tempo para escrever no blog, como está claro. Quando a fagulha surgir, retorno na produção de textos para cá. Muito trabalho aqui em casa, essas coisas. Mas sinto uma imensa vontade de ter umas cinco horas livres pela frente para falar de duas escritoras. A primeira_ e mais impressionante_ é a maior escritora brasileira do momento, deixando todas as outras no chinelo: a Silvia Viana. Estou relendo, ainda mais impressionado que a primeira vez com a sua inteligência, sua profundidade e sua capacidade de síntese e de construir frases soberbas (que nada ficam a dever a uma Hannah Arendt), o seu livro Rituais de Sofrimento. Antes eu o havia lido emprestado de um amigo, mas como acontece quando pego bons livros emprestados, eu fiquei formigando de vontade de comprá-lo. Pois o encontrei na capital e o comprei, e estou já na metade. Digo que Silvia Viana é a maior escritora brasileira do momento pois para mim o mais importante não é o qualificativo de gênero literário, mas a estatura real da inteligência e do talento do(a) escritor(a). Silvia Viana é um deslumbre da primeira à última página; cada linha deste livro é interessantíssimo, instigante, revelador e elegante. Peguemos uma escritora de ficção, como a Carol Bensimon, com sua necessidade de virtuosismo, seus cacoetes vaidosos de imitar referências e leituras, e seus pronunciamentos públicos toldados por um inamovível e involuntário classicismo e arrogância; a Silvia dispensa essa gratuidade, pois é uma pensadora potente antes de uma mera esteticista à busca de estrelato, e notavelmente é carregada de coisas genuínas e importantes para dizer. Esse livro é, em um primeiro plano simplista, um longo ensaio sobre reality shows (especificamente o Big Brother), mas sob essa linha há um verdadeiro estudo sobre a dominação da imagem, sobre a alienação e sobre os arquétipos de poder. E Silvia Viana mostra a grande leitora de literatura que é nas incomparáveis partes desta obra em que usa Kafka como correlação com o tema, além de ter respondido, recentemente, a um convite da revista Veja para que ela compusesse uma entrevista nas páginas amarelas da publicação com a frase bartlebyana "preferiria não" (que provavelmente o funcionário que recebeu tal resposta estava inapto de saber a sofisticada ironia nela impressa). Por isso, ela é a maior escritora brasileira do momento_ num país com uma vida intelectual boçal como o nosso, a Silvia Viana é mesmo algo difícil de acreditar.
A segunda escritora me provoca bem mais apreensões. Trata-se de Zadie Smith. Numa dessas distrações de quem viveu a maior parte de sua vida fora dos benefícios de aquisição da internet, só há duas semana caiu-me a ficha de que era coisa imensamente simples comprar um romance esgotado que há anos eu desejava ler. Acessei a Estante Virtual e pedi Dentes Brancos por meros 25 reais, e o livro me chegou em quatro dias. Que coisa!_ o vestígio do inacreditável em mim cobrando fetichismo do desejo do objeto impossível de dez anos atrás, quando a longa espera determinava a explosão de felicidade da coisa surpreendentemente encontrada. Pois o exemplar retirado do embrulho e folheado causou mesmo neste veterinário que aqui escreve, acostumado a dejetos e cheiros com a mais absoluta naturalidade, um embrulho no estômago. O livro traz carimbo de ter pertencido a uma locadora de livros (o romantismo disso também contribuiu para a nostalgia do velho fetichismo), e, ainda que bem conservado, traz atormentadores marcas de polegar impressos pelo que me parece ser cera de ouvido em diversas páginas. O leitor marcava as páginas em que parava a leitura com uma impressão digital nítida em explícito amarelo biológico, tanto que se fosse atualmente possível identificar o endereço pelas digitais em algum site da net, eu faria o favor de enviar pelos correios um pacote de cotonetes para o sujeito. Mas... como esperar que na descrição das condições físicas do livro no site da EV viesse a desconcertante frase: "com marcas de cera de ouvido por todo o volume". Me envolvi de mais musculatura estomacal e me pus a ler logo o livro da Smith, fazendo muito esforço para conter minha imaginação pulsante que queria me brindar com especulações sobre os outros escatologismos que alguém assim poderia oferecer em horas de leituras em banheiro, etc (aqui me sinto influenciado por uma das frases simpáticas recorrentes da Silvia Viana: "um longo etc").
Mas vamos ao que interessa: Smith é boa escritora. Escreveu uma obra de fôlego e a publicou aos 24 anos. Há diversas evidências de sua pouca idade no romance, e o irritante virtuosismo em cenas sem propósito algum além de suas prestações de contas com Dickens e com o inventário de seus narradores fundamentais (uma sorte para o leitor Joyce não estar no rolo). Há partes impagáveis, e outras nem tanto. É uma obra desigual, às vezes longa demais. Mas valeu a leitura. O que define seu estilo está bem descrito na contra-capa: Zadie Smith é "despojada". Me surgiu a comparação inevitável em linha menor com Jennifer Egan, e maior com Margareth Atwood. Já que estou em uma conversa passional de bar, Egan é o exemplo de prosa sintética desmotivadora, enquanto Atwood continua sendo para mim a maior romancista (mulher) em inglês viva. Pois bem, o despojamento de Smith é um ensinamento, tanto quanto sua enorme fé no que escreve. O que vale atravessar longas cenas gratuitas desse seu romance é justamente o brilho que ela coloca nelas, como se fosse a escrita que salvará o mundo. Produzir um livro de 600 páginas contando histórias domésticas é um exorbitante exercício de fé na literatura. E isso apenas já tornaria Smith a seu modo indispensável_ é muito bom estar em mãos tão crentes, tão devotas. E aqui entra o despojamento: ela destrói a possibilidade de grandes frases, propositadamente: quando se depara com o momento cabível em sua música interna de compor algo lapidar, ela vai lá e populariza a coisa, transforma a frase beethoveana em um desleixado e feliz foxtrot. Alguém mestre em fazer isso é Salman Rushdie. E isso é sensacional, dá um força incrível para a permanência do que escreve. Esse é seu despojamento, despojamento de uma escritora ainda jovem por demais, mas já apta a abraçar sua mestria no trabalho. E aqui entra Egan: enquanto Egan faz do despojamento uma forçação de barra, sendo possível ver a dificuldade que lhe custou ser tão aerada, Smith passa a impressão de que escreveu no ônibus, ou em um restaurante enquanto espera a mãe _ isso é possível, não é só uma figuração: Bellow escreveu Augie March assim.
Desde semana passada, ao ler Smith, estou brigando contra essa comparação, mas foda-se o mau gosto. Lá vai: li há pouco uma matéria gastronômica sobre a Lasanha Perfeita. Um repórter a encontrou no centro de São Paulo, se não me engano. E a foto parece mesmo ser a Lasanha Perfeita. Ele a descreve: não tem queijo em excesso, como acham que tem que ter a maioria dos cozinheiros; é resumida no tamanho, seca, com um raminho de alguma plantinha em cima. É despretensiosa em sua simplicidade arrogantemente cobradora de distinção elitista. Pois Egan é a Lasanha Perfeita. Egan escreve roteiros de séries americanas em forma de romance. Eu detestei A visita cruel do tempo, ainda que ele seja bastante divertido: mas é falso e esquemático em tudo. É trabalhosamente leve. É exaustivamente composto para não cansar. É despojado no pior sentido. Vi uma blogueira metida a besta dizendo com imenso enfado que tudo na literatura atual a cansa, é tedioso, e que teve um momento de total adstringência quando leu A visita cruel do tempo em uma praia em Ibiza. Esse é o retrato da literatura pastel, ou literatura Lasanha Perfeita. A lasanha perfeita para mim é a lasanha que minha tia Tânia faz, e que é um sucesso na família toda: tem excesso de queijo, gordura que sai pelas pontas da colher quando colocamos uma porção no prato; tem o cheio vindo da cozinha que atiça a fome ainda mais; tem um cordel de doces reminiscências da infância; tem todos os erros e imperfeições que só o poderiam ser para os de fora que nunca gostaram de lasanha, mas de empáfia na mesa. Pois bem: não sei ainda se Smith vai me afigurar futuramente no mesmo escalão de grande romancista como Margareth Atwood, mas uma coisa é certa: ela não é a Lasanha Perfeita; talvez por isso tenha me deixado tão prazerosamente desconcertado.