Eu conheci Franz Kafka quando tinha 13 anos. Geralmente a porta de entrada para esse magnífico autor costuma ser sua novelinha mágica chamada A Metamorfose, que um colega de escola me definira ser sua descoberta de uma história maluca de um homem que acorda transformado em inseto, mas o meu ingresso foi através daquele protótipo de pesadelo opressivamente burocrático intitulado O Processo. Eu passava as férias de julho com meu pai em uma cidadezinha de Minas Gerais e nós dois, ele já um leitor inveterado e eu ansioso para honrar meus óculos de míope, encontramos uma bucólica biblioteca circular feita de tijolos e centrada entre um amplexo de árvores. Nela encontramos um monte de livros que nos fez descartar a pretensão de viagens mais longas pela paisagem mineira, e nos manteve enfunados na casa de dois andares situada em cima de um morro e com vista para os trilhos do trem onde nos hospedara o irmão de meu pai. À noite saíamos para as festas e os bares e as tantas casas de amigos de meu tio, e enquanto meu pai tocava violão, eu tentava sair de minha gritante timidez conversando com as garotas. Voltávamos radiantes para o sobrado, meu pai com a tez avermelhada pelo vermute e a felicidade ostensiva daqueles anos, e eu possuído pela febre da descoberta das possibilidades do universo feminino. Parte considerável desse êxtase atmosférico que sentíamos se devia aos livros que nos esperava, eu lendo O Processo e os contos de O Muro, e meu pai lendo O Exorcista e Manuel Scorza. Eu sabia intimamente que estava passando por um aprendizado e uma educação muito superior ao que tinha na escola. Não entendia Kafka como iria entender futuramente, nas minhas tantas releituras, mas prestava uma atenção descomunal e ao mesmo tempo relaxada, consciente de que estava tocando algo de uma verdade e lucidez extremas, algo que era real e intenso e que nada tinha a ver com as tantas dissimulações inúteis e pomposas da escola, algo que me transformava em um ser humano por abrir todas as sensibilidades e sofrimentos inerentes à condição humana. Não um técnico, como me queria a idiotização da escola.
Fiquei tão fascinado com O Processo que não consegui desvincular-me daquela frequência de como ver o mundo através de interstícios simbólicos. O mundo apresentado por Kafka era doloroso, soturno, irracional, claustrofóbico, mas, estranhamente, me deixava feliz, sem eu conseguir descobrir por quê. Passei a olhar cômodos pequenos e apertados com uma apreciação recolhida, com uma certa nostalgia espiritual. Não saberia explicar, mas Kafka me fazia lembrar, em última e infalível instância, a filologia de antigos clãs dinásticos, como se por detrás da solidão insuportável de Joseph K. houvesse a intuição de uma Avalon completamente destituída e apagada dos registros mas que, por uma distração do acaso, deixara vestígios quase invisíveis. Assim eu compreendia Kafka. Ler O Processo era uma proteção, era uma forma eficaz de entender aquilo que transcendia o positivismo das categorias sociais que cada vez mais me pareciam inadiáveis. Mais tarde, bem mais tarde, eu veria explicado, surpreendentemente, essa sensação de despropósito lisérgico em apreciar ambientes degradados em um livro de Slavoj Zizék, em que esse escritor analisa as cenas de silêncio e natureza atulhada dos filmes de Tarkóvski. Zizék explica o que eu sempre senti com enorme intensidade mas jamais imaginava que tal nível de apreensão sensorial pudesse ser verbalizada: descrevendo uma cena de Tarkóvski, em que carros fragmentados e peças de metal retorcidas aparecem em uma paisagem natural selvagem (a paisagem em ruína), às margens de um rio e na ausência ecoante de presença humana, o filósofo esloveno diz que tal sensação advêm pela pulsão capitalista em descanso. Alargando mais esse conceito específico, Kafka me mostrou a beleza da ruína por me revelar a pulsão do mundo que importa em descanso, a pulsão em descanso da história e das compulsões da vida prática, a pulsão em descanso do absurdo e da barbárie transvestidos de sociedade democrática progressista, da ciência e da tecnologia festivamente evolucionistas na melhora da espécie. O descanso da inexorável hipocrisia de ter a estimativa de vida de 70 anos e gastá-la na labuta sem razão do acordar diário para degladiar-se furiosamente pela obtenção de angústia e tristeza capitalizável. Eu, aos 13 anos, não entendia Kafka assim, mas esse meu desentendimento era muito educativo, pois as grandes obras não tem um manual de trilha perfeita a ser seguida.
Quando perguntado por seu amigo Max Brod se existiria esperança "fora desse mundo de aparência que conhecemos", Kafka ri e responde: "Há esperança suficiente, esperança infinita_ mas não para nós." Talvez por isso me vinha_ e me vem_ a intuição de que por detrás dos pesadelos de Kafka exista uma Avalon adormecida, onde, antes, muito antes, as coisas fizessem realmente sentido, as coisas realmente existissem. Como na frase ouvida pelo deão no metrô, de um homem que havia sido ateu a vida inteira, no romance de Saul Bellow (Dean`s December): "Nada é suficientemente absurdo para existir; talvez, então, deus exista!" E foi isso que Kafka sempre me disse, desde quando eu era jovem o suficiente para não entendê-lo (ou jovem o suficiente para entendê-lo, no paradoxo vaidoso de Wilde), que Joseph K., que Gregor Samsa, que K., eram seres vestigiais, órfãos de um universo supraciente de sentido pleno, de mérito absoluto, apartados nessa prisão demasiadamente empobrecida em que nada se comunica, em que as vozes são aparelhos de distúrbio e perturbação e não de aproximação; seres dotados de uma infinita liberdade, mas que na pressuração desse mundo não suportam o peso dessa liberdade e estão sempre atrás do aguilhão que lhes escravize para dar-lhes um sentido eufemista de pertencimento. K., personagem de O Castelo, é desbragadamente livre, absolutamente ilimitado, mas não suporta a aflitiva ausência de direção vinda da indiferença dos senhores do castelo, que se negam a inseri-lo na lógica da aldeia ao serem reticentes quanto se vão contratá-lo ou não como agrimensor. E Joseph K., nascido na plenitude de sua independência, não tolera sua leveza em não conhecer as cláusula do vazio que lhe imputam na forma de um processo passivo e inofensivo, mas que só cresce e se demonstra em resposta à sua reação a ele.
Estou relendo O Castelo, na tradução de Modesto Carone. Ao mesmo tempo leio Eichmann em Jerusalém, de Hannah Arendt. Uma das minhas felicidades é Hannah Arendt, mas ainda não tinha lido por inteiro esse misto de reportagem e análise estupenda sobre a natureza do mal. São dois livros que pretendo que meus filhos leiam antes de chegarem a seus 15 anos. Só esses dois livros garantiriam uma larga margem de possibilidade de que eles se tornem pessoas distintas intelectualmente e humanistas inveterados, com empenho em não caírem em clichês das ideias nefastas e deterioradas do politicamente correto. Grande parte do livro de Arendt versa sobre os clichês aprisionadores da sociedade, que poupam as pessoas do pensamento real e as tornam indivíduos animalizados moldados para qualquer condução que lhes queira dar os poderes instituídos: até mesmo para o assassinato. Eichmann, o nazista raptado por agentes secretos israelitas em seu refugio na Argentina, no começo da década de 1960, e julgado em um tribunal em Israel por crimes de guerra, é o protótipo desse indivíduo correto, bom pai e vizinho perfeito, pedante seguidor de regras e comandos de ordem. E Arendt, que assistiu e participou ativamente de todas as fases desse julgamento, é o cérebro que transcende as tantas formas que o clichê intelectual desse enredo apresentam para cimentar o pensamento de uma escritora, mulher, judia, e distanciada apenas 15 anos desses eventos cheios de passionalidade. Arendt, diga-se em primeiro lugar, foi um dos maiores escritores do século passado. Quanta sofisticação em sua escrita, quanta lucidez e força, quanta beleza e limpidez. Ela começa atacando os esquemas pérfidos de Israel em transformar o julgamento em uma causa pessoal, em esteriótipos de condução do ódio popular contra os alemães e a pena a favor dos judeus europeus. Foi uma das primeiras, senão a única, intelectual a fazer isso, naquela primeira década após o fim da segunda guerra: a se indispor com os atos de ofício laudatórios que o povo do qual formalmente pertencia poderia lhe oferecer, caso ela se predispusesse a ser um dos mitificadores da miseração judaica. Assim como faz em Origens do Totalitarismo, em que apresenta um quadro pouco festivo sobre o quanto os judeus ricos eram impiedosos e indiferentes ao destino dos judeus pobres, em Eichmann ela reporta o quanto a matança dos judeus poloneses pelos nazistas pouco foi considerada pelo establishment moral de Israel, e o quanto Israel se esforçou para enfocar o genocídio apenas nos judeus europeus, deportando o restante do mundo e reduzindo os crimes de crime contra a humanidade para crime contra o povo judeu.
Mas o melhor e mais impressionante desse indispensável livro de Arendt, é a sua desmistificação do monstro assassino e impiedoso que intentarem fazer de Eichmann, apresentando-o como um homem medíocre, simples, mesmo de bom coração, que, paradoxalmente, foi um dos poucos nazistas que fizeram algo efetivamente válido para salvar milhares de judeus antes dos massacres. Seu diagnóstico é tão fantástico que o livro ultrapassa as fronteiras mesmo da filosofia desconstrutivista para ser um dos retratos mais profundos da natureza humana formalizada pela sociedade. A ironia finíssima de Arendt é um deslumbramento: a Eichmann bastou ler dois livros, seus dois únicos livros lidos na vida inteira, para torná-lo um progressivo homem poderoso do führer; dois livros que versavam sobre o movimento sionista de deportação dos judeus e criação de um estado independente para eles; em determinada parte do volume, Arendt descreve a incrível vaidade de Eichmann pelo poder no sentimento de superioridade que ele tinha frente a seus subalternos, afinal, "em parte porque eram ignorantes, nunca haviam lido um ou dois 'livros básicos'". Outro momento revelador é quando um dos policiais da carceragem oferece a Eichmann, para livrá-lo do tédio, o Lolita para ler, ao que o alemão o devolve depois de um dia alegando ser um livro imoral e contra seus princípios. Para um Brasil de hoje, uma pensadora como Arendt seria impossível no que vemos nessa frase definitiva que comportaria grande parte da intelectualidade e a mídia nacional: "esse horrível dom de se consolar com clichês não o abandonou (Eichmann) nem na hora da morte".
Pediram-me por e-mail para que eu escrevesse um texto de auto-ajuda sobre meus tempos de gagueira extrema. Percebi que ainda não sou capaz de fazer isso da maneira séria como gostaria, por isso, por enquanto, escrevi apenas uma frase: o mundo pré-galilêico da criança gaga, em que ela está para cair de suas bordas planas em direção ao abismo a cada grande vergonha de sua incapacidade vocálica por que passa.