
Dos cursos universitários que fiz, por mais vinculados à onda de malucos que são História e Jornalismo, os episódios tresloucados que se seguem são frutos de minha convivência com alguns alunos da planificada e sertanejamente sem graça Veterinária. Estudar veterinária num estado agropecuário como Goiás, e, em contrapartida, ser adepto às ideias livrescas, é algo bem próximo ao martírio. Todos os dias ver caminhonetas da moda chegando nos estacionamentos da escola, ver descendo delas personagens saídos de algum desvirtuado clipe de música country texana, com cintos de fivelas enormes onde se tem desenhado em alto relevo um cavaleiro em cima de seu alazão, sujeitos vestidos com camisas xadrez e chapéus de alguma marca top de linha (e sair por aí utilizando essa expressão tosca: top de linha), é o tipo de espetáculo que me fez várias vezes pensar, desconsolado, que estava perdendo cinco anos da minha vida, de modo muito inconsequente. Sem falar de meu espanto ingênuo em constatar que os cursos de Medicina Veterinária do país são nomeados de forma enganosa, pois pouco tem de Medicina e muito do prepotente conceito do novo latim acadêmico Agronegócio. Esses cursos, pois, deveriam se chamar Agronegócios Veterinários, para fazer justiça ao real objetivo dos que estão enroldados nesse curso, que pouco tem de medicina. Eu mesmo, com toda a minha propalada moral e amor aos animais, vivo de um emprego público em que se matam mil cabeças por dia, e eu sou um dos Agentes Ativos do Agronegócio que fiscalizam nas cabeças e nas vísceras, nos gânglios linfáticos e nos couros e cascos, dessa incomensurável quantidade de animais sacrificados, se há alguma imperfeição que impossibilite seu consumo.
Pois bem, mas o caso não é esse. O caso é que eu me isolava diplomaticamente do restante da turma, de tal modo que, ao almoçar junto de um de meus colegas, no restaurante universitário, e nos falarmos por quase uma hora, esse colega se vira para mim e pergunta qual curso eu fazia. "Ora, Milton, eu sou da sua turma de veterinária!", respondi. Eu era cabeludo, muito magro, os sintomas da timidez voltaram a insurgir em mim, apesar dos dois anos em que o jornalismo me exorcizara, e, como todo aficcionado, era visto sempre com um livro nas mãos, que nada tinha a ver com veterinária. Recordo que, certa vez, eu me deitara na rede emprestada por uma amiga que fazia artes plásticas, e me pûs a ler um romance de William Golding no intervalo do almoço, e varei a lê-lo sem me dar conta de ter começado a aula da tarde. E veio um amigo japonês, que era o primeiro da turma, me chamar para a aula, e quanto foi o seu espanto (quase próximo ao terror) ao não entender o título do livro que eu lia, que era "Visível Escuridão". Ele rodou o livro nas mãos como se fosse uma caixinha musical vinda de um sistema planetário distante, leu várias as vezes o título em voz alta, e me olhava como se visse o quanto havia sido tolo em ter, alguma vez, cogitado que eu seria mesmo um veterinário. Pelos cinco anos, ele sempre me olhava com aquele olhar estarrecido, de que jamais entenderia como eu perdia tempo em ler um...romance?!?!
Daí uma noite eu recebo um telefonema. Ah, aqueles tempos do telefone fixo! Era um colega de turma, do qual já falei aqui algumas vezes, e que tem o raríssimo nome de José. Ele foi logo de cara dizendo: "Você sabe de alguma coisa que eu devo saber! Quero que me conte o que é." E nisso ficamos por duas horas de ligação que me custou um puxão de orelha no final do mês, quando minha mãe viu a conta telefônica. Minha inconsciente imagem errática e reservada despertara no Zé a ideia de que eu era algo como um iluminati. Para disfarçar a magreza_ que era realmente excessiva_ eu sempre usava uns casaquinhos cinzas da Forum por sobre uma camiseta (aprendi isso com o Safatle), e penso que esse aspecto me dava um ar de flautista do terraço, ou alguém excêntrico que agradava ao Zé. (Na verdade o Zé via em mim tudo o que ele era, num exercício de deslocamento vaidoso; era alguém que, à diferença de mim, não conseguia sobreviver na solidão ensurdecedora do curso de veterinária; ele havia vindo de Cuiabá, deixara uma namorada que amava, a família, e era um relações públicas entusiástico demais para suportar morar e transitar pela cidade sozinho.) Quando ele soube que eu tinha a coleção completa dos álbuns do Jethro Tull, aí não deu outra: tornamo-nos unha e carne. Oficializamos a amizade em um final de semana de bebedeira homérica, em que eu levei um puta tombo na portaria de seu apartamento e, para driblar a vergonha por um casal de ar respeitado que saía do elevador e me olhava com recriminação, eu, esticado no chão, ergui as duas cartelas de ovos que levava e que estavam intactos com a queda, e disse a um Zé que não parava de rir: "Cumpra a nossa missão sem mim, Zé, leve os ovos ao seu destino". (E eu tento agora imaginar o que eu fazia com aqueles ovos, mas nada me vem.)
O Zé me apresentou ao movimento logosófilo. Ele era um adepto sincero, estudava livros e livros sobre o assunto. Sua namorada, Moema, era vinte anos mais velha que ele e, quando fui à casa dele em Cuiabá, vi que ela era uma espécie de sacerdotisa do grupo local do movimento. Graças a ele, descobri que em plena Goiânia, há uma pirâmide do tamanho de um prédio de três andares, localizada num terreno de pureza branca onde os rosacrucianos assistem palestras e cumprem seus rituais rotineiros. Descobri que além do Zé, haviam mais três outros sujeitos na nossa turma de veterinária que professavam uma fé descabida a um quarto aluno, de nome Alcemir. Esse Alcemir era uma grande piada, um mestre na mentira, um trapaceiro profissional, mas que só se deixavam se seduzir por sua conversa fiada aqueles que tinham alguma visível insegurança juvenil. Os outros três colegas e o Zé, por mais que fossem brilhantes e gente boa, se adequavam ao perfil de segregados que o próprio curso de veterinária criava. Viviam longe dos pais, estavam estudando o que não queriam, tinham uma série de ânsias de libertação e de conquistas, e o Alcemir catalizou isso com uma eficiência hipnótica. Eles sentiram a necessidade de me trazerem para o grupo, mas antes me estudaram, me faziam perguntas sobre a minha capacidade de guardar segredos de um novo estilo de vida, e coisa e tal. Eu respondia sempre que não curtia a onda homossexual, mas tinha suficiente respeito para conviver com amigos diferentes, desde que não me cantassem. Eles simulavam rir, mas percebia uma tensão em se olharem que parecia dizer: "Esse aí talvez não se adeque, seria melhor desistirmos dele". Mas, quando menos percebi, estava saíndo com a turma. Nossas reuniões eram sempre às 3 da manhã, em locais extravagantes. Uma delas, pulamos as grades do zoológico, e nos reunimos no pátio ao lado do poço das lontras. Um guarda se aproximava, e o Alcemir pedia-nos licença, se levantava e falava alguma palavras cordatas para o vigia, que daí tornava a andar e nos deixava em paz. Uma coisa era certa, o Alcemir era um gentleman, falava compassado, sua voz era musical, andava com a ginga mansa dos Hare Krishnas, e sempre emanava uma assepcia e higiene impecáveis. Conquistara uma das alunas mais ricas da nossa turma, que também estava longe de casa e morava com duas outras amigas, e essa moça, Letícia, fazia o que ele queria. Mas ela só participava das reuniões diurnas dos fins de semana. Outras vezes nos reuníamos em campos de fazendas nas intermediações da cidade, em matas fechadas, num porão da biblioteca da praça universitária.
Entre os ensinamentos do Alcemir, o seu predileto era o desdobramento da consciência. O sujeito tinha que se deitar em um quarto, solitário, com uma meia luz suave, estar em absoluto conforto, com o estômago vazio, e vestido com roupas leves. Daí o sujeito sentia todas as parte do corpo, apuradamente, até que essa lucidez o permitisse sentir o corpo entrando no sono, formigando. O torpor tinha que ser severamente controlado para não afetar a consciênca, senão tudo estaria perdido. Daí, nessas prévias que podiam durar uma hora, o sujeito sentia-se saindo do corpo até boiar próximo ao teto; o sujeito virava-se para baixo e veria o seu corpo repousado da forma que o deixou, e um translúcido cordão umbilical azul ligando-o da testa de sua consciência à testa do corpo. Alcemir alertava: "Cuidem bem desse cordão, para que ele não se rompa; alguns se rompem e a consciência jamais retorna ao seu corpo". Todos treinavam em casa. Eu conseguia chegar até a fase do formigamento, e uma coceira no nariz que sempre aparecia nessas horas me fazia sair do torpor. O Zé me relatou numa manhã, eufórico, que conseguiu voar numa velocidade incrível por sobre a chapada matogrossense, e se viu num quarto de uma moça que também havia saído do corpo e com quem conversou sobre tudo. Alcemir dizia que todos saem do corpo à noite, quando sonham, e os exercícios não eram para tornar o que a própria natureza capacitava, mas para condicionar-se lembrar dos eventos. Numa das últimas reuniões em que participei, ele se virou para mim e perguntou: "Qual o lugar do mundo que você mais gostaria de conhecer?"; eu respondi: "Loch Ness". Ele se voltou a todos os outros e disse: "Amanhã, todos nós, nos encontraremos às margens do Lago Ness, à meia noite".
Eu em esforcei, mas, infelizmente, não pude cumprir o compromisso. Por incrível que pareça, ninguém mencionou o fato nos outros encontros. Alcemir tinha um carinho por minha intelectualidade, gostava de falar sobre livros, quando estávamos reunidos em torno de uma fogueira no sítio do Daniel, um dos nossos amigos, tomando vinho quente (argh! Horrível!). Daniel era seu seguidor mais fiel, e Daniel me dizia que Alcemir havia lido de tudo, pois só bastava posicionar uma mão por sobre o livro e o conteúdo na íntegra se lhe transmitia por osmose mental. Daí eu disse a Daniel que na próxima reunião eu iria perguntar ao Alcemir se ele havia lido Os Acrobatas de Jericó, do grande autor polonês detentor do Nobel, Ocirej Sataborca; e o monumental volume triplo de memórias, As Cinzas de Opel, do escritor judeu asquenaze Lepo Ed Saznicsa. Eu faria o Alcemir tanto dizer que havia-os lido, como discorreríamos sobre as grandes verdades espirituais contidas nesses dois livros, que nunca existiram, que haviam sido inventados por mim naquele momento, e que o nome dos autores eram facilmente desmascarados como um jogo de palavras dos mais fajutos. Dito e feito: quando andávamos por um campo, à noite, lanço as perguntas sobre os célebres pensadores, e Alcemir diz conhecer a obra completa, mas que, pelo menos no caso de Saznicsa, o acha mutilado, um tanto quanto provinciano em sua visão de mundo. Na última reunião em que eu fui aceito no grupo, após Daniel revelar a ardilosidade ao mestre, Alcemir me coloca sentado isolado do grupo, num evidente julgamento, e me lança uma série de acusações sobre minha alma depravada, folgazã, meu espírito de burguês irredimível, e me tasca uma expressão feliz que sempre julguei ser o seu maior achado: eu tinha uma patológica maleabilidade moral.
Um ano depois, a Letícia e o Alcemir sumiram por três meses do curso de veterinária. As colegas não a achavam em casa (Alcemir passou a morar com ela, fazendo as outras amigas que dividiam a moradia abandonarem o apartamento). Corria o boato de que os pais da Letícia haviam descoberto o relacionamento através do aborto que Alcemir impôs à Letícia. Depois, a Letícia apareceu, abatida, com profundas orelhas, muito magra, mas o Alcemir nunca foi visto novamente. Desapareceu por completo, deixando dívidas e um grupo de seguidores que já há alguns meses se distanciavam dele por alguma espécie de enfado tardio. O Zé abandonou o curso, voltando para cuidar da empresa de turismo do pai, que ameaçava cair na bancarrota, em Cuiabá. E eu, arranjei uma namorada doce, fraterna, a qual estava escrito que iria abandonar após três anos de namoro por uma outra que não era nem a terça parte de conforto que ela representava, mas que tinha os movimentos certos das longas pernas morenas.
E me lembrei disso tudo porque, justamente ontem, à meia noite, estava na General Wade´s Military Road, de frente ao Lago Ness, no Google Maps, e brinquei com o acaso de que talvez o que me motivou do nada a procurar aquele endereço fosse um derradeiro contato telepático de um Alcemir que também estivesse de frente ao computador, vendo a mesma coisa, quase vinte anos depois.