
Agora as fotos em todos os jornais e sites da internet estampam os rostos desconsolados e as atitudes ritualísticas religiosas dos fãs pelo mundo de Steve Jobs. Como todo amanhecer que advém da morte de um herói, o amanhecer que se abriu diante o mundo com a gritante ausência do criador da Apple também tem aquele matiz de cor de cinemascope que dá a impressão de que as mínimas labutas cotidianas foram suspensas, por um instante, para que os corações e as mentes se enchem de uma angústia deliciosamente nostálgica. O site do bol, ontem, um dia anterior ao da morte de Jobs, cobrava de mim que eu fosse o enérgico homem de libido inesgotável já às seis da manhã, quando, antes de ir ao trabalho, ao confirmar meus emails, as fotos da entrada mostravam as garotas de biquine dos times de futebol nacionais; hoje, nessa atmosfera sagrada de enterro viking, as fotos são de um garoto chorando diante uma coroa de flores, uma mulher acendendo velas, uma fila de adoradores olhando pro céu; o apelo, meu cérebro teve que entender de imediato, era completamente outro: exigem de mim um discreto grau de monasterismo, um quê de recato, nada de pegar pelas emoções mais baixas, hoje não, hoje vamos chorar O homem. Nada mais moralizante para as tendências intrínsecas ao individualismo latentemente pervertido do homem cibernético do que cortar-lhe o barato sexual autômato com a notícia que um grande homem morreu; ainda mais se o grande homem for, ele mesmo, um dos principais responsáveis por essa luxúria sexual, essa farra do isolamento condicional que numa catarse paradoxa nos oferece a impressão de conquistarmos a amostra grátis de todas as plenas sensações do convívio social. Pulo para meus blogs rotineiros de visita, e lá está: Jobs no silêncio reverente da Companhia das Letras; Jobs no site do NYT, nas notícias principais do Google. Logo Jobs vai me pegar de frente nos telejornais não só do restante do dia, mas da semana, do mês, da retrospectiva de final de ano.
Interessante o quanto a morte de Jobs é carregada artificiosamente de uma áurea de repentinidade dramática. Parece que a causa de seu desaparecimento vem das mesmas que abateu por sobre outros personagens ilustres dos últimos anos. O seu definhamento físico, que era algo consumado em suas tradicionais aparições públicas desde dois anos atrás, parece não ter sido apreendido pelo conhecimento dos milhões de usuários dos aparelhinhos de telas coloridas, que são os que, me parecem, mais o consideram um gênio e mais choram a sua partida. Bauman definiu os rebeldes urbanos dos protestos atuais na Inglaterra, como sendo "consumidores fracassados", atrás unicamente de seus direitos de cidadãos pós-ideológicos de consumação dos fetiches oferecidos pelo mercado; já os órfãos de Jobs parecem ser o oposto disso: os consumidores perfeitamente potencializados pelo absoluto sucesso de consumirem o que quiserem, daí a rede de superficialização em não terem tido a necessidade de fazerem o nexo cognitivo de que o criador do i-phone fosse alguém passível de mortalidade. Em O Labirinto da Solidão, Octávio Paz traça a diferença da visão frente a morte entre mexicanos e norte-americanos: esses últimos, ao contrário das festas naturalistas cínicas mexicanas da celebração da morte, vivem numa não aceitação frenética da finitude, conduzem seus planos de vida numa aleatoriedade quanto aos limites temporais e adotam dietas que não pressupõe o AVC na linha frequente de cafés-da-manhã com bacon e ovos fritos. Paz analisou isso na dura metade do século passado, onde os exílios virtuais eram inexistentes e a realidade só possuia como reparos anestésicos a tv e o rádio; os descendentes dessa geração que viu a cabeça de Kennedy se esfacelar pelas imagens do televisor de válvula, e o coma definitivo de Elvis pela imaginação propugnada nos noticiários, estão inalcançados pela ausência de filtro de que as telas mágicas e os bilhões de dólares, por mais que assinalem magnanimamente o contrário, não descartam que aconteça com seu beneficiado a mesma verdade última que acomete os que não são abençoados pela grande estrela. Daí que a morte de alguém como Jobs vem investida de uma pressuposição fortemente subliminada de que só foi possível que morresse através de uma tragédia, um tiro, uma overdose, um acidente automobilístico, algo tão alheio e determinante quanto a sua condição de natureza eterna. Não será para menos que nos obituários futuros, quem quiser saber a sua causa mortis terá que procurar muito nos bancos de dados, pois vai ser generalizada a verdade de que cumpriu sua estadia gloriosa sem que precise questionar escamoteados detalhes desconcertantemente terrenos_ assim como é oficialmente inconcebível supor que a beleza celestial de Ingrid Bergman foi abatida por um desfigurante câncer de útero. Se essa geração que compõe a quase maioria absoluta de indivíduos atuais, em termos de estatísticas de consumo (que é o que importa), fosse um tanto menos ególatra, um tanto mais liberada a alcançar um patamar de percepção do que poderia ser a vida além da técnica institucionalizada pela grande mídia, poderia até a passar a crer que os atributos das telas coloridas trarão Jobs de volta, numa reencarnação digna da mágica transcendental que ele criou.
Lembro de ter lido que quando Chaplin lançou Tempos Modernos, em meados da década de 1930, a magnífica sátira ao fordismo que retrata a escravização moderna do homem pela indústria de forma a transformá-lo num autômato compulsivamente repetitivo, o forte apelo denunciador do filme demorou para ser percebido pelas platéias. Mesmo sendo a mesma platéia composta de homens oriundos do meio industrial, funcionários ou ex-funcionários submetidos à distração do cinema para que tanto si próprios quanto o Estado fossem suavizados da dura (e reativa) percepção da realidade da crise _ nessa consonância dual que tem o bom cinema de ser ao mesmo tempo, veículo revolucionário de esclarecimento e arma pacificadora_, a única coisa que era explícita para ela era a comédia pura. Esses homens tinham a incapacidade cultivada de não se identificarem na tela; o miserável que era engolido pelas gigantescas roldanas da máquina era o palhaço eventual de um mundo que nada tinha a ver com o deles. Não é para menos que quando da morte de Ford, o cortejo fúnebre e as festas de veneração tenham tido o esplendor e a imperiosidade que a morte não conseguia tomar do Ford icônico posto como crendice sagrada ao cidadão acabrestado pela realidade criada pelos poderes dominantes.
Jobs representa a nova dinâmica industrial escravocrata do mundo contemporâneo, numa eficiência e absoluta persuasão de santidade hedonista que não é possível enxergar aos que estão nos escalões abaixo, na linha mediana da comunidade cibernética. O fordismo, ainda que impere sempreterno na base da produção, foi suplantado na auto-percepção e no imaginário do homem moderno pelo jobismo. O jobismo trouxe para finalizar o empreendimento hiper-astucioso do capitalismo global o que os projetos do socialismo pragmatizado não conseguiram descobrir em sua obtusidade rígida: o misticismo consolador da técnica aparentemente ilimitada. É como se ao fordismo, que comanda os braços e a libido sincronizada do proletário, afim de garantir o surgimento de novas frentes de trabalhadores, se juntasse a força de coalizão que faltava, que comanda o que antes se julgava inalcançável e insubmisso: o interior do coração humano. Jobs, assim como seus parceiros edênicos da Microsoft, do Facebook, do Google...são responsáveis pela pedra de consolidação que faltava ao capitalismo global: descobrir que no coração humano não existe nada; nenhum melindre ou força propulsiva vulcanizada que não possa ser persuadida por um celular de ponta, por conexões ultra-rápidas da internet, por comunicação bluetooth, por ter suas fotos familiares compartilhadas pelo mundo todo, para que vejam o quanto você é um consumidor bem sucedido. O grande mérito de Jobs foi ter descoberto que as mulheres semi-nuas que aparecem no portal da bol logo de manhã é tudo o que mora no fundo da filosofia do homem urbano.
Zizek escreveu que o conceito de proletariado composto por Marx está defasado. Proletários somos todos nós, que nos submetemos ao sistema, alimentando-o com nossas horas diárias, retroalimentando-o doando tudo que nosso tempo conseguiu num consumo irrefreável; que vivemos em bolsões de exilio para não incomodar a corrente eterna dos que fazem a máquina girar, em nossas favelas, condomínios, bairros auto-vigiados, apartamentos, vilas. O capitalismo, segundo Zizek, adotou plenamente todas as táticas comunistas, apagando de vez qualquer mérito que pudesse ter o inimigo (desacreditando-o por completo), de modos que entramos numa fase evolutiva de biopolítica, em que tornamo-nos números manipulados. Nossa força espiritual, que Kant, em sua suprema inocência, tentou organizar em seu Paz Perpétua, se tornou estatistica pura e simples. Temos música de graça. Toda a cultura produzida pelo homem ao alcance de um download. O que Lênin, Stalin e Mao nunca conseguiram; aliás, o que eles mais temiam: o esclarecimento e a liberdade de opinião como um princípio elementar dado_ outorgado_ a nós pelo capitalismo cibernético. Jobs nos deu o que Adorno e Horkheimer intuiram estar na fase mais elevada do esclarecimento: o enfrentamento com o nada da saturação pela exposição ao conhecimento. Apenas que Jobs foi além do limitado alcance da filosofia: mostrou que a nós, os homo sacer, nós, os pós-políticos, poderíamos nos deleitar com a pacificação hedonista do nada. Jobs é um dos heróis da farsa do conhecimento através de um click, da exaustão excessiva através da impressão da aquisição, de outro avatar do capitalismo, o da relativização legal de direitos autorais de criação e da consecutiva extinção das patentes intelectuais que antes garantiam a produção de cultura e de ideias, em todos os campos humanos. Jobs, declarado gênio, foi genial apenas na visão estrita de tomar para si uma miríade de ideias surgidas de cabeças já não possuidoras de personalidades nomeáveis. Com o grupo de "criadores" de Jobs inaugura-se o socialismo da não propriedade intelectual em que o livre domínio só por milagre não decretará o fim da criatividade da mente humana, às custas dos bilhões ganhos pela corporação dos Zuckerberg, dos Gates, e dos Jobs, que lucrarão através do roubo instituído que será formalmente apresentado através das telas dos ipads, dos tablets, dos iphones. Com Jobs surge a espécie dos homo otarius denominada por Zizék. E esses heróis serão, à via de uma maior catarse, apresentados na derradeira versão poético-trágica cinematográfica em suas vidas solitárias de grandes visionários excêntricos. Não à toa há milhões que choram hoje a sua morte.