
Há um conto de Saul Bellow intitulado Como Foi Seu Dia que trata da visão de uma simples dona de casa americana quanto ao grande portento intelectual e filósofo acadêmico do qual ela é amante. Esse pensador moderno, altamente graduado nos níveis universitários, conversava de igual para igual com Hannah Arendt, desenvolvera uma teoria de reinterpretação original dos escritos de Marx, fazia congressos pelo mundo inteiro e era um aficcionado por boas doses de whisky para encerrar o dia. Em suma, era um astro mundial das ideias, algo equivalente a um Mick Jagger cuja atração exercida sobre um extrato específico do mercado de entretenimento era proporcional ao que fazia alunas pós-adolescentes e mulheres de meia idade se curvarem diante a sua imanência sexual de crueza masculina subjacente à imagem consumível de cérebro infatigável. Bellow, com sua contumaz energia em tecer frases iniciais disfarçadas sob a mais insuspeita trivialidade, começa o conto assim: Assoberbada por dúvidas, seduzida por seu espírito inquieto, Katrina Goliger iniciou uma viagem que não deveria fazer. Tendo encerrado a jornada pelas quatrocentas e tantas páginas de Em Defesa das Causas Perdidas, me veio à mente a lembrança desse conto e a convicção de que Slavoj Zizek é o amante ultra-cerebral de Katrina Goliger. O auge do conto de Bellow é uma cena num avião em que os dois, Katrina e seu Zizek, passam bem próximos da morte. Por um momento, entre as descrições de uma vida milionária em vários sentidos (tanto financeira quanto a da quantidade de holofotes projetados), o conto nos mostra o significado fugidio e atordoador que surgiria caso a entidade fosse pulverizada por um acidente inesperado que só é factível acontecer com simples indivíduos. Se o grande pensador morresse na queda de um avião, quantas possibilidades redencionistas seriam abortadas para o futuro político do mundo, repetindo uma nota de rodapé no livro de Zizek que nos passa a dedução de que a realidade atual, em seus diversos niveis, surgiu das ideias escritas em quartos às vezes paupérrimos por homens isolados? Ou, apreendendo a lição de Conrad em O Coração das Trevas, quando Marlow falseia à noiva abandonada por Kurtz que as últimas palavras dele foram dirigidas a ela: o que isso importa?, os céus e a terra continuarão sem nunca terem percebido qualquer vã intrusão humana em sua eterna existência.
Um jornal chegou a alegar sobre Zizek que ele "é o homem mais perigoso" sobre a face da Terra. Uma leitura mesmo leviana de seus textos não deixa prever a verdade de uma tal afirmação, não pela acurácia do leitor em se deixar levar pelo lado pop de suas referências entremeadas a filmes de Hollywood, que suavizam sua defesa condicional a Stalin e Mao, e não por se ficar apenas na apreciação retórica de sua afirmação de que o erro destes homens foi não terem sido radicais o suficiente, mas porque o mundo de hoje é absolutamente impermeável a se deixar se fundamentar por novos pensadores isolados em quartos paupérrimos. O livro de Zizek é sim ótimo; lê-lo é retornar um pouco à impressão de segurança que os textos de Nietzsche davam na juventude, quando se era possível participar de uma postura de reação sem precisar se auto-policiar contra o cinismo. Traz a mesma sensação de permanência que eu sentia ao atravessar todo o centro da cidade à pé, num fim de tarde de céu carregado de nuvens de chuva, enfebrecido pelas palavras impossíveis de A Gaia Ciência. Tirando a sua teorização às vezes pesada sobre Lacan, que condiz a uma das duas "causas perdidas" do título (ele que é abertamente freudo-marxista), seu texto pode ser lido com a mesma velocidade interessada que se lê um romance ou um ensaio de temática mais solta. Mas surge uma série de problemas para o leitor maduro, aquele mesmo que, após os 30 anos, se delicia mais com a música de Niet do que com o que ele verdadeiramente queria dizer, que já está emancipado (infelizmente, às vezes) das retóricas wagnerianas e das peregrinações por vales e montanhas atrás da Verdade_ que já está atolado pelas Verdades a ponto de olhar mais com piedade resignada do que com exaustão para as lombadas dos livros na estante. Para esse leitor, a música de Zizek, menos bela que a do alemão, não basta como teria bastado numa leitura de há vinte anos. Seria como a mesma incapacidade de se satisfazer com um espetáculo de malabarismos em que fica evidente demais para a platéia que as facas lançadas no ar podem tanto matar o artista quanto os espectadores nas arquibancadas.
A Experiência atrapalha bastante quando Zizek, carregado da mais elétrica batuta retórica para fazer sua orquestra tocar a sofisticação bombástica de seu concerto, relativiza Mao dizendo que Mao fôra "genial" ao instituir contra si mesmo a Revolução Cultural na China, num golpe de adstringir o regime e centralizar em astuta reviravolta o poder em suas mãos. Zizek poderia ser o homem mais perigoso do mundo se o mundo caísse no seu acentuado poder de sedução_ se o mundo fosse uma Katrina Goliger estupidificada, calmamente, como uma gata de raça refestelada no colo generoso do dono, diante a encarnação humana da plenipotência_, pois Zizek requer uma lucidez de analista de mercado por parte do leitor para que esse perceba a especulação feita num universo virtual que quer valorizar os objetos materiais às custas de suas representações subjetivas. Zizek ataca onde está a ferida, seguindo a técnica de conseguir legitimidade por ser o primeiro a apontar o cisco no próprio olho, aceitando que Mao fez morrer dez milhões de camponeses chineses na grande crise agrária de 1958-1961, mas aos poucos fazendo escorregar esse fato brutal para o ralo das estatísticas puristas lavadas de significados, e transformando, com sua simpatia de promover a distração textual através de interpolações cinematográficas e outras paradas no universo pop, esse dado numa recorrência logística da História, um dado que, se Mao tivesse sido mais radical, teria se justificado no futuro. Dez milhões de pessoas mortas da forma mais cruel imaginável (de fome!), que teriam alçadas ao escalão de mártires nacionais quando a etapa final do pesadelo fosse compensada na aportagem da sociedade igualitária perfeita. E quantas etapas seriam aceitas mais? E se o grande avatar mais radical de Mao cometesse uma pequena distração no arranjo cronológico para a Shangri-Lá verdadeira, e outras dez milhões de pessoas fosse necessário atirar no sacrifício? Ou outras vinte milhões? Imaginei várias vezes a vergonha que eu sentiria se, na Flip, eu dirigisse essas perguntas a Zizek, pois outra face de sua astúcia é o de, à força de sua inexorável teorização técnica, descartar com humor as investidas diretas e simplórias. Trazer todo o seu pensamento situado nas mais altas esferas do discurso psicanalítico e de teoria política, para esse horizonte colegial de nenhuma luz estroboscópica (apenas os 100 vatz que me serviram para ler suas palavras no quarto)?
Numa parte de seu livro, ele se dedica em trinta páginas a responder às críticas de Ernesto Laclau à suas ideias. Laclau escreveu que Zizek esperava a aparição de marcianos no cenário da história atual para refazer com mérito sobre-humano os descaminhos das versões pragmatizadas do marxismo. Ou seja, Laclau ironizou a leitura mais superficial de Zizek_ a da retomada do ponto zero, ou o ponto um, das intenções ainda imaculadas dos grandes reformistas socias da esquerda, Trotski, o jovem Stalin, Lenin, o jovem e o tardio Mao_, insinuando que a humanidade não faria aparecer nenhum elemento de seu comportamento fartamente padronizado de assassinos políticos que fosse virginal o suficiente para não ser engolido pelo mal do poder absoluto. Zizek usa de uma parafernália de termos do mais hermético vernáculo acadêmico para dizer que Laclau não soube ler seus livros, e que Laclau perverteu por completo os conceitos criados pelo seu mestre Lacan. Zizek se enfuna num linguagem tão maçônica, carregada de palavras copuladas (grande-Outro, negação determinada, diegético real, etc.) e termos específicos; lança-se num lago de Narciso particular tão velado, que dá a impressão ao leitor que deveria ter pulado aquelas páginas por não lhe serem dedicadas. Sai-se dessas páginas se conjugando à possível verdade da contra-acusação do autor de que Laclau não entendeu o que ele quis dizer, porque fica parecendo que o significado dessas passagens de Zizek é mesmo além do entendimento. São corpos linguísticos que deveriam ser assimilados osmoticamente, para avalizar em maior grau a importância do autor, que, olhem só, escreveu um livro com tantas outras páginas salutares e divertidas, tantas passagens anedóticas e engraçadas.
Um aspecto imprescindível para o entendimento de que Niet é o grande pensador que é, é a de que morreu louco. Sem a loucura, Niet não teria a estatura que tem hoje. Uma longa vida com uma morte pacífica teria relegado Niet a um simples autor provinciano, que em um momento patológico escreveu assombrações mentais cuja cura as converteram em excentricidades datadas. É pensando no Niet com o cérebro consumido pela sífilis que sabemos interpretar com uma carga incomensurável de beleza e fé numa distante humanidade do porvir sua aforística contrária à ralé germano-burguesa, sua poética de insistir cansadamente de que um dia, "irmão", nos encontraremos numa linha temporal em que a pureza conseguida pelos sofrimento nos autenticará como homens puros. É graças ao velho Niet que podemos acreditar que seria bom se a humanidade como a temos hoje desaparecesse em sacrifício imolador para o surgimento do Super Homem. (Também é graças à morte precoce de Bernhard que seus romances são tão iradamente essenciais.) Porque essa certeza determinada de que não existe mais quem proferiu essas incorreções políticas retirou tais textos da gravidade normativa dando-lhes um caráter de expurgo quase sagrado, de catarse acima do certo e do errado, transformou o que a saúde teria configurado como crime num diagnóstico de iluminado potencial premonitório. Sabendo que não existe uma personalidade à espera das compensações ordinárias ligadas à partidarização e à pertença grupal (Niet dizendo que a raça alemã era a fraca, e a judáica a que se fortalecia ainda mais por quanto mais agruras se submetia), fica estranhamente plausível aceitar o próprio fim para que chegue a época redentora (a cena final de Gran Torino). Tudo o mais que em nosso tempo, as forças da saúde consolidadas e das confortáveis posições de atos de ofício estabelecidas, fala sagazmente sobre extermínio, assassinatos, em nome da biopolítica, em nome da história futura em que os fins justificam os meios, soam o que realmente é: um pragmatismo alienado do sofrimento infligido ao outro desabrigado e desprotegido, para assinar a vaidade intelectual do que está abrigado e protegido pelas instituições oficiais do saber.
Lendo Zizek, que é realmente uma leitura essencial para se compreender nossos dias, vejo o quanto há de contraditório nos lances de suas ideias. Ele trata de algo fundamental: a não aceitação pacífica de vitória total do capitalismo. Para afirmar a unanimidade capitalista, ele lembra de uma banalidade despercebida: há 30 anos não se usa mais a palavra "capitalismo". É difícil ver seu emprego nos textos correntes. Ele instiga à re-criação de uma nova esquerda, não essa que está aí que, como salienta sarcasticamente, "com essa esquerda não precisamos mais da direita." Sua proposta é de uma esquerda auto-elucidada ao extremo sobre seus imensos fracassos, e não escamoteadora de suas culpas; uma esquerda que antecipe as críticas da oposição expondo suas vilanias na cara. E é aqui que, para parafrasear T.S.Eliot, cai a sombra entre a intenção e a ação dos textos de Zizek. No meio da brilhante reificação das grandes utopias e das grandes ideias sociais, Zizek falha enormemente em se negar a voltar ao ponto zero para pular direto ao ponto um. Incapaz de sacrificar por inteiro os heróis dessa esquerda corporativa e auto-negligente que ele tão magnificamente condena, Zizek se encolhe no abraço aos seus ídolos juvenis, e tenta restabelecer Lenin, Stalin, Mao. Assim, ele cai na contra-produção da base de sua teoria, a de que os grandes sonhos de emancipação humana ainda são possíveis. Contradiz-se por mostrar flagrantemente que não sobrou nenhuma dogmatização no edifício icônico da esquerda, por isso tendo que disfarçar em milhares de palavras que Stalin, Mao, Lenin, Trotski, se prestam a serem os alvos religiosos de um novo caminho, desde que o assecla demonstre uma fé inquebrantável de dirigir suas orações às fácias virtuais desses santos quando eles ainda vestiam suas túnicas, antes de terem sido tentados e caídos na mais completa devassidão demoníaca. No fundo de sua estatura filosófica, Zizek não faz mais que cometer o pior pecado atribuível a um historiador: fazer a pergunta "e se?", cogitar da história hipotética. E se Lenin não tivesse morrido em 1924?; e se Stalin não tivesse subido ao poder?; e se Mao tivesse aberto a economia da China? Zizek mostra a grande preguiça ou insuficiência de se pensar em algo absolutamente novo, caindo assim numa mistificação perigosa. Numa determinada parte de seu livro ele relembra uma frase de Hegel, de que não é bom conhecermos demasiado. Uma advertência quanto ao excesso de esclarecimento (algo que Adorno também intuíra). Mas seu intelecto turbinado, seu excesso de conhecimento, o faz pouco auto-referente. Incrivelmente não vê que caiu na cegueira de que "o que é bom para os outros não o é para mim". Não vê que ele é o homem ultra-instruído, alguém que pode ficar confortavelmente fora da história, em sua casa refrigerada, em sua sala de professor de frente a um dos mais belos cenários do mundo em Liubliana, alguém que detêm o que milhões de vítimas do poder do século XX sequer sonhavam conseguir: a proeminência da palavra. Quer ser retrógrado na pesca do antigo iluminismo, mas perde de vista o "coração terno" do qual Checov falava.