
Certo fetiche pela contradição entre as ações e opiniões do homem que está por detrás do escritor, e a obra escrita do escritor, parece fazer parte das zonas de interesse que o leitor médio nutre em relação à literatura. O leitor médio, que abrange desde o ocasional seduzido pelas listas dos mais vendidos das revistas semanais, até o professor de universidade altamente titularizado, percebe com uma passionalidade cristalina o fino limite existente entre literatura e as colunas de fofoca. E esse último tipo de leitor médio, que ingressa nas universidades e vai obtendo todo mérito mensurável que os diplomas de letras douradas conseguem legitimar, é o que mais serve a abranger o fetiche pelo lado das fotos em que tal escritor, às vezes barbado, às vezes de terno social sóbrio ou casaco descolado por sobre camisa de gola aberta, aparece, ao lado de ministros de estado, ditadores, papas, presidentes, altos dignatários do partido, sempre com sorriso do mais concentrado alheiamento quanto ao que os holofotes e os grandes jantares requintados podem trazer de disparidade à raiva, à revolta, e à condenação intelectual a essas situações que fizeram artisticamente interessantes seus romances, ensaios e contos. É como se o homem por detrás do escritor detivesse, com a prática social obtida pela fama, uma percepção mais realista e adulta do que a verdade política tem a oferecer, que o escritor, afundado em sua solidão onírica e juvenil, não consegue visualizar. E é esse escritor que costuma obter o aval da perpetuidade junto à cátedra universitária estabelecida, pois o leitor médio que se elevou às alturas do doutorado se delicia na mesma medida com a propensão que tem o homem das letras ao glamor emprestado dos jogadores de futebol e dos cantores de música
pop.
Tudo o que foi dito no parágrafo acima adquire uma qualidade sui generis quando se trata da América Latina e, especificamente, do Brasil. Por aqui, o leitor médio universitário, que passaremos a chamar de agora em diante como especialista acadêmico, tem a imensa incapacidade de separar a literatura da política. De forma que mesmo a literatura política, para o especialista acadêmico, tem necessariamente que vir carimbada com o selo de garantia da ortodoxia de esquerda. E, como a esquerda latino-americana é mais uma região temporal estática do que um conjunto de posicionamentos ideológicos quanto à política e ao Capital, o escritor de valor para o especialista acadêmico é aquele que defende acirradamente a canção ouvida com o coração enfebrecido no conteiner do passado em que, facilmente, se distinguia os bons dos maus, os opressores dos oprimidos. Quando se fala romancista de esquerda latino-americano, o especialista acadêmico, que viveu naqueles anos dourados, ou é filho ou neto do portador da experiência, já vê o ícone da sagração à sua frente, uma espécie de velho soldado que retornou glorioso de uma batalha de resgate da alma patriótica e merece a aposentadoria digna da genialidade incontestável. Por isso é compreensível que nada haja de pior e mais desprezível para o especialista acadêmico do que um desses escritores resolver trair o eclesiastismo do passado, a causa e os jargões do discurso de esquerda intensamente solidificados. O escritor ou intelectual ou artista ou ativista político que, por uma ou outra razão, se diz emancipado dos baluaques da tradição esquerdista, é taxado sem piedade e sem nenhum nuance como adepto da ultra-direita, neoliberal reaganiano, cachorro do imperialismo norte-americano, inimigo dos pobres, promotor de todas as mazelas multitudinárias do subdesenvolvimento latino-americano, das crianças famélicas das favelas, às prostitutas das periferias.
O exemplo do escritor esquerdista respeitado é Gabriel Garcia Márquez, que Roberto Bolaño bem definiu a um entrevistador o que o colombiano lhe representava: alguém que gosta muito de ser visto ao lado de ditadores e padres. O exemplo do escritor que deve ser desprezado e relegado mais cedo ao esquecimento, é Mario Vargas Llosa, que, já que citamos Bolaño, era seu escritor hispano-americano preferido. Mas esqueçamos Bolaño. García Márquez há 28 anos que não escreve nada de interessante, porém, sempre que é citado pelas revistas e intelectuais de esquerda, sublinha-se as qualidades geniais da última obra em questão que esse senhor hoje octogenário manda ao prelo. Assim, quando a tradução de sua novela de menor calibre, Memórias de Minhas Putas Tristes, foi lançada por aqui, a Carta Capital, sob a pena de Miguel Sanches Neto, disse com todas as letras que esse livro, que não se sustenta nem mesmo entre a produção mediana do escritor, era "obra prima da literatura universal". Já Llosa, ao ganhar o Nobel do ano passado, recebeu uma série tão pesada de críticas depreciativas, não por uma publicação recente ou algum volume específico, mas por toda a sua obra e, acrescenta-se, por sua figura humana. Aliás, em alguns blogs, a própria humanidade do peruano foi colocada em dúvida. Os mais cordiais comentários sobre o autor de Conversa na Catedral lamentam que alguém que escreve tão bem seja um "monstro moral", que seja o "Céline das letras latino-americanas". Ernani Ssó, num texto re-publicado neste blog, relata o quanto foi penalizado pelos amigos ao ser flagrado relendo Llosa, "o que você está fazendo lendo esse lixo!", uma repreensão tão carregada de carimbo de mácula como se lhe pegassem com um álbum de fotos de pedofilia.
E isso porque Llosa, já no final da década de 1960, renegou a versão marxista-leninista-maoista praticada em diversos países da América Latina. Isso porque Llosa encabeçou uma famosa Carta a Fidel Castro, co-assinada por dezenas de intelectuais (entre eles Juan Rulfo, Jean-Paul Sartre [!!], Alberto Moravia, Jorge Semprum e Italo Calvino), que repudiava as confissões de culpa forjadas por Fidel, e assinadas sob o cano da baioneta por dissidentes do regime cubano, carta que foi o estopim para que Llosa deixasse peremptoriamente os sonhos da esquerda congelada nos cantos de glória temporal, e se tornasse um crítico incansável do quanto esses regimes ditos democráticos e derrubadores de tiranos repaginam as situações de extermínio, censura ideológica, estagnação social e atraso econômico cruentos, que eles pregam terem derrubado dos governos de direita do passado. Esse Llosa que resolveu, durante um longo período de crise ideológica, olhar a fundo e sem eufemismos a classe insurgente de patriarcas populistas dos regimes de esquerda conquistados pelas arma, nos vários países da América Central e do Sul, e ampliar essa visão no embasamento teórico de críticos do marxismo como Jean-François Revel, Isaiah Berlin e Raymond Aron. Esse é, enfim, o escritor maldito da esquerda latino-americana, o pensador taxado com a marca denigritória na testa, o anti-herói da mentalidade formada pelas camisetas do Che e pelos bonés de estrela vermelha, o boneco malhado nas salas de aula dos cursos de letras, onde os líderes do gosto e da assimilação da verdade impõem do alto da cátedra que deva ser diminuído, desprezado, combatido como uma piada de péssimo gosto e fraqueza moral.
E ninguém dessa esquerda se dispõe a ler o compêndio da reviravolta ideológica de Llosa, publicado no Brasil pela editora Objetiva, intitulado Sabres e Utopias, para colocar à prova a real perniciosidade do morto. O volume, uma compilação de ensaios políticos e literários do peruano, selecionados por Carlos Granés, traz, em didática ordem cronológica, o posicionamento de Llosa, desde de um otimismo cauteloso _ nunca exultante_ quando da célebre noite em que Fidel Castro o recebe em seu palacete em Havana, pouco depois da revolução cubana, junto a uma turma de jornalistas e escritores, para anunciar que nenhum jornal seria fechado ou censurado em Cuba, até a sua virada para o liberalismo em que se alavanca a acusador das ditaduras repressivas de Cuba, Haiti, Peru e Venezuela. Ler Sabres e Utopias é se submeter ao risco de ter que abrir mão do rótulo que anula o problema, e se prestar a entender a história da América Latina por um ângulo em que não se antepõe o filtro ótico da utopia política da esquerda, se vulnerabilizando a descobrir que o Llosa demonizado é, talvez, o pensador mais equilibrado e lúcido da América Latina, o único que se ombreia às formas de reflexão desatreladas dos moldes ideológicos impostos pela correção acadêmica e vínculo partidário, com outros intelectuais que "dizem a verdade" ao poder (na frase cunhada por Edward Said), em qualquer extremo do prisma político, como Coetzee, Naipaul, Ohram Pamuk (que lhe escreveu um belo ensaio em Outras Cores), Chomsky. Como bem diz Carlos Granés, no prefácio do livro, a sucessão de declarações de Llosa revela o quanto seu interesse é "a luta instintiva pela liberdade", e nenhuma palavra cabe tão bem aqui que "instintiva", pois Llosa mostra nessas 400 páginas o quanto foi guiado por uma observação decantada de veneração dos homens que estavam ou estão à frente das nações latino-americanas.
Cada um desses ensaios tem uma riqueza própria, uma pedra de toque que reafirma o talento de prosador e analista humano de Llosa. No ensaio que abre o volume, O País das Mil Faces, publicado em 1983, Llosa traça um panorama sentimental do Peru, desde Arequipa, sua cidade natal _ confrontando os alicerces mentais do litoral com o centro/periferia_ até Cuzco, dizendo o quanto essa capital do império inca lhe parecia horrivel, e o quanto "já tenha odiado o Peru, esse ódio, como no verso de César Vallejo, foi sempre impregnado de ternura". Llosa utiliza sua memorialística subjetiva da infância para tornar esse ódio terno uma oposição sensível à mazelas morais e políticas do país, indo contra a tradição do subdesenvolvimento de as investir de um caráter sagrado e patriótico. Nega-se a adotar o vínculo espiritual à terra, e assim se anular intelectualmente, e a condena em tudo aquilo que o eco do enquadramento da dominação ideológica afirma ser o dever do amor à bandeira e à co-sanguinidade nacional. Consegue um nível de acidez quase tão apurada nesse ódio quanto Thomas Bernhard em relação à Àustria, e Roberto Bolaño em relação à toda América Latina.
Em um ensaio sobre Omar Torrijos, reconhece o empenho sério desse general carismático em converter o prêmio do canal em benefício da diminuição da desigualdade social do Panamá, nessa que é a última entrevista dada por Torrijos antes que a sua determinada oposição à dominação norte-americana o levasse à morte. Não era seu tipo de político, Llosa diz, mas o apartidarismo de Torrijos, sua facilidade despreconceituosa de fazer amigos, o permitia angariar o melhor a seu projeto tanto de "Fidel Castro, o Xá, Carlos Andrés Pérez, Jimmy Carter, os sandinistas e Nelson Rockfeller (que o presenteou com dois helicópteros no dia em que o conheceu)".
Mas a parte mais esclarecedora de Sabres e Utopias, se compõe dos nove ensaios do capítulo 4, intitulado Em Defesa da Democracia e do Liberalismo. Só o ensaio Confissões de um Liberal, já serviria a propôr um diálogo construtivo com quem se opõe às ideias de Llosa. Só esse ensaio já vale o preço do livro _ e olha que a carga de atenção política na verdade esconde os textos deliciosos sobre literatura que o organizador reserva para o capítulo final_, mostrando o quanto a maior parte dos especialistas acadêmicos está despreparada para um eventual debate sério com o autor. Aqui, Llosa expõe com todas as palavras que liberal é um conceito impossível de ser entendido independentemente das tensões geográficas e históricas de cada ponto do conflito político.
"Aqui, nos Estados Unidos", ele escreve, "e em geral no mundo anglo-saxão, a palavra liberal tem conotações de esquerda e se identifica, às vezes, com socialista e radical. Em compensação, na América Latina e na Espanha, onde a palavra liberal nasceu, no século XIX, para designar os rebeldes que lutavam contra as tropas de ocupação napoleônicas, chamam-me de liberal _ ou, o que é mais grave, de neoliberal_ para me demonizar ou para me desqualificar, pois a perversão política de nossa semântica transformou o significado original do vocábulo _ amante da liberdade, pessoa que se levanta contra a opressão_, substituindo-o por conservador e reacionário, ou seja, algo que, na boca de um progressista, significa cúmplice de toda a exploração e das injustiças de que são vítimas os pobres do mundo."
Nas próximas páginas desse ensaio, Llosa desconstrói os aguilhões conceituais que matam a discussão sobre o liberalismo, mostrando-o não só como a opção mais válida para os problemas da democracia de faxada da América Latina, em que restringe a possibilidade da demência dos governos ditatorias, como mostrando também que os países por aqui que estão tendo um verdadeiro progresso político e econômico são os que se desvincularam da praxe dos dogmas da esquerda e abraçaram uma posição francamente reformista e alinhada à política mundial (o que se entende imediatamente como globalização). E o duro é que, mesmo tendo-se várias reservas a se antepôr a Llosa, o que seria a promoção do debate, há pouquíssimos caminhos de argumentação contrária. "Embora a palavra liberal seja um termo negativo que todo latino-americano politicamente correto tem a obrigação de abominar, o fato é que, de algum tempo para cá, ideias e atitudes basicamente liberais começaram também a contaminar tanto à direita quanto à esquerda nesse continente das ilusões perdidas", ele escreve. Mais à frente, lemos: "Mas esses dois casos (Chaves e Castro) são exceções em um continente no qual, vale a pena destacar, nunca no passado houve tantos governos civis, surgidos de eleições mais ou menos livres, como agora. E há casos interessantes e alentadores, como o de Lula, no Brasil, que, antes de ser eleito presidente, apregoava uma doutrina populista, o nacionalismo econômico e a tradicional hostilidade da esquerda em relação ao mercado, e agora é um aplicador da disciplina fiscal, promotor de investimentos externos, da empresa privada e da globalização". Alguma dessas palavras não se encaixa no retrato da verdade?
Pode-se não concordar com diversas partes do discurso de Llosa, como o autor deste post não concorda _ salientando que nenhum escritor almeja a concordância absoluta_, mas é uma ignorância extrema subjugá-lo por ordens que vem das sumidades ditas sofisticadamente cerebrais da opinião acadêmica especialista. É uma perda que só se volta contra a classe pensante não ouvir o que o Mario Vargas Llosa escreve, e não o que dizem que ele escreve, pois Llosa, apesar de não definir bem a importância da revolta social, envolvendo-a de certa ambiguidade desqualificadora, apesar de não mostrar os possíveis freios de uma democracia futuramente equilibrada na liberdade do liberalismo, ao avanço do império global (seja dos EUA ou de que país da hora fôr), é o intelectual desse continente mais coerente, sagaz, independente e corajoso, o mais abnegado politicamente, sem vínculos partidários ou de outros corpos de ofício. Ao contrário de Garcia Márquez, que se tornou peça de adorno de Fidel Castro (o mesmo Garcia Márquez que escreveu uma das radiografias mais certeiras da ditadura latino-americana, em O Outono do Patriarca), Llosa mantêm a solidão requerida para que o escritor crie, longe dos holofotes que tanto agrada aos especialistas acadêmicos. E foi uma das únicas vozes que antecipou o terror que seu oponente vitorioso, Alberto Fujimori, iria causar ao fechar o congresso e destruir o legislativo, impondo no Peru mais um passo repaginado do caminho lógico que adoça a boca da esquerda diante ditadores sacramentados. Na tradição de conivência e omissão que as letras desse continente possui, só isso já é muito mais que fez Pablo Neruda ao afirmar que não poderia criticar os assassinatos cometidos na União Soviética revelada, por ter amigos no sistema, e Garcia Márquez, ao fazer que não viu o paredón de execução de Fidel Castro aos poetas e escritores que o criticavam.