O senhor Galheb repetia, a fumaça de seu cigarro de palha fazendo ornamentos arábicos no ar, ao tom de seu determinismo cansado,vendo tudo da posição privilegiada de uma lucidez que o excluia de alguma maneira desse fim. Ele morava no porão do edifício, um apartamento improvisado cujos livros espalhados por toda a parte e os três abajures franceses encarnados davam uma distinção remota. Ali dentro eu gastava as horas de muitos entardeceres a ouví-lo, um libanês incorporado à vida da grande cidade ocidental, insolvido nas miragens de sua cultura adotada e com uma personalidade latino-americana mais legítima que a de alguém nascido em Acapulco. Trazia as características étnicas na grande cabeça de traficante do deserto, que não conseguia evitar imaginá-la esteticamente perfeita cortada sobre uma bandeja, alcançando a sua condição adequada de monarca destituído. Os olhos argutos, incansáveis, soltavam faíscas discriminativas quando se deparavam com seus alvos cotidianos (que, para meu deleite, quando andavamos pela avenida do mercado central, eram muitos). O nariz cinzelado, terminado um pouco antes de ter atingido a metade, curto e empinado, condizendo com o afiamento da lingua. Uns óculos redondos de lentes escuras fechavam como a cereja do bolo a sua constituição de estrangeiro singular, alguém cuja natureza era de outra órbita mais dinâmica e avessa ao tédio daquele conjunto de prédios. Estava abstraído de tudo aquilo, ainda que a realidade fosse bastante valiosa para ele, com todos os seus tormentos. Ele tinha plena consciência da morte que pressagiava, conhecia a fundo a corrupção que acarretaria a purgação por ele anunciada. Mas não sofria, era ferrenhamente adepto de uma filosofia de que tudo nessa realidade terrena era passageiro demais para merecer seu sofrimento. Ria da últimas novas com uma felicidade contagiante, seus dentes devastados acrescentando um ar traquina diante a falência do dono da funerária Salstinieri, da notícia de que a mulher do contador do bloco C estava tendo uma escapada com o motorista do ônibus da usina, que o pastor da igreja metodista da esquina havia feito desconto nos dízimos para cinco por cento dos ganhos dos fieis.
_ A podridão da espécie humana_ele dizia, com uma seriedade de profeta bíblico, depois de ter-se refestelado de tanto rir_ Nunca se teve tanta degradação, nem em Sodoma e Gomorra.
Estava antenado a todas as notícias, lia a todos os jornais e revistas. Furtava-os de escritórios de advogados e salas de espera de dentistas. Citava cifras, estatísticas, medidas territoriais, com assombrosa precisão. Conhecia de astronomia, deslumbrado pelo milionésimo de segundo na criação do universo que permitiu que a vida fosse possível. Um micro segundo a mais ou a menos, Halperin, e não estaríamos aqui. Anunciava a morte com uma amargura pela danação de todos, mas a vida o impressionava com uma força inexorável. Era um solitário, mas a solidão não o angustiava. Era imune a qualquer tipo de nostalgia, a não ser a de um tempo tão longuínquo que não se podia precisar ao certo se já existira. Tinha três filhos, como uma vez me dissera, mas sua relação com eles parecia ser de uma complexa provação de acusações e ressentimentos que lhe estafava. Uma vez, quando cheguei a seu apartamento, encontrei um rapaz um pouco mais jovem que eu, alto, os cabelos cortados rente ao couro cabeludo, à moda militar, o quadril largo de uma desengonçada herança materna, os olhos carregados de uma inocência que ele tentava afogar sob trejeitos de argúcia estudada. Era seu filho mais velho. Entre os dois pairava um mal estar de pesadas obrigações. A brutalidade simpática de Galheb reduzia-se a uma irritação cuja lentidão do relógio comia-lhe os nervos. Por final, diante seu Golias de pele láctea e enormes bíceps por sob a camiseta colada de estivador, algo da tribo do deserto lhe tomava conta, saltando-lhe em cima. A coqueteria cheia de lugares comuns da paternidade vinha abaixo, de forma que eu o sentia retraír-se no movimento para não deixar o gancho de direita de seu super-ego deslocar-lhe o maxilar. Ele olhava sem compaixão ao filho e soltava, sem paciência e aos trotes, os conselhos usuais de um bom emprego, de uma boa mulher. Considerava o portento hormonal que tinha diante de si e voltava a vaticinar sobre auto-controle. Falava sobre o perigo das ganguês que estavam se exportando de Juárez para a capital, narrando algo dos jornais, um estupro grupal, uma briga de bar. E o garoto encolhia-se como um patinho, as mãos grandes e voluntariosas cruzadas sobre as coxas como um par de ferramentas erradas. A firmeza falsa do garoto, sua curiosidade propositalmente infinita diante o pai, era massacrada por um gaguejar desconcertante.
Quando Galheb se via livre dele, as raízes beduínas desapareciam. Ele abria a porta de sua caverna e quando via que era eu que estava ali esperando, lançava-me um cumprimento cordial, simulando surpresa, sempre referindo-se a um pressentimento de minha chegada.
_ Eu juro que há pouco, enquanto almoçava, me veio a certeza de que você apareceria, e eu pensei: Vou ter que comer duas vezes com Halperin_ dizia.
Da soleira até a sala disparava a falar, disfarçando a impressão de que ensaiara a procissão de conhecimento no silêncio de sua reclusão, rumorejando um por um os artifícios de humor, crítica, e dados documentais.Mas os efeitos daquela vida comum e insípida que a presença do filho lhe afrontara se fazia ver em seu rosto concentrado. Era um homem talhado para a solidão. Seus olhos ferozes abaixavam-se um quarto de circunferência e se mostravam focados num impreciso ponto adiante, de novo sem se assombrarem com nada.