terça-feira, 21 de outubro de 2025

Histórias de amor no novo milênio

 


Vi um vídeo no Fantástico falando sobre os apartamentos caixotes de Hong Kong. Pessoas moram dentro de caixas menores que caixões. São dezenas delas em cada apartamento, com uma micro cozinha e um micro banheiro coletivo. Ao todo, são milhares, quem sabe milhões, que moram assim na China. A visão desses prédios é aterrorizante, gigantescos, cobrindo com suas cores pardas ciclópicas toda a área urbana. Não há o mínimo espaço para algo que não seja feio, brutal, sem alma, opressivo, aviltante. Em dado momento o repórter é expulso pelo dono do local, ou o gerente, que o aborda com a truculência de um miliciano. O repórter então sai para a rua e entrevista os que se dispõe. Uma senhora diz que lembra com dor a época em que era criança e morava em uma casa ampla, o que só existe agora na sua memória. Um homem diz que não tem mais onde morar, pois os aluguéis são altíssimos, e a grande maioria dos chineses ganha um salário de miséria, o menor do mundo. Os moradores encaixotados são serventes de açougues, funcionários da construção civil, chapas de feira, etc. Uma mulher, contudo, diz que é o paraíso, e é filmada no claustrofóbico espaço deitada. Antes, ela apanhava do marido e foi expulsa de casa, porque o marido não mais a queria, só sobrando morar ali. Pessoas tratadas como lixo, como números, numa sociedade desapiedada e sem traços de humanidade. Eu estou chegando na página 100 de História de amor no novo milênio, escrito por Can Xue, o que não é o verdadeiro nome da autora. Ela saiu de um cenário assim, do nível mais baixo da pirâmide trabalhista escravocrata chinesa, cursou até o ensino fundamental e é uma autodidata. Nietzsche falava sobre o regime chinês em Além do bem e do mal (ou será em Humano demasiadamente humano?), como uma figura retórica do inferno. Hoje, sociedades assim são elogiadas pelos progressistas e pelos capitalistas, o grande país que está tirando o Satã Americano da liderança global. Eu ainda não entendi onde a Xue quer chegar. É um romance que bebe generosamente de Kafka, com seus personagens regidos por morais heterodoxas e situações oníricas. O que me cativou de imediato é a liberdade irrestrita com a qual é escrito. A alegria extasiada da palavra. A forma como a autora mostra que aquele é o terreno só dela, amplo, ilimitado, cheio de espaço. Uma das personagens do romance diz que se tornou prostituta como escape para se livrar da vida terrível que levava na fábrica. A literatura nunca foi tão representativa da mentalidade de cada nação, com seus desejos, lamentos, temores, sonhos e vislumbres de redenção como agora.

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Sátántangó

 


Não vi o filme Sátántangó, mas dizem que tem uma polêmica cena envolvendo a tortura e morte de um gato. Isso me fez afastar desse filme, ainda que o diretor tenha tentado se defender dizendo que o gato foi anestesiado, o que me parece ter piorado a situação. Mas no livro, obviamente, tem a mesma cena perturbadora. É perturbadora tanto pelo sofrimento de um animal quanto pelas questões filosóficas que ela suscita. Quem pratica esse ato abominável é Estike, uma menina com problemas mentais, a mais nova das irmãs, tornadas prostitutas, e do irmão (que é um pervertido idólatra). Estike é insustentavelmente pura, e isso que é o mais grave. Ela tem a pureza absurda de uma serial killer, ou a pureza absurda de um anjo? No livro, que é todo simbólico sobre a formação das religiões e das instituições de poder humanas, Estike pode ser vista como Cristo. Há uma cena em que ela se manifesta em uma áurea messiânica, depois de sua morte. O leitor é levado a se confrontar com a ideia de que a divindade, inserida na carne, envolve um processo tão amoral de subjeção e violência quanto a tortura feita por Estike. O experimento crístico que culminou na crucificação não seria ainda mais brutal? Um Deus encarnado no primitivo padrão terreno não envolveria um descompasso entre sua pureza e potência com os limites da realidade, que seria entendido pela nossa mente canhestra como algo brutal? Krasznahorkai nos faz ver a bestialização que se esconde nas religiões, e como a própria moral religiosa nos treinou para sermos hipócritas travestidos de piedade no alto da higiene de séculos de sacrifícios de animais a Jeová ou ao deus da hora. Toda religião, assim como todo aparato civilizacional, se fundamenta na barbárie e na violência, o que os aspectos metafísicos da transubstancialização evidencia. Mas Krasznahorkai não é um niilista, é, pelo contrário, um autor religioso, metafísico. É um ateu que crê no sagrado, ainda que se resigne a perceber o sagrado pelas insinuações do sublime. Quando Estike se manifesta em espírito, os três homens que a vêem (Irimiás, Petrina e o "menino"), apavorados, rejeitam o milagre. Um diz que é a fome e a penúria que os fazem ter alucinações, "como nas trincheiras da guerra". E assim, conformados, o próximo ato desses três missionários é negociar com Páyer, o vendedor de armas. Irimiás é tanto são Paulo apóstolo como os herdeiros de Maomé, é um dos sacerdotes de Quetzalcoatl e O Grande Inquisidor. Irimiás, Petrina e o "menino" são os institucionalizadores da fé, os primeiros padres e papas e pastores. Petrina, diante da fulgurante luz de Estike, a menina Deus que testou sua plenipotencia elegendo um gato para o primeiro arrebatamento, pergunta a Irimiás se ele acredita no inferno. "Deixe de bobeira", responde Irimiás. Nesse romance soberbo, Krasznahorkai nos leva onde ninguém nunca foi, no Cristo como primeira revelação satânica (lembrando Zizek), no Deus que ao se manifestar na terra incorre no paradoxo destruidor de ser impossível que um Deus se manifeste na terra. Que diferença tem a brutalidade de um gato torturado com o cadáver de um menino exposto na igreja católica, ou das tantas barbaridades escatológicas professadas por cada religião? Krasznahorkai reforça que a verdadeira religião existe, mas a religião da independência, da interioridade, da supressão, do absurdo. A primeira cena do livro mostra os apóstolos Irimiás e Petrina saindo de um cartório, um local sem elevação, sem valor, sem mistério. Os líderes dos homens, diz Krasznahorkai, são todos uns panacas trapaceiros e assassinos sem alma.

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Senhorinhas

 




A Júlia adora senhorinhas. Quando ela vê uma senhorinha andando pela rua, com seu jeitinho fofo, ela me diz: "olha só que linda, papai, aquela senhorinha!". E eu invariavelmente respondo: "realmente é um encanto. Quem vê nem imagina que ela já foi de uma quadrilha violenta de assaltantes de banco". A Júlia de primeiro se admirava: "mesmo, papai!", e quando via que era brincadeira minha ela ria e dizia: "deixe de bobeira, papai". Se ela via uma senhorinha e cantava a meiguice de seu passo desbravador pela rua, eu dizia: "linda! Mas ela acaba de colocar chumbinho nos portões de cada vizinho que tem cachorros do bairro". Ou eu digo: "que coisa delicada! Ninguém imagina que ela esganou a irmã gêmea e escondeu o corpo num baú". A Júlia se delicia com essas barbaridades e sempre ri me dando bronca. Uma vez, de frente à livraria da cidade, quando saíamos com alguns livros, uma dessas senhorinhas, sentada numa cadeira de fio na calçada de sua casa, pega o Eric pelo braço e começa a mexer no cabelo dele. "Que menino bonito, vem cá na vovó". E o Eric, envergonhado, para e responde sobre seu nome, sua idade, essas coisas. Entramos no carro e todo mundo encantado com a fofurice daquela senhorinha, e eu digo, taciturno: "Ela mandou matar o marido há vinte anos, que agonizou no mesmo lugar em que ela está sentada. Ela foi presa por uma semana, subornou o delegado e os policiais e foi inocentada. Tinha as fitas telefônicas com as gravações da conversa dela com o pistoleiro, que foram todas apagadas". A Júlia, a Dani, e mesmo o Eric se admiram de eu ter dessa vez me aprimorado com tantos detalhes, e a Júlia retruca: "nossa papai, deixa de ser bobo". E eu insisto: "dessa vez é verdade, ela é a dona Adélia, tem dois filhos que desde então não conversam mais com ela". Precisei de dias de insistência pra convencer os três.