Era bem provável que aquela nuvem gigante que
cobria a cidade viera do Polo Sul. O clima andava tão louco há tanto tempo que
não se precisava ver a meteorologia para supor isso. Era fácil cogitar que
também havia algo além, que dava uma atmosfera espiritual às pessoas andando
atarefadas sob as sombras e o frio. Por um momento seus dramas megalomaníacos,
as intuições de antigas memórias tribais, eram postos em suspensão para que
elas observassem aquele manto cinza metálico, inflado de umidade elétrica, tomando
toda a amplidão do céu.
Foi em uma noite dessas que
Anselm Dulabonde desceu do ônibus na avenida próxima duas quadras ao
prédio onde sua irmã morava. Havia apertado o botão para avisar o motorista,
mas este pareceu querer avançar além do ponto. Como em uma sincronia urbana,
ele apertou novamente com nova ênfase ao mesmo tempo que o motorista moveu o
volante com impetuosidade e freou o veículo a poucos centímetros da calçada. Um
movimento de outros freios e buzinas rascantes atrás denotou a falta de cuidados,
o que Anselm acabou sendo receptor da ira do homem, representada pela violência
com que a porta foi aberta.
Pulando para fora, com a estimativa de
acidentes provocados nessas circunstâncias na cabeça, Anselm não procurou
conferir o que o sujeito lhe gritara. Nada lhe desgostava mais do que esses
embates urbanos que estavam mais para clichês físicos. Movimentos de
acondicionamento dos dentes das velhas engrenagens sociais. Talvez o homem lhe
dirigisse apenas um olhar compungido se ele o enfrentasse, raramente ia além.
As pessoas tinham muito medo de se enquadrarem às estatísticas. Uma educação
vestigial à prova de tudo as mantinham longe das colunas policiais dos jornais.
Anselm sabia disso pois trabalhava de dia em um jornal de imprensa marrom, como
se dizia nos bons tempos. E era o responsável por dourar a pílula dos
incidentes de crimes e morticínios da cidade. Tinha um “infiltrado” na polícia,
que lhe passava com a voz ensonada o material colhido nos boletins de
ocorrência. Quando Anselm entrava no serviço, às cinco da madrugada, o
informante se preparava para sair. Quanto mais sua voz era extenuada, mais
tinha coisas picantes para contar. Maridos bêbados, delinquentes juvenis,
arrombadores de panificadoras. Uma vez ou outra um tema real, que ele tinha que
digitalizar às pressas antes que a imprensa cibernética dos grandes portais de
notícias as lançassem.
Eram sete e meia da manhã e
o movimento de pedestres era moroso ainda. A cidade estava representada por
homens de semblantes sorumbáticos carregando garrafas térmicas e mulheres
magras de uniforme. Só Anselm, em sua roupa de flaneur, com a gola levantada
como fazia nos tempos da universidade, era um ponto desviante da curva. Não
recebia olhares averiguadores. Havia um exército de gente como ele,
subempregados sem definição certa, com sinais inarredáveis de uma juventude
tardia.
Misturando-se a elas ele desceu pela
rua que levava ao apartamento de sua irmã. Ela lhe telefonara às seis e meia.
Disse que o filho dela, Marcus, de seis meses, ardia em febre. Não havia muito
o que fazer do que deixar tudo em suspenso e ir socorrê-la. Não havia ninguém
menos preparado para isso do que Anselm, mas o fato é que não havia mais
ninguém... O pai do garoto era o que se definia nos anais jurídicos como pai ausente.
_ E onde está Edgar, Tina?_ ele
perguntou à irmã pelo telefone.
_ Ele está em uma tarefa do escritório
na cidade de L. Por favor, venha rápido.
Tina, Esvertina, sua irmã, sempre poupava
Edgar. Ela tinha muita pena que o marido fosse o único provedor da casa, e o
escritório de advocacia onde trabalhava o sugasse tanto. Era parte do arranjo
que ela teve que aceitar para não virar uma solteirona. Tinha sido uma mulher
linda até os trinta anos, e aos trinta e sete a hidrostática corporal era uma realidade
incontornável. Fizera três namorados arrastarem a seus pés, mas agora tudo o
que lhe restara para uma promessa conjugal moderada era Edgar, e ela não podia
mais se dar ao luxo. Anselm se distraía imaginando a cara de desforra dos
namorados desprezados ao saber que ela se rendera a um sujeito divorciado, com
dois filhos. Ele nunca tinha suportado a prepotência aristocrática de sua irmã,
mas aquele terror da solidão clássica o deixava compungido. Era como ver um ovo
Fabergé consertado com peças de segunda mão por um artífice farsante. Ser um
estepe insuficiente era o máximo que podia fazer pela irmã para atenuar a ação
daquela sorte inadequada, francamente injusta.
_ Por que você não levou Marcus para o
hospital, Tina?
_ Eu o estava medicando com dipirona e
amoxilina, que foi o que o médico passou a última vez. É tudo muito difícil,
Anselm. Estamos em um regime de contenção de despesas e sair à noite com o
Marcus seria um custo que não tenho como arcar.
Ele pensou em quanto teria no bolso e
não lhe pareceu ser muito. Aqueles choques entre sua vivência com a da sua irmã
lhe entregava aspectos desconcertantes de seu pouco caso com o dinheiro.
Sacolejou algumas moedas que pelo peso indicavam dar pelo valor de uma passagem
de ônibus e pegou seu casaco. Miguel, seu chefe, o olhou aturdido. Estava com a
cara inchada, demonstrando que havia passado a noite em claro em seu artigo
sobre as formas globais de dominação. Abaixo do olho esquerdo uma mancha
líquida, que parecia se segurar imobilizada para não escorrer.
_ É a Tina. Volto depois do almoço.
Ele não disse nada. Quando colocou sua pasta abaixo
de sua mesa, ao lado da cesta de lixo, ouviu ele conversando com Januário, o
responsável pelas colunas sobre movimentos emancipacionistas.
_ A falta de compromisso está cada vez mais
marcante. Para um jornal progressista isso é uma falta de fé tremenda.
Anselm fingiu que não tinha
ouvido, embora a acústica da pequena sala ventilada amarelecida pelo sol
recortado da manhã espalhasse o som de maneira nítida. No corredor ele fechou a
porta com o ar absorto, pensando nessas intermediações menores da realidade.
Era quase um trabalho voluntário, que só lhe dava para pagar o aluguel e as
despesas com a luz. Em plena época que estavam, falar sobre antigas ideias abortadas
mantinha a mente afiada. Ele sabia que Miguel estava certo, a baixa expectativa
de que aquele jornal aumentasse sua circularidade fazia a permanência ali um
ato de fé. Mas o que ele poderia fazer diante um inconveniente de saúde? Ele se
condoía de que um bom homem pensasse assim, e mesmo sabendo que havia muito de
mimo nisso ele descera as escadas com pesar.
Do lado de fora ele estacou de
súbito diante aquele céu. Vagas de nuvens de chumbo. Tinha algo de segunda
guerra mundial, de operações militares sobre cidades devastadas. E o frio
corria num movimento contínuo cuja aplicação fanatizada tentava entrar pelas
abas dos casacos dos transeuntes. Ele teve a impressão de que flagrava uma ação
orquestrada por alguma força maléfica, como uma organização sideral de ladrões
de carteira.
Faria o possível para voltar antes do
almoço, talvez convencendo Tina a chamar uma ambulância. Tinha que ver com
cuidado a situação do menino, que justificasse uma ambulância. Pensando assim,
parecia um milagre preservado que numa cidade tão grande houvesse possibilidade
de que um assistencialismo hospitalar tomasse conta de uma simples criança.
Viver longe da região visível fazia Anselm pensar na grandiosidade que eram os
poderes da instituição social. Se ele ficasse doente, o que raramente
acontecia, ele nunca cogitava no recolhimento dessa ortodoxia. Da última vez
que teve um ataque estomacal, ingeriu dois comprimidos e se encolheu em posição
fetal, até que a fagulha dourada de dor sumisse. Talvez essa ideia tomasse
conta de Tina, e ela achasse que um aparato não poderia ser tão intrincado a
ponto de seu filho merecer atenção.
O prédio de Tina tinha cinco
andares e ela morava no terceiro. Era um bairro popular, de renda média.
Usualmente acolhidos por casais jovens que acreditavam ainda que tudo era
positivamente transitável. Tinham uma autocritica estética de não colocarem
roupas em varais e serem adeptos do silêncio. As forças se estabeleciam na
capacidade de contratarem serviços de limpeza doméstica, o que muito servia para
darem uma dimensão das coisas. Anselm achava que o advento da revolução virtual
havia trazido um grande alívio para aqueles casais, pois as distrações ficaram
mais baratas do que irem a museus, ou jantarem fora, ou em parques com as
crianças. E enquanto tivessem aquele pequeno arremedo de feudo particular com
seus serviçais pagos por hora, o próximo passo necessário ficaria sempre
protelado. Mas era interessante, pois nunca ficara sabendo de permanências
exageradas nesse estágio. O que ele pensava que só poderia se resolver mesmo
pela ascensão. Era um dos efeitos da persistência intuitiva ao senso comum que
desbaratava todas as críticas filosóficas sofisticadas.
A porta estava entreaberta, deixando
ver o amarelo do corredor estreito das escadas. A tranca estava quebrada, e
Anselm olhou para o painel de chamada afixado à parede. Leu o nome do terceiro
andar, Edgar, o que o fez soltar um muxoxo de ironia. A placa de metal estava
enferrujada, o que denotava ter décadas de idade. Subiu os degraus procurando
não se segurar nas paredes. Do alto veio um eco vazio de significados, como se
fosse um ar represado que ele liberara com a descompressão da porta. Uma luz
automática acendia a cada andar. No terceiro, ele empurrou a porta de metal
pesada. Entrando no corredor que dava acesso aos quatro apartamentos, ele se
posicionou diante a porta da irmã. Apurou os ouvidos, na expectativa de que os
dramas espirituais condensados lá dentro fossem ouvidos, talvez algum sinal de
melhora. Mas o silêncio era total, como se fosse uma das ilustrações típicas
dos romances russos clássicos. Tocou a campainha. Ela funcionou, com uma
limpeza que mudava por um curto segundo as apreensões metais.
O filho mais velho de Edgar abriu
a porta. Anselm nunca sabia qual era o nome dele, se ele era o Victor ou o
Tomas. Eram uma espécie peculiar de gêmeos de idades diferentes para ele, sendo
muito parecidos. Apenas que o mais velho não tinha o vestígio de doçura
infantil do outro, tendo as feições irritantemente pragmáticas para um menino de
12 anos. Era como se ele já estivesse se acondicionando para sua vida ativa,
como se antecipasse a cara do burocrata que estava destinado a ser. Anselm
procurava não nutrir nenhuma tipo de sentimento crítico em relação a ele. Não
era seu problema.
_ Posso entrar..._ ele perguntou, se
lembrando de súbito que ele se chamava Victor_ ...Victor?
_ O, é você! Entre.
Ele deu um passo cauteloso, olhando para o interior
escuro. Fechou a porta atrás de si, pensando se não era pouco preventivo não
girar a chave, e ficou parado. O menino o olhou de volta, com um ar
interrogativo, mas não disse nada. Estava entranhado o suficiente no ambiente
para achar todas as formas de desconexão lógicas corriqueiras.
_ Chame sua mãe, Victor._ ele disse.
Falara baixinho sem entender
muito bem por quê. O apartamento era tão minúsculo que mesmo esse tom deveria
ter sido apreendido por sua irmã lá de dentro. Só poderia estar no quarto, com
Marcos. O menino entrou pelo corredor escuro e tudo voltou ao silêncio tirânico
e aflitivo que aliás não chegara a ser interrompido.
Havia uma poltrona velha ao lado
da janela, e um saco de imitação de couro que ele não sabia o nome, mas que
servia para se sentar. Em uma cesta no chão, haviam muitas revistas sobre
assuntos triviais. Os assuntos triviais que o horizonte espiritual sempre
limitado de sua irmã comportava. Moda, conselhos adolescentes, a vida das
subcelebridades da internet e da música. Olhando por aquela perspectiva da
doença, eram temas francamente encerrados, afasicamente obsoletos. Provocava
certo constrangimento nele por a irmã conservar aquelas coisas. Qual o
propósito? Apostava em algum tipo de esperança nelas? Como se algo pudesse ser
reavido através daquelas folhas amarfanhadas e sebosas?
Esvertina apareceu. Viera a passo
comedido, como se devesse aquela mínima polidez a ele. No meio do corredor ela
tropeçou em algum objeto que estava no chão, talvez um brinquedo de Marcos.
_ Oi, Anselm. A febre dele passou e ele está
finalmente dormindo. Eu dei um banho em água fria nele, na bacia de metal.
Ela tinha marcas profundas no rosto. Seu
cabelo era um misto de cores baças das tantas tinturas que se sobrepunham, um
filete ralo dele caindo-lhe para a frente por sobre a testa. Usava uma camisola
branca encardida, e seus pés grandes e protuberantes mal haviam se ajustados a
uma chinela. Estava dormindo também, o que deveria ter conseguido em uma
batalha conjunta com o menino. Vai ver aquele comedimento era para disfarçar
sua má escolha precipitada de trazê-lo ali justo quando enfim poderia
descansar. A comunicação entre os dois sempre tivera esse mérito irritante de
se fazer de forma imediata, sem subterfúgios, deixando os dois perdidos na
impossibilidade seguinte de perpetrarem outra palavra. Seria impossível para os
dois desfazerem o engano, com ele se retirando do apartamento. Iria se
desenvolver para um problema inóspito e imprevisível, e por isso eles sabiam
que teriam que tolerar.
_ Que bom! Lembro da mamãe me dando
banhos gelados quando eu tinha febre. Uma vez ela me estendeu na banheira e eu
achava espetacular não sentir o frio dos tantos cubos de gelo que ela havia
colocado sobre mim _ ele disse.
Ela saiu de sua imobilidade e foi até uma
cômoda pequena ao lado da estante onde estava a tv e alguns livros de
autoajuda. Anselm imaginou que ela iria pegar um cigarro, mas se lembrou que
ela tinha dito ter parado de fumar já fazia dois anos. Mas a coreografia do
movimento era o mesmo e ele apostaria que se a abstinência não estivesse de
todo resolvida havia acendido alguns sinais na cabeça dela. Ela vasculhou em um
pequeno pote de cerâmica barato, que servia para guardar moedas e chaves, e
retirou uma nota de dez. Entregou para Victor, que estava um pouco atrás, e
mandou que ele descesse e fosse até a padaria trazer uma cerveja.
_ Vá e volte rápido, Victor.
Daí retirou um livro didático infantil de
sobre a poltrona e mandou que ele se sentasse. Ele enfiou a mão por um momento
no bolso traseiro do jeans e avançou. Em sua mente surgiu de forma repentina o
texto que teria de escrever sobre os efeitos climáticos provocados pelo
capitalismo que acometiam as regiões do nordeste do país. Sentiu uma vontade
louca de ir para o escritório.
_ Ainda acho que deveria levar Marcos
ao médico, Tina. Essa febre pode voltar, as febres sempre voltam se a causa
delas não for tratadas.
_ Eu vou leva-lo hoje. Eu não consigo falar com o
Edgar. Ele esta em uma cidade interiorana e o sinal é péssimo. Vive caíndo. E
dessa vez não há sinal algum.
Anselm não queria entrar nessa parte da
história. A situação da irmã era terrível, ele sabia. Os dois filhos de Edgar
passando aqueles dias sozinho com ela e o Marcos deveria tornar tudo mais
difícil. Era até um prodígio de autocontrole que ela aceitasse eles ali, o
Edgar não estando. A mãe deles, a primeira mulher de Edgar, era um assunto
proibido. Ninguém nunca falava o nome dela, quando os dois oficializaram o
namoro ninguém nunca poderia fazer perguntas sobre o passado. Mas havia o
arranjo dos dois meninos ficarem com eles aos finais de semana, e isso deveria
ter sido uma das abdicações que Esvertina tivera que fazer. Era impensável
tamanha paciência quando estava no completo controle dos seus poderes. Crianças
para ela eram animais perturbadores que para suas seguranças deveriam manter a
distância dela. Ele sempre tinha o receio de que ela falasse algo além da
legalidade em restaurantes com meninos turbulentos, e uma vez viu uma mãe em um
parque envergar a nuca em uma posição florestal de ataque e retroagir diante a
razão restabelecida. E ele não sabia onde estaria o outro menino, o gêmeo cindo
anos mais novo.
_ Se precisar eu tiro o resto do dia de
folga. Eu prometi finalizar algumas pautas para o Osmar hoje, mas eu poderia
dar um jeito.
Ela o olhou com antigas arestas de cogitações
misantrópicas e então seu olhar desanuviou. Ele entendia bem o que queria dizer
aquilo. No momento ele sentiu uma aversão pálida, desinflada, pela irmã, que
antes era poderosa a ponto de manter a distância recíproca entre os dois. Ela
nunca aceitara o que ele fazia como uma profissão, como um trabalho digno.
Escrever abobrinhas para um jornal sobre anacrônicas causas perdidas não era
nem de longe algo que justificava o martírio da sobrevivência cotidiana como
eram suas sessões de fisioterapia. Mas isso ficara no passado, antes do
fracasso, quando ela pesava dez quilos a menos e tomava banho todos os dias. O
cheiro que ela expelia agora, junto com as profundas rugas que lhe apareceram
no rosto, não lhe davam mais a segurança dos preconceitos de pertencer a um
nicho. O repúdio ainda estava lá, como uma reação pavloviana. Bastava ele
invocar as mesas palavras e a ridicularia se manifestava em um grau bem menor
dentro dela Equilibrado pelo que o senso comum adepto a desforras morais dizia
ser a lucidez do sofrimento, mas havia apenas a desistência. Para ela agora
tudo se nivelava por baixo, nada tinha ganho uma natureza redentora de
admiração. O máximo que se poderia dizer sobre um caráter de justiça era que
ela fora trazida para a mesma zona rebaixada dele, aceitava com a mesma
resignação o que achava que cabia como distinção de baixa classe a todos nesse
estágio da derrota.
_ Não é preciso, Anselm. Eu não quero
prejudicar você. E a Marta veio aqui e disse que me ajuda a levar o Marcos. O
hospital fica perto daqui.
Ela disse isso olhando para baixo,
compungida. Essas facilitações todas lhe davam a consciência de que seu atraso
em levar Marcos ao médico era cada vez mais injustificável. Ela ergueu os olhos
e neles havia um pedido claro para que ele não a julgasse por isso.
_ A vida anda muito difícil, Anselm. Eu não
pensava que seria desse jeito. O dinheiro parece não entrar, o tempo parece
parar e tudo ficar enrolado em um âmbar_ ela não sorria. Sua boca tremera
nitidamente, como se a expressão de todo esse pensamento em palavras lhe
revelasse uma dor inconveniente.
Ela sempre se limitou confortavelmente
às áreas pragmáticas do discurso. Ao contrário dele, ela nunca fora dado aos
livros. Via a propensão do irmão à leitura como uma espécie de aberração que
explicava algumas coisas. Essa pobreza metafísica voluntária a salvava de uma
interpretação mais sofisticada do sofrimento. Os homens cultos poderiam achar
bonito dizer que essa imolação lhes causam inveja, mas para ele era
aterrorizante purgar todo aquele inferno ainda mais subdimensionando-o. Havia
um grau de conforto em reconhecer a extensão da desesperança que sua irmã
sempre seria mutilada para perceber.
_ Onde você disse que está Edgar mesmo?_ ele
perguntou.
_ Ele está viajando para recolher assinaturas
em alguns processos de aposentadoria. Tem que cobrir várias aldeias que não
chegam a ter cinco mil habitantes. Você sabe como é, todos aqueles doces casais
de senhorzinhos dependendo da ação do escritório o mais imediatamente possível
para terem do que viver.
Aquela era a diferença entre os dois.
Se ele tivesse gasto seu tutano de devorador de livros com aquela frase o tom
seria outro, cheio de sarcasmo e crítica à extorsão da advocacia. Mas tendo
sido dito por Tina, representava um retrato absolutamente oposto, com um humor
fremindo de uma leve tensão que no final se resolvia pela descrição carinhosa
de “senhorzinhos”. Havia o reflexo da rançosa ternura filistina das revistas
adolescentes da cesta no chão.
_ Bom..._ ele espaçou as mãos como se fosse
brincar de cama de gato, sem ter o que dizer. Se fosse falar as cansativas
coisas que lhe vinham à mente seria uma vaidade fútil, mostrar acidez para uma
mulher que já estava derrotada.
A porta se abriu e Victor entrou,
empurrando-a com o corpo como se a garrafa de cerveja média que levava lhe
reduzisse a automaticidade. Entregou a cerveja à Esvertina, que a pegou sem
agradecer. Havia uma certa intimidade entre os dois, dura, sem necessidade de
carinho, que dispensava esses atos sociais. O menino deveria ter algum senso de
obrigação que lhe garantia a permanência ali. Não se podia mais chamá-lo de
criança, tendo a infância sido excisada dele minuciosamente como uma unha
encravada retirada de um organismo que agora tinha a liberdade de exercer sua
plena eficiência. Tina passou a cerveja para Anselm, com a naturalidade concisa
de algo essencial, como se estivesse lhe entregando um guardanapo para limpar o
sangue do nariz. Um dos indicativos do quanto eram irmãos mutuamente desatentos
era ela não saber que ele odiava cervejas. Em um programa de perguntas intimas
entre candidatos eles fariam uma dupla destinada a uma derrota fatal, quando o
apresentador lhes passasse a questionar sobre suas comidas preferidas e seus
hobbies favoritos. O que sua irmã gostava mais de fazer nos tempos livres? Ele
só conseguiria responder que ficava parada esperando o tempo passar. Mesmo que
ela atravessasse dez quilômetros a pé, o fundamento de sua vida era apenas o de
esperar o tempo passar.
Ele não levou a garrafa à boca.
Talvez ela assistisse demais a séries da tv patrocinadas por marcas de cerveja,
que fazia os personagens tomarem aquela agua choça a cada virada de cena. Quem
na vida real tomava aquilo àquela hora? Num gradiente menos responsável pela
digestão de tanta sinestesia acumulada, aquilo seria de uma comicidade terna.
Mas só havia o cansaço e a desesperança.
_ Victor, volte para o quarto e fique com
Marcos_ ela disse.
O menino demorou alguns segundos, talvez de
propósito para marcar que só ia quando lhe desse vontade, e fez o que ela
mandou. As coisas talvez fossem bem mais fluídas do que ele imaginava, e tudo
não passasse de impressões de sua mente extenuada.
_ Quando você volta à rotina normal na clínica,
Tina?_ ele perguntou sem nenhum interesse.
_ Talvez nunca. Venho fazendo o possível para
manter a clínica, mas a taxa de aluguel me parece agora muito grande. Eu venho
realugando para uma outra fisioterapeuta e quase não me sobra nada. E olhe para
mim.
Ela estendeu os braços e por um momento
algo na linha do corpo dela a fez semelhante à adolescente de outrora, uma
certa graça e leveza que se dissipou rapidamente. Anselm acentuou sua
curiosidade a olhando detidamente para tentar apreender aquilo, mas os
contornos oblongos suscitados pelo excesso de peso destituiu de uma vez a
insinuação. Havia um descompasso que não oferecia muita esperança de um dia vir
a ser consertado entre aquele corpo carregado de morosidade e o rosto de Tina,
que estava chupado, cadavérico. Era como se ele, o rosto, tentasse afirmar algo
à marra, de forma violentamente maníaca. Como a presciência de uma verdade que
era um ato absurdo atestar nas condições materiais que o apreendiam à frente
daquele organismo.
_ Eu estou dez quilos mais gorda. O Marcos
não para de mamar em meu peito, que está deteriorado. Um peito caído e murcho.
Meu peito se estendeu de maneira brutal, como se minha pele tivesse virado uma
borracha extremamente flexível. Ele não vai voltar para o que era antes, nunca
mais. E o mais ridículo é que esse inchaço todo é em vão, pois não produzo
leite nem a metade do requerido. Se Marcos fosse um bebê normal a metade já
seria muito baixo, mas ele sendo um mastodonte insaciável, a metade é um estado
de fome perpétuo. Daí que eu tenho de comprar um leite em pó rico em proteínas
e vitaminas, destinado a esses casos, mas cada lata custa o olho da cara. A que
eu comprei há três dias está por duas colheres.
Ela parou de simular o riso que a fazia
supor ser um atenuante para a revolta daquelas deliberações todas. À medida que
falava, sua voz ia ficando pastosa, seu rosto ia se desfazendo. Ela encolheu os
braços e olhava em uma parte do círculo de meia luz que constelava aquele
cosmos caseiro que era a escura sala de estar, como se a falta de um alívio
cômico àquela prisão fosse de uma crueldade pesada demais.
Anselm conteve um suspiro, mas foi
movido por uma inconformidade insuportável a se inclinar para a frente. Colocou
a garrafa por sobre a mesinha de centro, sobre a qual estava um brinquedo de
montar pueril_ um campo de férias com árvores de plástico e bonecos de
pinguins, algo que se eviscerava de um atestado de bugiganga barata. Olhou
aquele brinquedo por um momento, julgando que os significados foram organizados
ali com uma feroz intenção de desmotivar, algo que a aleatoriedade se mostrava
soberanamente virtuosa em fazer em ambientes como aqueles. Ele teve um daqueles
pensamentos incapazes de se verbalizar, fulminantes de realidade, de que a
cerveja era a única tentativa de transcendência que Estertina fazia quanto a
ele, a única maneira sem sucesso dela em trazer algo de dignidade alheia para
aquele seu mundo hermético.
_ Tina, o que Edgar diz disso tudo?
Digo, eu tento não interferir em nada em seus projetos familiares, e quem seria
eu para fazer isso. Eu não sou casado e tão pouco tenho filhos. Mas como irmão,
como tio, eu talvez tenha a liberdade de perguntar isso. O que Edgar acha disso
tudo?
Ela o olhava fixamente, com uma atenção intensa.
Ele associava aquele olhar a digressões que ela usava antigamente, quando eram
jovens, para ou fugir de um assunto espinhoso ou para contra-atacá-lo. Quando
ele executou o primeiro laboratório de suas experiências de opiniões que
poderiam dizer a ela, sobre a nova roupagem adulta que ela usava na
adolescência, essas palavras eram sempre ásperas. Ásperas a um ponto que
chegavam a ser ingênuas, mostrando que ela superdimensionava sua capacidade
solitária de lidar com seus namorados. Ela nunca aceitou que ele desse um
pitaco sequer, e a primeira frase tinha sido que ele não era pai dela. Isso o
abalou, sem saber como se comportar diante pequenos crimes sexuais contra uma
moral fantasmagórica que ele mesmo tinha cumprido seu papel biológico etário em
cometer, e depois se calou, aliviado. Foi muito fácil. Ele vinha levando os
anos que a via crescer, deixando as bonecas e passando para as maquiagens,
eliminando automaticamente todo o vestígio de cumplicidade que eles tiveram um
dia, pensando como lidaria com isso. Se teria o grau de severidade
deslocadamente paterna para usar com aquela menina desassistida na hora certa.
E a hora certa chegara e ela resolvera tudo dizendo que ele não tinha nada para
se intrometer na vida dela. Ele seguiu seu caminho, prenhe de uma plenitude
rara da isenção consentida, da indiferença requisitada. E lá estava aquele
olhar de novo, renascido depois de tantas modificações em que ele nunca mais
fora reclamado, colocado no rosto dela como uma peça de quebra cabeça indevida,
não encaixável. Suspenso num aparato temático já escoado de toda autenticidade,
ele paradoxalmente parecia mendigar o contrário do que havia exigido de
liberdade e não intromissão, cheio do saudosismo de um direcionamento afrontoso
que agora considerava como uma perda valiosa. Naquele apartamento frio,
rescendendo a odores de exsudações corporais de todos os tipos, de roupas não
lavadas, da poltrona que tudo indicava aquelas manchas eram de vômito e urina,
com as almofadas marrons rasgadas e afundadas em formas eternas de posições de
glúteos avolumados e engordurados, naquele silêncio tumular irredimível e
absoluto, havia acontecido tudo o que um irmão zeloso da concepção clássica
tivera o dever de alertar e empurrá-la mesmo contra sua vontade para o caminho
oposto.
_ Ele trabalha demais, Anselm, e é para
nosso bem, o meu e do Marcos e dos dois outros meninos.
Aí ela desabou. Levou as mãos para o
rosto e, na posição em pé em que estava, se pôs a chorar. Por um instante ele
ficou imóvel, averiguando se aquilo consistia no que estava evidente que era,
se não era uma tramoia não da irmã mas de outros movimentos condicionados que
haviam vicejado naquele lugar vicioso como fungos. Alguma sistemática contração
do corpo que só se parecia ao choro mas era algo mais solene no sentido de uma
segurança postural de não recair em maneirismos sentimentais. O choro foi se
alteando, até que o fiapo que era a nascente calma se tornou em uma explosão
mucal no centro dos braços dela. Foi aumentando ainda mais até que Esvertina
deu um grito e seu corpo tremeu, como se fosse desabar para o lado.
_ Por favor..., por favor... Anselm...
Ele se levantou com um movimento lento,
comedido. Não saberia como abordar uma figura emblemática como sua irmã naquele
estágio em que a via desalojada de tudo que a fazia peculiar. Naquele vão em
que se suspendia por um momento todas as compulsões de sua personalidade. Se
aproximou dela e colocou uma mão em seu ombro. Isso pareceu explicitamente
insuficiente para os dois, a ponto de se não fizesse nada mais veemente, mais
caloroso e humano, iria agravar a coisa. Então ele a abraçou e ela deitou a
cabeça no ombro dele. Eram ambos altos, a estatura sendo uma característica
estética que sempre favorecera ela em seu domínio feminil sobre as
circunstâncias do cotidiano, mas ele era dez centímetros mais alto. O topo dos
cabelos dela ficaram rente à sua boca e ele sentiu fragmentos brancos das
células mortas do couro cabeludo nos lábios. Tinha um cheiro amorfo, em
negativo, o nível mais elevado da decantação natural a que podia chegar aquela
minuciosa química fisiológica, algo próximo à assepsia. Ele se lembrou das
cascas de ferida do joelho dela, quando os dois ainda eram ligados um ao outro,
antes que a mãe os tivessem distanciados pelo medo doentio do incesto. De como
elas surgiam em decorrência das quedas que a exultação diante a fluidez sem
limites da infância e sua pouca apetência técnica com a vida lhe causava.
Anselm sentiu no fundo de si algo, não chegava a ser amor, uma condolência de
uma ternura em estado primitivo pela irmã. Havia uma quantidade perniciosa de
registros memorialísticos sobre ela em sua mente para que ele pudesse
considerar apenas aquela garota imaculadamente sem erros que ela fora. No fim
daquelas lágrimas, ele sabia que ela voltaria a ser a mesma mulher cheia de
reservas e compulsões peculiares com a qual dividia muitas reservas.
Ele nunca culpara a
mãe por essa desconfiança fanatizada, aceitava as ações retaliativas que vinham
dela sem cerimônia, como as leis da natureza aceitam sem drama o repúdio e o
morticínio. A mãe tinha sofrido muito mais do que qualquer um dos dois, e
Estertina estava em um segundo lugar vantajoso. De certa forma elas tinham uma
recriminação rancorosa incrustrada numa região oclusa de suas feminilidades por
ele ter tido a sorte de nascer homem. Ele cogitara em segredo que essa inveja,
essa consciência resignada de que fora deixada em um plano inferior de
benefícios pela potestade embriogênica que lhe fizera ter uma fenda entre as
pernas e uma porção de hormônios que especificavam o crescimento de glândulas
com o pueril objetivo de atrair o macho incubador ególatra, tinha revertido
nela em uma condição homossexual. O excesso de ódio que ela sentira por aqueles
dois namorados, a exultação que ela sentia ao ver que tinha o poder de fazê-los
rastejar e se sujeitarem, que aquelas efusivas protuberâncias, ridículas
curvaturas, abjetas umidades atrativas que expediam daquele corpo que ela
habitava, poderia ser usadas como armas, evidenciava que ela assumira um
projeto esotérico vingativo.
_ Lembra da mamãe dizendo que a
infância é o laboratório de todas as doenças, e que é por causa disso que as
crianças passam tanto tempo febris? É o corpo depurando as mazelas, incubando
em si mesmo os vírus e bactérias para criar uma memória imunológica. É bom
olharmos a doença de Marcos com calma_ ele disse.
_ É que é tudo muito difícil. Se pelo menos
Marcos voltasse a ser o monstrinho sugador que costumava ser. Ele não está se
alimentando desde dois dias atrás.
_ Talvez seja a economia natural do corpo, Tina.
_ Eu fico pensando nisso. Ele treme de febre mas há
algo nele que não é de todo debilitante. Me vem à cabeça exemplos extremos, que
são inconvenientes usar. Como de prisioneiros. Um homem famélico em um campo de
concentração. E observo se Marcos está adquirindo aquela aparência mumificada.
_ E o que você acha?
_ Talvez seja minha visão de mãe, mas ele não está
de todo mal.
_ Quando Marta virá para te ajudar a leva-lo ao
hospital?
_ Ela veio aqui em casa mais cedo. Está de licença
desemprego e marcamos de ir após o almoço. Ela já trabalhou na faxina do pronto
socorro e sabe que a parta da tarde é menos movimentada. Ela diz que as pessoas
não imaginam o quanto que existem doentes sofrendo nas madrugadas, o que
resulta em internações urgentes pela manhã.
Ela já tinha se afastado dele à medida
que falava, de modo que pareceu a ambos natural. Por estranho que parecesse,
não ficara nenhuma sensação de embaraço neles, como se o gesto abrupto de
carinho fosse sublimado pela manifestação maior do choro. O rosto dela ficou
iluminado pela lâmina das lágrimas. À medida que ia se evaporando ou sendo
reabsorvida pela pele, um rubor se firmava junto à sombra da sala e as marcas
da idade retornavam com uma fidelidade tranquila. Ela era dessas pessoas que
não choram sozinhas, que o choro é associado em suas convicções a uma explosão
catártica que necessitada a ter alguém como testemunha. Tinha servido para
deixa-la inequivocamente mais tranquila.
_ Você quer vê-lo?
Se deixou levar pela repentina surpresa
de que poderia muito bem prescindir de ver o sobrinho, que fazia parte da sua
tenaz economia de sentimentos não se submeter a isso. Concordou em silêncio e
ela se virou e seguiu pelo corredor. Como ela havia se desabafado_ aquela pobre
consumação de dias e noites de desespero, que se agrupava também à sua política
de baixas expectativas_, até o seu andar era novo, podendo ser definido como
mais centrado. Com um movimento do pé, ela afastou para o canto o brinquedo no
qual havia tropeçado. Andava de seu jeito largado, que a Anselm sempre era um
traço marcante de sua personalidade, um tanto masculino. Um jeito de andar que
nunca trabalhava no realçamento de seus glúteos bem torneados e sua cintura
fina na juventude.
Ela abriu a porta com delicadeza,
para não acordar o menino. Ele entrou, com a sensação herdada de um senso comum
inercial de que um quarto de criança, no mais vestigial e distante que seja,
sempre exala uma áurea de pureza, de exclusividade indômita. Por mais que os
objetos de cena sejam pobres, a pintura desgastada do berço, a pequenez
opressiva das dimensões, a impressão de obsolescência dos brinquedos resgatados
do baú de antigas infâncias, sempre havia uma afirmação incognoscível,
impossível de exprimir, de soberania. Como se a criança ocupando o centro dessa
terrenidade pesadamente intrascendente tivesse sempre o sinal distintivo do
poder emanante do reino de onde provinha.
Viu Marcos deitado de bruços, a cabeça voltada
por sobre o travesseiro fino. Uma chupeta que pareceu de tamanho
desproporcional estava bem fixa à boca, insinuando que fora parte do exercício
de certa forma violento empregado para fazê-lo de abstrair-se da vigília. Usava
um macacão todo fechado, que envolvia os pés como se fosse uma espécie de
inteiriça armadura de algodão típica, que veio à cabeça de Anselm
automaticamente o nome estranho, body. Uma dessas peças do vestiário infantil
que para alguém estranho ao meio soavam como os nomes que os torturados
medievais davam para seus utensílios artesanais. No silêncio do quarto, se
notava aos poucos, como uma leve deflação de luz que exige que as vistas se
acondicionem para ser perceptível, o rumorejar da respiração dele, um contínuo
índice tonal de uma curta nota espichada de exploração a regiões profundas, um
sonar trabalhando em volume baixo.
Um traço de preocupação passou por
Esvertina, que saiu de sua imobilidade contemplativa para tocar o bebê na
testa. Por um instante de pausa que tinha tanta intensidade quanto um pássaro
avaliando as contrainformações invocadas pelo seu pio, ela estudou a
temperatura do filho, passando por estágios de ponderação progressivos. Retirou
a mão com um alívio confiante, ainda com a cabeça inclinada para a frente como
uma especialista.
_ Ele está crescendo!_ ele falou,
apostando que dentro de qualquer lógica não era uma observação que lhe
desmentia.
_ Foi uma noite terrível, das piores que
passei.
Ela alisou os antebraços com as
mãos cruzadas e pareceu se criticar por ter recaído naquela lamúria. Era mais
uma acusação por isso se voltar contra uma obrigação de agradecimento
supersticioso de sua parte do que a consciência de não se mostrar tão
pessimista a Anselm.
_ Mas graças a Deus ele está melhorando_ se corrigiu.
Anselm pensou que poderia aceitar
aquela técnica da mente tão comum à formação católica da irmã em se amparar a
escapes esotéricos. Viver naquele apartamento desculpava qualquer amortecimento
racional como aquele, e tornava até uma exigência sanitária.
_ Pode me chamar quando quiser, pode ligar
para o jornal à tarde, eu estarei lá.
Ela o acompanhou até a porta. Passando em
frente ao outro quarto, ele viu Victor sentado em uma poltrona diante um
abajur, mexendo no celular. Estava jogando, num momento raro de flagra dos
restos de sua infância. Na cama de casal ao lado, envolto em cobertores, estava
o outro filho de Edgar, o mais novo, Filipe. Anselm não pode ver seu rosto, mas
distinguiu o peito envolto em uma camisa que mesmo as sombras se percebia ser
de um time de futebol. Edgar tinha o sintoma clássico do pai ausente em querer
ludibriar a falta de experiências reais da paternidade com seus rituais
fetichistas mais comuns. O máximo que deveria dividir com os filhos daquela
exultação falangista da batalha contra o time adversário no campo seria os
comentários pós-jogo, cada um tendo assistido em separado. Lembrou que
Esvertina lhe contara certa vez que ele tinha comprado varas de pescas que
nunca tinha usado realmente com os meninos. Anselm se perguntava se de alguma
maneira isso se revertia positivamente como um dos atributos de caráter que
fazia um bom advogado, o que então a situação teria suas compensações.
_ O Filipe está doente também?_ ele
perguntou.
Ela ficou surpresa com a pergunta. O
tom mais claro, um grau acima, que usara para responder, mostrava que aquilo,
os outros meninos, eram apenas o mobiliário inevitável de uma zona menor de sua
atenção.
_ Ah, sim. Eu pedi que eles arranjassem o que
fazer no térreo do prédio, para não se envolverem tanto com o clima carregado
que estava, e eles voltaram muito cansados. Eles tem grupos de futebol ou o que
seja com os outros garotos do bairro.
Era o tom que usava para desfazer-se
rapidamente de alguma pergunta retórica, o que se percebia nuances de uma
irritação sublimada ao fundo.
Ele se virou no corredor para ela, para
se despedir. Esses momentos sempre eram desconcertantes, por mais que os dois
tivessem crescido e com isso estarem aptos a desconsiderarem o constrangimento
reminiscente desses atos. Anselm se sentia em desvantagem, pois a irmã tinha o
tino prático que a fazia bem sucedida em comunicados simpáticos com empregados
da limpeza e bilhetes de geladeira. Já ele ou era insuficiente ou tendente a uma
exagero autodenunciador. Não iriam voltar a se abraçarem, se aquilo havia mesmo
sido um abraço, e então ele ergueu a mão e deu um tchau deslocado. Era o mínimo
ridículo que sua contenção poderia fazer, e ela respondeu com um balançar de
cabeça.
_ Volte a dormir.

