segunda-feira, 27 de junho de 2016

O sorriso do deslocamento




Amanhã meus amigos irão embora. Essa é uma das frases que eu gostaria de ver apenas na dor circunscrita das letras, essa dor que pode ser bonita, essa dor espiritual. Contudo, amanhã meus amigos irão embora de verdade. Tudo o que se relaciona às suas partidas é colossalmente verdadeiro. Passamos ontem de frente à casa deles e vimos os restos das coisas que o caminhão não levou, papéis, talvez um antigo tapete que, se tudo estivesse bem, nem seria deixado de lado, mas como tudo vai mal, o que é um tapete? E um tapete tem tantas lembranças, e me parece tão violento o fato deles terem que deixá-lo. E como é desumano, como é uma dança com pares errados e com uma música sem melodia, eles terem vindo aqui em casa no sábado para atenderem ao convite final do almoço. Como eles chegaram atrasados e eu já não tinha mais o conforto de ficar com raiva por essa falta de delicadeza, porque eles se atrasaram por estarem embalando os móveis. Como fiquei com vontade de amuar a cara e dar os indícios manhosos de ter sido insultado_ os chamo para o almoço ao meio-dia e eles vem uma hora e meia depois. Mas diante essa prova visceral e incontestável de suas tristezas, nem esse tipo de carinho reverso se é mais possível. Eles se sentam à mesa, com o sorriso sem naturalidade da deportação; seu filho brinca não mais com a saúde inviolável do escolhido. Meu deus, como toda a existência soa errada quando uma criança já não tem mais a fé sólida e inquebrantável de ser o escolhido. Como me doía profundo ver o filho deles se deitar no nosso sofá, sem vontade de brincar, sem vontade de falar, sem vontade... Como eu daria tudo para vê-lo com sua tirania intacta dos que se julgam imortais. Mas nem chorar ele queria. Só o cansaço. Minha filha o atiçando a ir escorregar no escorregador do quintal, e ele em seu conhecimento angustiosamente pleno do sofrimento, essa forma absurdamente triste que as crianças tem de entenderem a premonição e se calarem tornando-a ainda mais inevitável. Preocupava-me muito vê-lo deitado no sofá, assistindo ao desenho pela televisão que ele não mais assistiria, talvez, na casa que iriam morar a três mil quilômetros. Talvez na casa da sogra desse meu amigo, não haja tv à cabo. Enquanto o Sérgio falava comigo, a Luanda falava com a Dani, eu não conseguia desprender os olhos do menino. Perderam o emprego. Várias lojas na minha cidade fecharam. A massa dos desalojados. Mesmo minha irmã, que eu tinha uma tranquila e ingênua convicção de que era uma Midas, colocou a sua parte na academia de pilates para alugar. Ela não fala mais em trocar o carro depois que pagar a última prestação. Hoje vou buscar a Júlia na escola, e lá estão eles, esse casal de amigos. A Luanda chorando. O Sérgio pede que a Júlia fique do lado do filho deles para que ele lhes tire uma foto. Pela primeira vez eu me vejo sendo severo com o menino: eu imponho com uma voz que tem mais um desamparado desespero do que raiva que ele sorria. Sorria Gabriel, vê se arreganha esses dentes meu camarada. Daí eu olho apreensivo para o Sérgio para ver se minha voz não saiu de uma forma peremptória demais, coisa que muitas vezes eu vejo em mim e me policio, e o quanto me arranca o coração ver a subserviência dele, dele e do menino que, em vez de se grilar e fechar a cara para mim, como em seus dias de imperador plenipotenciário ele faria, ele tenta sorrir, um sorriso cheio agora da mais abissal tristeza, o sorriso do deslocamento, da volta à aventura incômoda da estrada. Todas as crianças da sala deram adeus ao Gabriel, uma a uma, coisa que a Luanda não aguentou. Eu saio de lá levando quase sem ver a Júlia pela mão. Entramos no carros, ela e eu mudos. Me engano com a minha filosofia: a vida não é simples, como eu pude fingir isso. Deveria ser, mas há tantos empecilhos, tanta perícia para não se deixar em paz. Eles voltarão amanhã para Alagoas. Como a vida deveria ser simples. Como o segredo de tudo é brutalmente visível e nossos esforços de sempre é escondê-lo com gana, com apaixonada compulsão por infringir dor. Nenhuma família deveria ser imolada. Todo ser humano, em qualquer canto da Terra, deveria ser milimetricamente respeitado.

2 comentários:

  1. Belíssimo texto, Charlles. Em minha opinião, uma (outra) pequena obra-prima de rara sensibilidade. Essa oração, por si só, dá muito o que pensar, Charlles: "Meu deus, como toda a existência soa errada quando uma criança já não tem mais a fé sólida e inquebrantável de ser o escolhido". Poucas coisas são tão tristes quanto uma criança desolada.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado, Marcos. Por isso acho que Ivan Karamázov e seu discurso sobre a proteção às crianças é uma das verdades mais importantes.

      Excluir