Não será dessa vez que falarei mal de uma obra de Mario Vargas Llosa. Ainda mais que esse livrinho, A civilização do espetáculo, tem acirrado os ânimos da crítica das revistas de direita contra Llosa, elas que sempre foram laudatórias em relação ao escritor peruano menos por sua real qualidade literária que por verem nele um fiel do regime. A revista Veja acentuou que o livro exagera muito nos prognósticos sobre a decadência da cultura ocidental (e, vale definir, cultura, para Llosa, é tudo de bom que foi feito em todos os campos da arte_ incluso aí a religião_, sem espaço algum para o relativismo canhestro do politicamente correto), e o condenou por uma re-aproximação aqui às ideias da esquerda. A Folha, em um artigo de alguém que assina como escritor português e que se mostra exultante, para a dó de quem o lê, por estar ou morar em Oxford (Inglaterra), escreveu, ao modo de barraqueira típico do gênero, que o livro de Llosa é uma porcaria, sendo que, como contraprova à decadência exposta nessas páginas, ele visitou uma de suas radiosamente natalinas livrarias de Oxford e encontrou uns quantos livros recém lançados de uns quantos sociólogos e economistas pós-doctor que, ao que parecia, iriam reaquecer o mercado dos debates acadêmicos sérios. Ou seja: esse português não leu o livro de Llosa, ou o fez dentro do esteriótipo que as piadas de bar criaram em torno de sua origem geográfica, pois é justamente contra esse conhecimento empolado e restringido à leitura maçônica dos ultra-especialistas das universidades que Llosa compõe a primeira parte de A civilização do espetáculo. E é essa falta de pompas, essa sinceridade apocalíptica, essa prosa afiada de quem não deve nada a ninguém, que faz esse livro valiosíssimo.
Recordo que, assim que ganhara o Nobel, Llosa fez uma palestra sobre a temática da indústria cultural e do embotamento mental que ela causa, e foi duramente criticado pelos iniciados por citar levianamente nomes como Foucault e os filósofos da Escola de Frankfurt. Eu mesmo cheguei a pensar que Llosa pisara na bola ao se enveredar por essas instâncias sagradas, altamente vigiadas, já que, por mais que fosse um grande escritor, faltava-lhe a complexidade arquitetônica da linguagem e o hermetismo de imagens para poder falar no mesmo tom que a trupe sisuda. Lendo o livro, percebe-se toda a legitimidade de um ficcionista pensar criticamente todos os assuntos entesourados pelo nicho do intelectualismo acadêmico classista, e as ausências e falhas no estilo e na retórica de Llosa que o deixariam em descompasso com a regra, dão a esses ensaios uma surpreendente força. A leitura envolvente_ em uma noite tive que vencer suas 100 primeiras páginas_, a coragem de deixar livre seu tom meio retrógrado de não resignar-se diante o evidente fim de antigos valores livrescos e artísticos, e mais, sua linguagem vantajosa de não-especialista, configuram uma urgência única e um alívio a esses escritos. Llosa gasta um número bem menor de palavras que a dos ultra-filósofos ortodoxos, e chega a objetivos dos quais estes frequentemente se perdem no meio do intrincamento cabalístico; e Llosa aqui é desavergonhadamente moralista a ponto de marcar sua posição, dispensando os artifícios bonachões e os truques anedóticos de um Zizék para amortecer o que ele tem para dizer.
Llosa fala, por exemplo, a favor das religiões, desde que elas respeitem as leis do Estado; fala contra a permissividade sexual que acabou com o erotismo, salientando que a falta de fetiche da imposição de certas minorias ativistas de uma total igualdade sexual pode herdar às futuras gerações um acentuado desinteresse pelo sexo; condena a usura gananciosa e assassina do neoliberalismo financeiro, para o qual as instituições bancárias relegam milhões de excluídos à miséria; aponta a parcela de culpa de anestesiamento da cultura pelos filósofos desconstrutivistas, que contribuíram pela desumanização e extinção dos interesses clássicos do homem; ressalta a ausência de parâmetros para qualificar a nova produção tanto na literatura quanto nas artes plásticas, sendo que todo aval de quem é ou não gênio ficou a critério de um mercado que, como tudo o mais, só se importa com o lucro, mesmo que para isso tenha frequentemente que usar da impostura. Aliás, a minuciosa exposição dialética desses ensaios mostra que é perfeitamente possível_ e producente_ atingir profundidade crítica com limpidez textual. Em uma clareza e lucidez e apego aos fatos e números da história, fica impossível disfarçar que Llosa não se compraz com os pecados gritantes do capitalismo, sendo justamente sua ácida crítica à corrupção bancária que prostitui os agentes dos Estados, e a pauleira que desce sobre a imprensa oficial também prostituta e corrupta, é o que vem desgostando o escritor junto aos grupelhos apanagiados do poder, para os quais cada país tem seus nomes e não é necessário escrever aqui quais são os que empacam o Brasil. Llosa trata de assuntos pontuais a cada página, para embasar o que está dizendo, como o do desmemoriamento do povo peruano que, mesmo depois de uma década sob o jugo da ditadura criminosa de Fujimori, apenas por três pontos de diferença não consolida o atraso elegendo a filha do ditador.
Se pudesse resumir A civilização do espetáculo, diria que é a acusação desencantada dos sinais do progressivo fim de nossa espécie vencida pelas frentes organizadas da estupidificação e alienação, promovido por uma tecnologia desespiritualizadora e irresponsável que mantem as mesmas formas de dominação em um mundo cada vez mais acrítico. Um mundo em que desaparece a cada dia a relevância da palavra. Uma obra imprescindível.
Llosa fala, por exemplo, a favor das religiões, desde que elas respeitem as leis do Estado; fala contra a permissividade sexual que acabou com o erotismo, salientando que a falta de fetiche da imposição de certas minorias ativistas de uma total igualdade sexual pode herdar às futuras gerações um acentuado desinteresse pelo sexo; condena a usura gananciosa e assassina do neoliberalismo financeiro, para o qual as instituições bancárias relegam milhões de excluídos à miséria; aponta a parcela de culpa de anestesiamento da cultura pelos filósofos desconstrutivistas, que contribuíram pela desumanização e extinção dos interesses clássicos do homem; ressalta a ausência de parâmetros para qualificar a nova produção tanto na literatura quanto nas artes plásticas, sendo que todo aval de quem é ou não gênio ficou a critério de um mercado que, como tudo o mais, só se importa com o lucro, mesmo que para isso tenha frequentemente que usar da impostura. Aliás, a minuciosa exposição dialética desses ensaios mostra que é perfeitamente possível_ e producente_ atingir profundidade crítica com limpidez textual. Em uma clareza e lucidez e apego aos fatos e números da história, fica impossível disfarçar que Llosa não se compraz com os pecados gritantes do capitalismo, sendo justamente sua ácida crítica à corrupção bancária que prostitui os agentes dos Estados, e a pauleira que desce sobre a imprensa oficial também prostituta e corrupta, é o que vem desgostando o escritor junto aos grupelhos apanagiados do poder, para os quais cada país tem seus nomes e não é necessário escrever aqui quais são os que empacam o Brasil. Llosa trata de assuntos pontuais a cada página, para embasar o que está dizendo, como o do desmemoriamento do povo peruano que, mesmo depois de uma década sob o jugo da ditadura criminosa de Fujimori, apenas por três pontos de diferença não consolida o atraso elegendo a filha do ditador.
Se pudesse resumir A civilização do espetáculo, diria que é a acusação desencantada dos sinais do progressivo fim de nossa espécie vencida pelas frentes organizadas da estupidificação e alienação, promovido por uma tecnologia desespiritualizadora e irresponsável que mantem as mesmas formas de dominação em um mundo cada vez mais acrítico. Um mundo em que desaparece a cada dia a relevância da palavra. Uma obra imprescindível.