sexta-feira, 17 de maio de 2013

Santo Bulgákov, interceda por nós!



Uma das minhas mais gratificantes leituras dos últimos tempos foi O mestre e Margarida, de Bulgákov. Relinchei de tanto rir o romance todo. Cheguei a babar em grande parte dele. Há um capítulo em que toda uma repartição pública, dessas repartições públicas stalinistas que conhecemos bem por aqui, é possuída: a visita de um dos asseclas do diabo faz com que os funcionários dela passem a cantar uma ópera (baseada na obra) de Púskhin. Ri tanto nesse capítulo que achei mesmo que a possessão demoníaca extrapolara as páginas e caíra sobre mim. Imaginem as pessoas em um prédio do governo não tendo como se controlar, com os olhos desesperados, todos cantando em alto e bom som toda uma obra operística, até serem internados em um manicômio_ e os ônibus que os conduzem passando por uma plateia de populares que acham que é alguma das marchas marciais acontecendo na avenida? Outra cena espetacular é a transformação de Margarida em bruxa, seu voo pelas paisagens noturnas magníficas da Rússia até um distante rio da Sibéria, onde ela se encontra com outras das instigantes figuras infernais para uma espécie de batismo. De imediato, Bulgákov se tornou meu mestre. Anos e anos para que ele chegasse até mim dessa forma sem formalidades, como se não fosse um dos acontecimentos da minha vida, mas uma trivialidade a mais. 

O mestre e Margarida tem também uma narrativa sobre os últimos momentos de Cristo. Em certa época de minha juventude, eu lia tudo na alta literatura sobre Cristo: Barrabás, A última tentação, O evangelho segundo Jesus Cristo. Esses capítulos estão entre as melhores páginas apócrifas sobre o Cristo_ empatam com o magnífico e esotérico livro do Kazantzakis. Por que Bulgákov conta os momentos finais de Jesus em seu livro? Por que, em uma crítica fantástica que faz contra a corrupção do estado soviético, ele intercala esses momentos estranhos, deslocados? Seu cristo tem só um apóstolo, o cobrador de impostos Matheus. Todos são mencionados com seus nomes originais, o que causa uma maior ambientação humana no calor arrogante da Judéia, entre homens brutos cujas barbas parece que sentimos nas mãos: Jesus é Yeshua Ha-Notzri, Barrabás é Bar-Raban, Judas é Judas de Kerioth. Jesus está lá, trocando em miúdos, da mesma forma que Jesus está em Stalker, de Tarkóvski: um homem comum, bastante lelé da cuca, bastante medíocre em sua simploriedade constrangedora, inculto, mas que deixa Pôncio Pilatos fora dos eixos por suas enormes e inusuais palavras inéditas sobre o perdão, sobre a bondade intrínseca do homem. Jesus de Bulgákov é um homem que ninguém suporia, nem nos sonhos mais disparatados, ser algo mais que um louco de bom coração, vítima de sua própria desprovidão de astúcia. Mais uma vez, o Jesus de Bulgákov se encontra com o Jesus de Tarkóvski: em sua aposta de que a fragilidade é a verdadeira força.

Mas o mais fascinante aqui é a comitiva de seres infernais do romance. Bulgákov é um gênio visual: seu romance se assiste, não se lê (estudei métodos de leitura dinâmica que defendem a imaginação da leitura como forma de rapidez sem perder concentração, e nenhum escritor se emprega melhor a essa técnica que esse russo). As cenas são tão ricamente descritas, seus personagens são tão vivos e naturais, que lembro das cenas como se as tivesse visto: na audiência de Yeshua diante de Pilatos, quando Yeshua fala com Pilatos informalmente, como se fossem íntimos, o escrivão que anotava as palavras pára a pena e olha de queixo caído para seu chefe, e isso é oferecido com tanta maestria que dificilmente o cinema seria mais elaborado que a mente do leitor. E os diálogos!: meus irmãos, tenho sido presenteado com o que há de melhor em diálogos em minhas últimas leituras, e Bulgakóv é uma festa à inteligência, é uma overdose. Que prazer e aprendizado saber, mais uma vez, que a literatura pode ser tão libertadora e ensinar tanto.

Os demônios de Bulgákov_ demônios sem nenhuma misericórdia, maus até a medula, e fascinantemente sarcásticos e elegantes_, são como agentes da transformação, como se Deus, após ter mandado os arcanjos para Sodoma e Gomorra, cidades cujo nível de pecado quase perverteu essas criaturas imaculadas (lembro de minha avó pentecostal me lendo a famosa passagem em que os habitantes avaliam o potencial libidinosamente consumível da carne desses seres etéreos), ficasse mais receoso e enviasse dessa vez capangas incorruptíveis, fascinados pelo cumprimento dos terríveis expurgos. Ver as maldades que Azazello, o ser mais feio do universo, Behemoth, o famoso gato preto que anda sobre duas patas, Korôviev, e Hella, uma mulher nua com uma extensa cicatriz no pescoço, fazem sob o comando de Woland, o próprio demônio que se apresenta como doutor em magia negra, é uma maravilha. Nietzsche, que adorava Petrônio, teria adorado Bulgákov. Este romance é um relicário, desses que os fiéis apertam contra o peito à espera de justiça divina, e Bulgákov dá uma ostensiva justiça luciferina em que a hipocrisia da sociedade e a corrupção generalizada que parte do estado soviético se cumpre com decapitações de intelectuais do partido, oligofrenia de poetas ponderados, a loucura de agentes da burocracia. Seria uma vingança meramente placebo, se Bulgákov não fosse tão superior e magistral, tanto que seu romance foi censurado, abreviado, condenado, rasgado, desprezado. Em sociedades tão encalacradas na corrupção e na idiotice como a nossa, Bulgákov ensina, otimista, que a única salvação é o humor libertário, o humor corrosivo, iconoclasta, satânico, insubmisso, subversivo, violento e visceral. Se eu ainda tivesse capacidade de rezar, rezaria ao Santo Bulgákov que intercedesse por nós, para que o Demônio expurgasse esse nosso triste e intranscedente país. 


21 comentários:

  1. Que belo texto, Charlles! Faz jus ao livro. Estou lendo, também, e descreveste exatamente aquilo que senti desde a primeira página. A cena apócrifa do julgamento de Cristo é de uma habilidade fascinante. Impressiona como o russo possui tanto controle sobre as ideias que produz. As palavras são milimetricamente medidas. É um livro, em certa medida, volumoso, mas lemos, como disseste, com grande soltura e leveza.

    Outra pergunta: por que abandonarás essas plagas, apesar de afirmares que se trata de motivos pessoais?

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    1. Re-pergunto o mesmo que o Carlinus.

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  2. =(

    Pronto. O melhor blog, meu site favorito, minha página inicial, a partir de agora de portas fechadas. Estou sem casa. Sem novos posts, sem os comentários sensacionais dos outros frequentadores. E ainda sem o Charlles rondando por ai, em outras plagas da internet, discutindo com certas escritoras e recebendo meus e-mails, hehe.

    Se não voltar com essa joça, irei até o centro de Itapuranga e, do alto dos meus 1,70m, darei uma sumanta de pau nesse jaguara.

    #VoltaCharlles

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  3. Retirei o que eu disse. Foi meu momento Jânio Quadros. Mas procurarei ser menos insolente.

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    1. João Antonio Guerra18 de maio de 2013 às 15:18

      Deu um puta dum alívio.

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    2. VAI TOMÁ NO CU CHARLLES SEU VIADO PALHAÇO FILLHO DA PUTA USURPADOR DE CORAÇÕES PREFIRO ROTH A BELLOW FAULKNER SUPERIOR ADEUS GREMIO CHUPA ARBO NAO BRINCA DE NOVO CHARLLES TE ODIAMOS TE AMAMOS EL REGRESO DE ARCIMBOLDO


      (Ufa, que bom :D)

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    3. Xingou Charlles e o Grêmio na mesma frase. Grato. ns

      [não cheguei a ver o "informe de despedida" do charlles, mas nem inventa, seu arcimboldo. te queremos até o natal (?)]

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    1. Cuidado, Charlles,
      Jânio pega!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

      E, por ser marxista, mas também cristão sem qualquer igreja...
      Pensa o quê!...: mando Marx tomar no cu. Aliás, mando qualquer dogma
      tomar no cu.

      Sua retirada de cena, e automaticamente a entrada e a contumaz permanência
      daquilo que já ESTAMOS TÃO CANSADOS...., seria lamentável.

      Jogar toda a sua leitura no lixo? Caro, Charlles, lhe comunico:
      sua obra-prima será escrita em meio a fé de seus leitores.

      NÃO SE ENGANE, CARO CHARLLES,
      você já está contaminado e fodido! Portanto:
      MÃOS À OBRA!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!


      (SEU VIADO!).

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    2. LER E ESCREVER É UM ATO DE AMOR AOS SEMELHANTES...

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  5. Tenho que reler este livro. O li na tradução anterior e, segundo o Milton, esta é muito superior. É um livro excepcional, zombeteiro ao extremo, em oposição aberta ao lugar comum, e uma demonstração da dimensão própria do escritor em uma sociedade que, por uns tempos, teve que caber na nau da Proletkult, e depois na menor ainda, de Stálin, cujos humores movediços produziam exatamente o que ele procurava: a perpetuação de sua própria e única espécie. Se eu tenho que morrer de fome, pesnsava Bulgákov, voiu aproveitar meus momentos de inanição para por a imaginação em dia, com a generosa colaboração da biblioteca que tenho na memória, de restrito acesso aos censores. Então vem a obra-prima que se sobrepõe aos seus detratores, não sendo ainda uma mera lição, mas uma legítima expressão das possibilidades humanas, ainda que produto de um homem tolhido em um labirinto com paredes cobertas de slogans. Bem, tenho que reler isso.

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    1. Concordo literalmente com tudo que escrevestes aí. Pensei o mesmo da coragem e do amor de Bulgákov pela literatura. Um livro grandioso, não tem como ser superlativo com ele, não tem como ser exagerado. Não conheço a tradução anterior e uma crítica que faço a essa nova edição (e uma crítica geral que faço à editora Alfaguara, da qual tenho muitos livros aqui) é a ausência de textos anexos sobre a obra, apêndices, estudos, posfácios. A história desse romance parece ser tão interessante quanto a obra. Deveria vir uma série de estudos, assim como vem ensaios de Pynchon na ediçõa da Cia de 1984.

      Mas compre-o, Marcos, ainda hoje, e o releia. É uma maravilha ao espírito, um presente, um triunfo para toda a vida. Presumo que eu o releia antes de terminar o ano.

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    2. Como "notas" vale a leitura da biografia de Bulgákov, se não me engano intitulada "O diabo solto em Moscou". Se você quiser me pagar R$ 500,00 pelo livro, mando pra ti pelo Correio. É claro que depois do pagamento eu posso morrer e, assim, nunca receberás o livro.

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    3. ...mas não com minhas anotações e comentários brilhantes, isso para não falar das manchas de vinho. Um exemplar customizado.

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    4. tá explicado o preço. manchas de vinho, devem ser do porto. (ainda não entendi como se toma aquilo, assim, de pronto, demasiado doce. ainda assim, não entender não bastou para q não tomasse, agora pela segunda vez)

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    5. arbo, a Eliene Salgado explicou nos comentários do post:

      http://charllescampos.blogspot.com.br/2013/02/emaconhado.html

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  6. Charlles, muito obrigado por ter me revelado esse livro.

    Certamente uma das melhores leituras de 2013.

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    1. Lestes também? Mas quem me revelou foi o Marcos Nunes e o Milton Ribeiro.

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    2. Li sim, demais, demais!

      Então agradeço a eles através de você.

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  7. Li os comentários agora, e não tinha noção de tudo que tava acontecendo! Pensei que essa história de dar fim ao blog era arroubo de cidadão lesado...P*** susto! O "Dia do Fico" do Charlles com esse post; santo Bulgákov intercedeu foi Charlles?

    Ana Paula Rocha

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