terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Algumas das mais belas páginas que li em 2012



O texto abaixo refere-se às páginas 118, 119 e 120 de Microcosmos, de Claudio Magris.

"Esloveno formado na velha Áustria dos Habsburgo, o professor Karolin sempre falou num alemão cerimonioso e antiquado, com predileção pelo uso das formas indiretas: 'Disse à minha mulher', dizia, por exemplo, adentrando prudente em nossa companhia uma clareira frequentada por javalis: 'pergunte a nosso estimadíssimo amigo, isto é, ao senhor, se sua venerada cônjuge prefere a gubaniza com ou sem aguardente...'

Certa vez, ao sabermos que estava doente, fomos visitá-lo. Aos 92 anos de idade, estava acamado algumas semanas, devido a alguns distúrbios de circulação que lhe causavam certa dificuldade para falar; estava suado e febricitante, enfraquecido, mas os olhos eram sempre vivos e bons, brando naquele rosto esculpido pelas décadas numa expressão de severa autoridade. Ao lado da cama havia alguns pacotes e umas caixas, onde a mulher, conforme os desejos que ele expressava com dificuldade, mas sempre num tom de ordem inapelável, estava encarregada de juntar ordenadamente suas coisas_ os livros, as raízes bizarras, alguma cabela de veado ou marta empalhada, quadros, desenhos e fotografias da montanha, cartas, documentos e relíquias_ para, depois, dar início à sua eliminação.

Estava desalojando sua existência, esvaziando-a das coisas amadas e coletadas com passional pedantice, queria pôr ordem na própria vida e renunciar ao que a havia adornado, do mesmo modo que os imperadores da casa dos Habsburgo, segundo o ritual barroco, tinham de se despojar dos títulos e das insígnias de sua glória para serem acolhidos na cripta dos Capuchinhos.

Na hora das despedidas, Karolin presenteara as visitas com um cartão-postal do Nevoso, em cujo verso estavam impressos_ obviamente em esloveno_ alguns versos seus, que ele, erguendo-se sobre os travesseiros, com a ajuda da mulher e com o auxílio de duas enormes lentes, traduzira, numa grafia enorme e trêmula, para o alemão.

Aquela folha com aqueles quatro versos em alemão parecia um testamento, um selo definitivo. Mas, algum tempo depois, chegou uma carta, naturalmente em alemão. A letra grande e incerta no envelope revelava o autor, mas não deixava supor a firme, embora contrita, especificação anotada naquela grafia de velhusco, trêmula mas rigorosa na sequência lógica e sintática, na pontuação e na ortografia, no espaçamento, nos parágrafos. 'Estimadíssimo amigo, da última vez, quando o Senhor veio nos visitar com a cara Senhora, eu lhe entreguei alguns versos meus, que traduzi para o alemão. Minha mulher, que estava ao lado me observando enquanto escrevia, afirma que eu teria escrito das Berg em vez de der Berg (a montanha). Se assim for, peço-lhe que corrija tal erro censurável e que me perdoe. Sofri de vários distúrbios circulatórios, com alguns momentos de amnésia momentânea, e se cometi um erro desse tipo certamente o fiz em tais condições. Agora estou melhor, levantei-me, fiz alguns passeios aos pés do bosque.'

Era inadmissível que o professor Karolin pudesse ir-se sem corrigir o erro e sem ter esclarecido, a si próprio a aos outros, qualquer dúvida a respeito. Deve ter passado umas boas semanas a remoer, procurando lembrar se realmente tinha usado erroneamente o das, artigo neutro, em lugar do masculino, ou se não teria passado de uma falsa impressão da mulher, que naquele período ele deve ter maltratado um bocado por causa disso. A paixão brota da vitalidade, mas também a estimula e, assim, graças à aflição por um erro de gramática e ao forte desejo de corrigi-lo, o professor havia reencontrado um pouco de seu bosque, o mundo, a vida.

A correção da língua é a premissa da clareza moral e da honestidade. Muitas patifarias e violentas prevaricações nascem quando se bagunça a gramática e a sintaxe e se coloca o sujeito no acusativo ou o objeto no nominativo, trocando as bolas e invertendo os papeis entre vítimas e culpados, alterando a ordem das coisas e atribuindo eventos a causas ou a promotores que não os de fato, abolindo distinções e hierarquias num trapaceiro amontoado de conceitos e sentimentos, deformando a verdade.

Até por isso mesmo uma única vírgula no lugar errado pode aprontar desastres, provocar incêndios que destroem os bosques da Terra. Mas a história do professor Karolin parece dizer que, ao se respeitar a língua, ou seja, a verdade, também se fortalece a vida, ficamos um pouco mais firmes sobre nossas pernas e somos mais capazes de dar um passeio desfrutando o mundo, com aquela vitalidade sensual que será tão mais solta quanto mais estiver livre dos enredos dos enganos e dos autoenganos. Sabe-se lá quantas coisas, quantos prazeres amáveis e alegres se devem, sem que o saibamos, ao lápis vermelho dos professores na sala de aula..." 

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