sexta-feira, 2 de novembro de 2012

A Técnica do Foda-se


Participei da enquete no site da revista Veja sobre a permeabilidade desta publicação impressa e virtual na minha vida. Respondi da maneira mais sincera possível, sem forçar ou escamotear nada, e, se valerem por mim, a empresa não teria muitos adjetivos a juntar na planilha de recuperação de vendas em franco e progressivo declínio desse hebdomadário. Não a leio na versão impressa; acesso sim todos os dias o seu site, mas faço o mesmo com todas as outras revistas nacionais e um sem número de revistas e jornais em inglês e espanhol; o nível de credibilidade que ela desperta em mim, em uma escala de 0 a 10, é 3; não clico nos links de propaganda do site, por quê?, porque são de produtos supérfluos e caros que não representam nenhuma importância na minha vida. As primeiras perguntas são sobre meu grau de escolaridade e uma enxurrada de itens de consumo que eu por ventura disponha em minha casa: quantas tvs LED eu tenho; quantos freezers; quantas geladeiras; as geladeiras possuem congelador duplex; quantas empregadas domésticas eu tenho; quantos banheiros. A enquete revela muito mais o que eu e uma gama de milhares de pessoas com ojeriza definitiva pela Veja sabem sobre esse veículo do que ela pretende saber de seus pretensos consumidores: é a pior revista do Brasil_ ainda que nenhuma outra seja substancialmente melhor que ela no mercado nacional_, a menos confiável, a mais visivelmente estupidificada e má intencionada, a que tem um corpo de articulistas que são vistos como descarados inimigos sociais e pertencentes ao clã financeiro mais abjeto e estagnado do país. A revista sente essa opinião contra ela, que não vem, de maneira alguma_ como ela quer passar que seja_ apenas da ala esquerdista consolidada por alguma posição partidária específica. O que mais evidencia à Veja o seu ocaso e sua derrota galopante é o desesperado número de vendas que vem tendo já há mais de uma década. Tanto que eu fui um dos que receberam a incrível oferta de assinatura numa carta pelo correio acompanhada por boletos bancários: algo assim: nas bancas, em um ano, eu dispenderia 1.500 reais comprando a Veja; mas eles me mandavam um incrível desconto em que a coisa caía pela metade, cerca de 750, mas que eu só pagaria 350 reais. 75% de desconto pela assinatura anual de Veja! (Devo mesmo colocar esse ponto de exclamação aí?)

Eu fui um fumante fracassado por uns 5 anos. Era uma época da minha vida que nenhuma leitura compensava a ânsia física por um alívio rotineiro em que me vi, na ausência absoluta de satisfação disponível neste plano de existência, tendo que recorrer ao cigarro. Me aliviava, me entorpecia, me ressaltava que a casa de meus vinte anos poderia ser eterna e imune a consequências. Mas, por uma razão que não vem ao caso aqui, decidi abruptamente que aquilo não me ia bem, e abandonei da noite para o dia o maço e meio que eu consumia por dia. Fumar é uma estupidez escancarada,  um tipo risível de esoterismo impossível para mim imaginar o templo de charme e desolação saciada que esses macacos desvirtuados da árvores simiesca da razão acham estar criando em torno de si. Isso me fez parar, a consciência muito acentuada do ridículo que é depender desse morticínio escape masturbatório para me impor diante a mim mesmo. Nunca mais acendi um cigarro, e lá se vão quase 15 anos. Nunca fui chegado e nenhum tipo de drogas, a não ser o vinho (e assim mesmo  me inculpo de coisas gloriosas no campo da auto-aniquilação).

E eis que hoje vejo no site da Veja a informação de que a Anvisa acaba de liberar a indústria de cigarros nacional da obrigação de estampar aquelas "imagens tétricas" (palavras do site) de fetos mortos, corações infartados, corpos de fumantes eviscerados, etc. Daí, o articulista, Lauro Jardim, escreve: "Depois de várias pesquisas, a Anvisa concluiu que elas não sensibilizam nem os fumantes de ocasião".  Quê? As fotos, que são grotescas e abomináveis, e por isso funcionam, mas, na concepção franca do estilo foda-se da Veja são comprovadamente insensibilizantes pela Anvisa (!!!), serão retiradas por lei devido... devido a quê?, se são inofensivas e ineficientes, não seria mais lógico que a Souza Cruz não se importasse com elas? Aliás, o nome da Souza Cruz sequer é mencionado no texto da Veja, por motivos tão ubíquos quanto as demais ardilosidades da revista, e que qualquer um intui ter a ver com a preservação de não se citar o nome de um possível patrocinador em vão. A desobrigação destas imagens, que serão trocadas por fotos de modelos femininas fumando diante um campo aberto ("a aposta é que essas cenas plácidas evocando a vida podem despertar melhor a consciência  do fumante", segundo o altruísta engajado Lauro Jardim), é um passo óbvio ao retorno da abertura das propagandas de cigarros na mídia. Não à toa que a página principal do site da Veja esteja com os dois cães de corrida da propaganda de uma vodka tresandando por todos os cantos. Na decadência de gosto, de credibilidade, de vendas, só sobra à Veja a mesma técnica do foda-se que se vê na tv Record, a de preenchimento máximo de seus espaços para a propaganda secular e generalizada, sem proibições, sem moral, sem faixa de idade (esse um item muito requerido, pois álcool e cigarro miram fartamente no público adolescente. 

Pesquisei a veracidade do que diz Lauro Jardim em outros sites de notícia e pouca coisa procede. A decisão não partiu da Anvisa. A Souza Cruz ganhou em segunda instância o direito de retirar essas fotos de contra-propaganda de seus cigarros, mas não o pode fazer pois a própria Anvisa recorreu e a empresa tem que esperar a decisão do STJ. Diversas pesquisas comprovam que tais fotos e as campanhas maciças de conscientização do mal do cigarro feitas há alguns anos estão ativamente por detrás de no Brasil terem reduzidos substancialmente a quantidade de fumantes. Tais fotos são desmotivadoras do tabagismo em 57% de pessoas expostas a elas. Assim como o Hitchens brasileiro, Reinaldo Azevedo (trata-se de um dos histrionismos canastrões da revista: na época da morte de Hitchens, o site da Veja estampou uma matéria deprimente intitulada "Hitchens é o Reinaldo Azevedo da Inglaterra"_ blogs deveriam ter clack para pontuar o riso, mas creio que aqui a gargalhada é imediata e voluntária), direto tenta desacreditar que esteja mesmo acontecendo o aquecimento global, alegando ser uma teoria conspiratória de ecologistas de esquerda desocupados (embora o leque de adjetivos pejorativos usados por ele sejam bem mais brutais e bairristas). Vê-se que o grande articulista monotemático é um prodígio em defender seu salário pago pelas indústrias automobilistas que compram cinco em cada seis páginas da Veja, tentando desativar a tecla de assimilação inevitável de que veículos automotivos sejam um dos fatores capitais por detrás das  inéditas e altíssimas temperaturas.

Em um artigo soberbo de uma das únicas revistas fundamentais que circulam por este país, Le Monde Diplomatique, se lê: 


"The Economist, o jornal mais influente do mundo
O que une o apoio à guerra do Iraque e à legalização das drogas, a condenação do WikiLeaks e do “Leviatã estatal”, a celebração do liberalismo e o chamado ao resgate dos bancos? Essas posições foram defendidas pela mesma publicação: The Economist. A qual, a cada semana, exibe um espelho lisonjeiro às classes dominantes."

A Veja tem aí um de seus pretensos modelos.


15 comentários:

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    1. Foi uma das minhas auto-violações, pois sempre tive repulsa ao cigarro. Só de pensar tenho nojo, credo!

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    2. Não entendi direito, só acho que deve dar um belo post.

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    3. Não tão longa e não tão triste história assim, olhando retrospectivamente. Mas, enquanto acontecia, que eternidade de segundos. Um dia eu a brindo com mais esse capítulo da esplendorosa e instigante vida prosaica de Charlles Campos...

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  2. Parabéns pela força de vontade.

    Sobre propagandas de cigarros (e de bebidas, e de artistas da MPB, e de outras porcarias) eu não me importo, desde que não seja com dinheiro público. Tenho pavor dessas coisas, mas esse clima de tudo proibido, geração saúde, HERBALIFE, além dos discursos de Aquecimento Global (sorry, me chamem de ignorante-conservador-neoliberal, mas não estou convencido, principalmente da parte GLOBAL) é muito mais nocivo à minha saúde.

    Hebdomadário. Taí, essa é nova pra mim. Ah, e por que O enquete? #chato

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    1. Tá certo, é A enquete. Tentei aqui achar algum álibi, dizer que é uma silepse, concordando ideologicamente com O "questionário" de uma enquete, mas seria redundância das grossas. Vou corrigir. (Apesar do que os erros gramaticais em meus textos são visíveis.)

      Matheus, mas a questão do cigarro é gravíssima. Se você quiser argumentar apenas sobre o ponto de vista do dinheiro público, já seria suficiente: o quanto o Brasil gasta com saúde pública com fumantes?

      Estou longe de ser desses preocupados com a saúde para viver 95 anos. Sempre penso que talvez eu seja um desses agraciados que excedem sempre na periculosidade mas tem uma longevidade invejável, como o Ernesto Sabato que bebia whiskey, ou o Onetti que também não era essas coisas em prevenção.

      Cara, o aquecimento global é incontestável não pelos números especializados etc, mas empiricamente. A avenida paulista com 41 graus esta semana. E o inferno que foi aqui estes últimos três dias. Choveu, FINALMENTE, ontem, de forma que foi um entorpecente tão grande que eu me esqueci de acordar para o trabalho e só despertei às 11 da manhã.

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  3. A bem da verdade não se digna chamar Lauro Jardim de jornalista. Mas se se é possível provar qualquer relação entre Souza Cruz e o Lauro, esse teu texto te leva a um patamar (o qual não creio ser do teu desejo) de blogs como o do Cloaca et. al.
    (Repare que não estou necessariamente te diminuindo ao comparar o blog com o do Cloaca. ;) )

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    1. Pô, meu irmão! O Cloaca...

      Note que não xinguei, não usei palavrões, não citei o Lula colocando-o como O Supremo.

      Como um personagem do Pynchon diz (sempre ele. Encomendei dois Murakamis para ver se eu troco a porra dessas minhas referências por um tempo), não é pelo fato de eu ser demasiadamente paranoico em acreditar em conspirações, que as conspirações não existam.

      Pense bem: que lobby maior existiria no campo das megacorporações que o dos cigarros, se eles não fossem mais demonizados e caíssem de novo na graça popular?

      O Cloaca não...

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  4. É do Pynchon? Está numa letra do Nirvana, aí pensei que era do Cobain (apesar de não imaginá-lo lendo Pynchon. De que livro é?). Ontem comprei Lot 49, que finalmente achei em inglês, uns R$70 mais barato que na Estante Virtual.

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    1. Se não me engano, está no Vineland, Paulo.

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    2. Na verdade, Pynchon é tão grande, que cai-se na convenção de que O Arco-Iris da Gravidade seja sua obra máxima. Realmente é, mas o Lote 49 suplanta em diversas frentes como sua realização mais perfeita e encabulante.

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    3. E devo dar o braço a torcer ao Luiz Ribeiro quanto ao potencial da língua original de uma obra: nada soa tão bem quanto a abertura de Gravity´s Rainbown: a screaming comes across the sky. Uma bomba sinfônica!

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    4. Será meu primeiro Pynchon.

      Sobre cigarros: http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-8/ficcao/so-para-fumantes

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  5. Não deve ser coincidência o lance do cigarro ser postado no Dia de Finados. Eu tinha 16 anos quando comecei a fumar. Há uns cinco anos, eu padeci e conseguir parar. Fiquei 2,5 anos limpinho. Até que a besta que vos escreve teve a brilhante ideia de fumar um cigarrinho um dia. De brincadeira. Voltei. Só de pensar no tanto que vou sofrer de novo, preciso de outro cigarro.

    O lance das fotos dos males do tabagismo tem duas histórias engraçadas. Sempre que compro um maço onde se alerta para a impotência sexual peço para trocar por um de câncer de pulmão.

    Mas a melhor é de uma amiga. A mãe de seu chefe foi internada, problema grave, mas ela não sabia o que era de fato. Ao chegar no hospital, ela se encontra com o chefe do lado de fora. Ele fumava um cigarro. Daí ela pergunta pelo estado da mãe, o que havia acontecido, essas coisas. Ele pega o maço de cigarros do bolso e exige uma mulher toda entubada: alerta para enfisema pulmonar. Minha amiga, cabeça na lua, achou que era uma foto da mãe dele.

    Quanto à Veja, nada mais me surpreende no jornalismo de Policarpo. Há algum tempo deram capa para a liraglutida. É um medicamento indicado para diabéticos e provoca emagrecimento acentuado. A chamada era uma forma milagrosa de perder peso.

    Fábio Carvalho

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    1. Foi uma coincidência involuntária, não tinha reparado.

      Meu tabagismo veio derivado das brincadeiras que fiz com cachimbo. Usava inadvertidamente fumos aromáticos ingleses para cachimbo, uma viadagem sabor chocolate, cereja, e essas coisas; quando vi, já estava com um Hollywood a toda na boca. Muitas pessoas se assombram mesmo dizendo ter sido uma ferrenha força de vontade da minha parte, mas tenho por mim que me ajudou uma confluência de coisas: uma dor de estômago fora de série que passei a sentir_ a pior dor do mundo!_, que um amigo médico disse ser fruto da acidez do cigarro e descuidos alimentares; e uma época da minha vida em que eu estava em franca atividade, trabalhando como um nababo feliz pelos campos de diversas cidades.

      Isso, a prevenção e a atividade, me desviaram definitivamente do cigarro. Não fiz exame algum de estômago_meu pavor ser penetrado pelo cateter_, mas foi só parar de fumar e não comer frituras, que nunca mais senti essa inenarrável dor. Anos depois, meu pai morreu de câncer generalizado, que se iniciara no estômago (eu me lembrava de seu estoicismo incauto diante uma gastrite incipiente, quando eu era criança), ele que fora um tabagista a vida inteira mas já faziam uns dez anos que havia parado.

      Recentemente minha sogra foi diagnosticada com um enfisema pulmonar que abrange quase a totalidade dos pulmões. Parou de fumar.

      É chover no molhado falar sobre a perversidade da Veja. Minha alegria é ver que ela própria está cavando sua cova.

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