quarta-feira, 27 de abril de 2011

As Corcundas


Franz Kafka
Leio num ensaio de Hannah Arendt esse trecho escrito por Walter Benjamin: um entendimento da produção [de Kafka] envolve, entre outras coisas, o simples reconhecimento de que ele foi um fracassado. Tal declaração, vinda de um dos que melhor entenderam a importância da obra do autor de A Metamorfose para visualizar a derrocada humana promovida pelo século passado, faz coro à insistência do destino pessoal de Benjamin em mantê-lo numa vida regida por um azar tão intenso que era quase uma força espiritual. Azar que Arendt reconhece personificado na figura popular do folclore alemão como “o corcundinha” (símbolo da poesia infantil para o infortúnio). Os que lêem Arendt sabem que seu texto tem a marca vertiginosa de passar do retrato para longas reflexões de filosofia abstrata, revelando os matizes atentos de uma erudição abalizada em autores tão adversos como Kant e Santo Agostinho, de forma que não é uma simples impressão enxergar entre suas sutilezas um toque de sarcasmo em desvendar o infeliz combalido, o palhaço contumaz que sempre leva a pior, por detrás do pensador profundo que foi Walter Benjamin. O curto período de vida de Benjamin, amaldiçoado pela adversidade, comprova isso. Arendt não deixa ao leitor a opção de suavizar o impacto das constantes desgraças pelas quais passou Benjamin num texto mais polido; sua linguagem afiada não poupa o riso espontâneo que vem sem que seja possível contê-lo ao ler essas palavras sobre os últimos dias de Benjamin:


Graças aos esforços do Instituto em Nova York, Benjamin estava entre os primeiros a receber o visto [o visto de emergência para refugiados da Alemanha nazista, que dava direito a entrarem nos Estados Unidos] em Marselha. Também obteve rapidamente um visto de trânsito espanhol, que lhe permitia ir até Lisboa e lá tomar um navio. Contudo, não tinha um visto de saída francês, ainda exigido na época, o qual o governo francês, ansioso para agradar à Gestapo, invariavelmente recusava aos refugiados alemães. Em geral, isso não apresentava grandes dificuldades, pois havia um caminho bem conhecido, que não era vigiado pela polícia francesa de fronteira, relativamente curto e de modo algum muito árduo, que tinha de ser feito a pé pelas montanhas até Port Bou. Contudo, para Benjamin, que aparentemente tinha problemas cardíacos, mesmo o passeio mais curto significava um grande esforço, e deve ter chegado num estado de grave exaustão. O pequeno grupo de refugiados a que ele se juntara alcançou a cidade da fronteira, para ali saber que a Espanha fechara suas fronteiras naquele mesmo dia e que os oficiais não aceitavam vistos expedidos em Marselha. Supostamente os refugiados teriam de voltar à França no dia seguinte, pelo mesmo caminho. Durante a noite, Benjamin se matou, com o que os oficiais da fronteira, impressionados com o suicídio, permitiram que seus companheiros seguissem até Portugal. Poucas semanas depois suspendeu-se novamente o embargo dos vistos. Um dia antes, Benjamin teria passado sem nenhum problema; um dia depois, as pessoas em Marselha saberiam que, de momento, era impossível passar pela Espanha. Apenas naquele dia particular foi possível a catástrofe. (Homens em Tempos Sombrios, Hannah Arendt, pp.184-5, grifo meu)


Por sobre todo grande fracassado paira uma áurea de humor que acentua que eles são representantes de maior peso da erraticidade e desabrigo da nossa espécie. É difícil saber qual foi o maior fracassado: Benjamin ou Kafka, dois judeus cujo reconhecimento póstumo só foi possível por uma série de acasos fortuitos que quase se perdeu, o que ao menos Kafka permeia sua obra com o que o humor judaico antevê com lucidez a inerência inescapável de seu próprio fracasso. Kafka e Benjamin, como homens comuns situados fora do âmbito de criadores, podem ser enquadrados na definição do riso pilhérico dada por Elias Canetti, de que se ri de quem leva um tombo em público pelo que tal acidente puxa pela memória primitiva da queda da caça abatida (como não se pode mais literalmente comer quem cai, a dissolução do impulso residual se faz pelo riso).


A condição de fracasso de Benjamin e Kafka torna-se uma realidade condicionada a fatores materiais quando se vê em retrospecto o que o século tinha para torná-los incompatíveis. Nesse aspecto, Kafka foi mais poupado que Benjamin. Sua vida de funcionário pacato, inepto pelo isolamento social não só no campo familiar como no amoroso, obteve a absolvição procurada em sua toca subterrânea onde externava seus pesadelos, mesmo antes dos eventos que determinaram a personalidade do século XX. A tuberculose o poupou de tudo o mais que se avolumava no horizonte da história a fim de transferi-lo da cômoda constituição de fracassado para a de vítima potencial, possivelmente canalizada para um dos tantos desvãos oferecidos em que lhe esperava o extermínio. O século só lhe confrontou na sua realidade provinciana através da figura totêmica do totalitarismo paterno, e na fragmentação das tradições românticas e humanistas através de seus incuráveis e efêmeros casos amorosos (todos não passando de platonismo asséptico unilateral que beirava a neurose infantil). Já Benjamin, perseguido por seu fiel e inseparável corcundinha, teve uma sorte muito mais grotesca. Foi atropelado pelo terror de sua inclemente condição de refugiado sem pátria e sem lar, dando-se o lenitivo do único caminho que se lhe apresentava lógico como absolvição.


Algumas décadas à frente e os dois teriam sobrevivido, teriam sido desenfardados da obrigação de serem exemplos relativos aos olhos de quem vê sobre as cargas de ironia e os sintomas de radicais mudanças globais. Mas, restringidos à sua época, limitados em seus aguilhões de fracassados irredutíveis, hoje os homens por detrás desses pensadores estão numa esfera tão desatualizada de penúria que mesmo o humor não mais sobrevive. Não só o humor, como os dois portadores de intelectos potentes foram resumidos no triste domínio sem transcendência de suas fotos em preto e branco de homens muito magros, muito assustados, muito dependentes da burocracia mundana para que fossem suavizados da mesmice de mortais condenados à sensaboria e vistos como os “homens bons” de Hemingway (“os bons morrem cedo”). Os dois não foram homens bons, no entendimento de destemidos confrontadores da injustiça; faziam parte de uma fragmentária categoria de novos representantes da espécie que não tinham o pragmatismo ativo de um André Malraux , Bertrand Russel ou Camus. Suas vozes não eram potentes ou aráuticas, mas voltadas para a região mais profunda de si mesmos. São vozes de quem falam baixinho; vozes nos interstícios das quais a história impera maciçamente para calá-las, para mostrar o quanto tem de antiquadas e de falta de sentido. Não escreviam livros para serem lidos em voz alta. Duas décadas a mais e Kafka não morreria vítima de uma afecção anacrônica do século XIX, meia década a mais e Benjamin teria toda a chance de conseguir uma cátedra acadêmica para escrever sobre uma escrivaninha estável como a de Adorno. Mas isso se não tivessem que cumprir suas obrigações culminantes de fracassados. O fracasso como homens, em todos os sentidos, não só decidiu que morreriam cedo, numa zona intermediária em que o antes e o depois se tornaram colossalmente dessemelhantes, como também é a razão formativa de terem se consolidado no Kafka e no Benjamin que hoje sobrevivem em nosso conhecimento. O fracasso que tornou possível que achassem um tom íntimo e insignificante o suficiente para que o ruído exterior não se importasse em imiscuir-se nele para destruí-lo, e com o qual, livres da imolação, conseguiram enfim empunhar suas armas e investirem dessa esperança peculiar e quase desprovida de acepção etimológica para reagirem às sombras. Assim Benjamin pôde compor seu retrato do Anjo da História, suas amplas análises sobre o minúsculo e o quase invisível, e Kafka pôde mostrar o quanto o homem é uma bomba de angústia e sonhos infrênicos mesmo apertado sob o sapato.


Recordo vagamente de uma interpretação do sentido da obra de Beckett em que se diz que Beckett fora o mais pessimista dos escritores, mas que sob esse pessimismo descobria-se uma broca de escavação para uma opção inominável desconhecida, que tornavam suas palavras infinitamente precoces para o atual estágio humano. Essa precocidade talvez seja a chave para o esforço de tentarmos compreender além de nosso tempo o quanto o fracasso de Kafka e Benjamin serve como presciência, pela exposição reversa, de um período porvindouro em que o homem esteja suficientemente curado pela História de todas as suas cargas deletérias, o passado servindo assim como expurgação. 


Quando Benjamin reconhece o fracasso em Kafka (“As circunstâncias do seu fracasso são multifacetadas. Fica-se tentado a dizer: uma vez certo do fracasso final, tudo se resolvia para ele en route como num sonho”. Citado em Homens em Tempos Sombrios, p. 183), reconhece a incorporiedade de sua única relevância em renegar a existência enquanto homem e estar sensivelmente à frente de seu tempo. O que pode acontecer de pior é essa frágil significância se romper diante a prova implacável do determinismo da história.
Walter Benjamin

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